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Diário de um retorn(ad)o

Uma boa história começa sempre com uma tragédia: o convite endossado por Passos Coelho e as políticas devastadoras da Troika iraram e revoltaram muitos que viram hipotecado o seu presente e futuro.

As malas fazem-se à pressa, ligeiras nos bens mas demasiado pesadas na desilusão. E num ápice chega o dia do bilhete de ida apenas no bolso,e as lágrimas orgulhosas que se recusam olhar para trás uma vez sequer.

A procura do reconhecimento ocupa a mente, e o esforço de integração numa sociedade de costumes e maneiras diferentes torna-se prioridade. Num turbilhão de desafios e novidades, fica na caixa por desempacotar as saudades.

A mágoa volta naquele dia que chega a todos, o dia em que (ainda que alguns o recusem reconhecer), nos sentimos emigrantes, em que entendemos que por mais perfeito e empenhado que seja o esforço de integração há sempre o olhar relutante, há sempre a maior exigência, há sempre a oportunidade de ser o escape fácil numa sociedade volátil onde o discurso de ódio floresce.

Percebe-se que emigrar faz-nos ser “da terra de ninguém” no primeiro instante em que alguma necessidade surge: emigrante bom é o que dá abnegadamente, sem nada pedir, nem aos de onde vem, nem aos que o acolhem...

Quando finalmente abrimos a caixa esquecida, das memórias e saudades, percebemos que à nossa lamúria “os nossos” passam a olhar-nos com ar recriminatório, culpabilizando-nos por ter desistido, como se fossemos despidos da cidadania por ter ousado recusar o castigo da austeridade.

A vontade de regressar torna-se o iceberg invisível, numa vida de pequenas conquistas, mágoas camufladas e uma integração frágil quanto gelo fino, pronto a quebrar em qualquer momento e lançar-nos nas águas turbulentas da convulsão social deste mundo.

O enredo requer uma reviravolta: Tive de voltar e eis que num ápice que teimava em passar demasiado devagar, o regresso dá-se, afinal o solo que queremos por debaixo dos nossos pés quer-se feito de amor, dos cheiros e sabores do meu país, e não do dinheiro que não comprará nunca o sentimento de pertença.

As notícias não poderiam ser melhores; entre promessas de recuperação económica, prosperidade, programas de incentivo ao regresso e um país de cara lavada, pronto a ser conquistado de novo.

O regresso faz-se no entanto pela porta do embuste e da precariedade: 15 anos de experiência profissional e um currículo académico enriquecido pouco mais valem que um vínculo precário. Quanto ao badalado incentivo, mais não é que uma manobra publicitária que vende um país de camisa e gravata, escondendo os calções velhos e os sapatos rotos: ironicamente pode-se candidatar ao programa de apoio apenas quem já encontrou o que mais falta no país: vínculos laborais estáveis.

Depois da vanguardista solução governativa, que conseguiu tombar ligeiramente a política à esquerda, o regresso é agora para ver que tudo passou de oportunismo, e a política que rompeu com a troika foi uma oportunidade para os socialistas que agora, com vitória mais robusta, rasgam a sua bandeira destes anos e assaltam o poder de braços dados, ainda antes de tomar posse, com os patrões e os grandes interesses financeiros.

Tristemente olha-se hoje no regresso, para um parlamento infestado da mesma praga que cresce noutros cantos do mundo: os Chegas e iniciativas liberais deste país são a prova que o discurso de ódio tem voz no parlamento português, escondendo nos seus programas, apenas para quem não quer ver, a destruição do estado social.

Igual permanece esta indiferença para com os que regressam, afinal somos o País que estigmatizou os retornados da guerra colonial. Não há compreensão, ficamos esquecidos pelo sistema e por tantos que nos rodeavam.

Dói na verdade, perceber que aos olhos alheios somos todos os emigrantes das visitas de verão e dos carros luxuosos, que vivem vidas cintilantes além fronteiras. Somos sim os emigrantes desprezados , sem serviços consulares que deem resposta, que têm de fazer um esforço hercúleo para votar (e ainda assim ver votos deitados ao lixo por manobras de quem teme a democracia, nomeadamente a macabra manobra do PSD que resultou na anulação de mais de 25% dos votos).

Somos sim os emigrantes que têm de tirar senha para ser Portugueses, deixados ao frio e chuva à porta dos consulados, que veem os seus filhos sem pátria pela dificuldade em registá-los, e que têm de pagar para que possam aprender português.

Não ser de lado nenhum leva-nos no entanto a sê-lo em todo o lado: entendemos o quão vital é delinear pontes transversais a todos os países, estados sociais e solidários que saibam cuidar de todos os que dele fazem parte. Coisas engraçadas que se discutem, aprendendo para a vida toda, com outros emigrantes, aqui e acolá, daqui e dali. Todos somos de algum lado e vamos a lado algum se este mundo não for de retornos mas sim de emigrantes e retornados.

Retornei para ser mais um, dos que já fui e parti para não ser, mas serei alguém para os que importam. Para os outros serei sempre um ninguém , nunca desistindo de lutar para que todos sejamos alguém.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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