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Democracia Energética

É chegado o tempo da mudança de paradigma energético, começando pelo principio de que no mundo actual o direito à energia é um direito fundamental, tão básico como todos os outros direitos constitucionais.

O capitalismo ao longo das décadas resulta numa cada vez maior acumulação dos meios de produção e capital. Em conjunto com a banca, talvez em nenhuma actividade económica isso seja tão visível como na da produção e distribuição de energia. Isso não é certamente fruto do acaso, uma vez que a propriedade do dinheiro e da energia são pilares importantes que suportam o sistema capitalista.

À sociedade do carvão sucedeu-se a do petróleo (primeiro com o óleo e mais tarde também com o gás natural) como meios energéticos estruturantes: para os transportes e para a geração de energia elétrica. Nestas sociedades, a forte concentração dos meios de produção num escasso número de empresas correspondeu não só à da própria evolução/depredação capitalista como também ao facto de estas fontes de energia estarem distribuídas de uma forma desigual pelo planeta.

No caso do petróleo, os 13 países da OPEP em conjunção com a Rússia, Noruega e Brasil detêm mais de 80% dos recursos “convencionais” (1) de Petróleo ao nível mundial. Em paralelo com esses estados, as grandes multinacionais “ocidentais” como a Exxon, Shell, BP, Chevron ou Total detêm uma assinalável cota de produção e sobretudo de distribuição de energia.

Não obstante tal hegemonia na produção e controlo sobre a distribuição, assistimos no último ano e meio a uma queda acentuada nos preços do barril de petróleo. Não pretendemos aqui fazer uma análise profunda das razões para esta abrupta queda, que têm sido abordadas em diversos artigos anteriores publicados aqui no “esquerda”. Importa, no entanto, sintetizar as razões num cumulativo de factores:

  • A queda dos mitos do “peak oil” (2) e do “planeta inesgotável”. Claramente o modelo capitalista de produzir-consumir-produzir baseado nos hidrocarbonetos está a conduzir à destruição da habitabilidade do planeta antes do esgotamento dos hidrocarbonetos.
  • Aumento exponencial da produção de gás e óleo de xisto nos Estado Unidos. Este factor conduziu a que os EU sejam um cada vez menor mercado para o escoamento da produção internacional. Para além disso, sempre que se pratiquem preços do barril de petróleo relativamente elevados (presentemente entre 60 a 70 dólares por barril) a produção de  gás e óleo de xisto torna-se economicamente viável, permitindo aos EU tornarem-se novamente um pais exportador de petróleo em directa concorrência com os demais.
  • Se é verdade que o conceito de esgotamento do petróleo está ultrapassado, também é notório que os custos de exploração e produção do petróleo “convencional” têm aumentado significativamente, sobretudo devido ao seu esgotamento nalgumas das regiões em produção há mais anos e à necessidade da sua procura em zonas cada vez mais remotas do planeta (mares profundos, ártico, zonas florestais, etc). Com a maior complexidade de exploração e produção aumenta também o seu impacto ecológico, comprometendo cada vez mais a relação entre a sócio e bioesfera.
  • Crise nos mercados. Com o escalar da crise financeira mundial, e o seu evoluir para uma profunda crise económica, tem vindo a acentuar-se um abrandamento do crescimento na China/Ásia, os motores da produção mundial e do consumo de petróleo.

É assim cada vez maior a dificuldade de maximizar os lucros na indústria petrolífera, uma vez que esta está muito ligada à cadeia de valor acrescentado da economia real e necessita de investimentos iniciais massivos com retornos a dez ou mais anos. Com a financeirização das economias, este modelo de negócio tornou a indústria petrolífera pouco atractiva para os mercados bolsistas que para obterem lucros no imediato têm de se “contentar” com operações especulativas de aquisição e venda de bens e empresas (3).

A r(evolução) tecnológica

Nas últimas duas décadas houve no entanto uma inexorável revolução tecnológica que permitiu um significativo aumento da eficiência e uma baixa de custos de produção de algumas formas de energia alternativas. Deixando de parte o óleo e gás de xisto, bem como a fissão nuclear, pelos seus mais que demonstrados riscos e impactos ambientais (4), podemos pois focarmo-nos nas energias solar e eólica como as mais desenvolvidas. A que, tarde ou cedo, outras como a da fusão nuclear ou das ondas e marés se poderão juntar.

A diversificação de “novas” fontes de produção de energia elétrica permitem agora um acesso verdadeiramente global às fontes energéticas, o que equivale a dizer que estão criadas as condições para uma redistribuição geográfica do domínio energético que possa conduzir a uma maior independência e até auto-suficiência energética de muitos países, regiões e comunidades.

Novos, mais versáteis e cada vez mais pequenos equipamentos de produção e utilização de energia desafiam o tradicional paradigma de mega empresas de produção com vastos sistemas de distribuição. Películas fotovoltaicas e outras evoluções técnicas alteram assim o cenário energético, colocando nos aparelhos, equipamentos ou estruturas a capacidade de serem autónomos energeticamente.

Aliadas as estas novas fontes de produção de energia está o desenvolvimento da capacidade de armazenamento (historicamente o “calcanhar de Aquiles” da produção de energia eléctrica) através do progresso tecnológico das baterias. Para além do reconhecido sucesso dos carros eléctricos com bateria, existem já em produção baterias que permitem armazenar numa casa a energia produzida em painéis solares instalados no telhado. A ligação à rede exterior torna-se assim apenas uma fonte auxiliar e talvez se torne no futuro completamente obsoleta.

Estamos assim em presença de mecanismos que podem permitir uma completa redefinição das relações de poder entre os actuais detentores dos meios de produção por um lado e os países e cidadãos por outro. A própria escala das redes de produção e distribuição energética irá reduzir-se, passando de um sistema global para múltiplos sistemas regionais e locais (5).

O novo paradigma

Claro está que, subjacente a esta mudança, está a destruição do sistema monopolista de produção e distribuição de energia. Esta é a razão pela qual os avanços na implementação das novas tecnologias limpas tem sofrido tanta oposição, mais ou menos explícita, por parte dos poderes económicos e políticos. As multinacionais tentam assim ganhar tempo até se colocarem numa posição de controlo sobre a produção e distribuição eléctrica baseada nestas tecnologias.

Os números falam por si, nos paises da OCDE por exemplo, a quota de produção de energia eléctrica a partir de energias renováveis (incluindo a hidroeléctrica) subiu de 20.6% a 21.5% de 2014 para 2015, enquanto a produzida a partir de combustíveis fósseis baixou apenas 1% no mesmo período, correspondendo em 2015 a 60.3% da produção eléctrica (6).

Esta lenta evolução do modelo actual não se está a traduzir numa maior democratização do acesso à energia eléctrica por um lado, nem é a necessária urgente resposta às graves questões climáticas.

É assim chegado o tempo da mudança de paradigma energético, começando pelo principio de que no mundo actual o direito à energia é um direito fundamental, tão básico como todos os outros direitos constitucionais. E como tal o papel de um estado democrático e desenvolvido é restruturar a cadeia de produção e distribuição de energia para que esta se dimensione e tenha como foco as pessoas e actividades económicas sustentáveis.

Esta restruturação passa por devolver a todos o que de todos é: a REN e a EDP. Estas devem ter um papel na produção e distribuição de energia eléctrica distintos dos actuais, focados sobretudo na descentralização e gerador de autosuficiências regionais e locais, quer para os indivíduos quer para as actividades económicas.
 
A trajectoria actual torna evidente que a próxima disputa de mercado nesta área será pela produção e distribuição de equipamentos. Compete a estas empresas, quer de modo próprio quer através da ligação às universidades e centros de investigação, ter um papel fulcral no desenvolvimento de tecnologias e patentes associadas a este modelo energético. A manutenção na esfera pública destes novos sistemas de produção e distribuição de energia e a evolução do acesso a ela como direito basilar e constitucional é uma responsabilidade da qual a esquerda não se pode demitir.


(1) Recursos “convencionais” são os obtidos através de perfurações por onde petróleo suficientement fluido flui naturalmente sem a necessidade de “estimulos” como a fracturação do reservatório ou a adição de diluentes.

(2)  A teoria de “peak oil” sustenta que a produção global de petróleo já terá atingido o seu máximo e encontra-se actualmente numa fase de gradual declinio devido ao esgotamento dos recursos naturais. Esta teoria derivou de uma formulação inicial feita por M. King Hubbert em 1956 e teve alguma aceitação até à revolucao introduzida pela produção do óleo e gás de xisto nos anos 2000.

(3) Teve pouco destaque na imprensa uma recente noticia dando conta da decisão do Fundo de Investimento da família Rockefeller de vender todas as suas participações nas indústrias de combustíveis fósseis. A decisão foi argumentada com a situação global insustentável do ponto de vista ambiental, bem como com a existência de alternativas mais viáveis do ponto de vista energético, e inclui duras criticas à actuação da petrolífera Exxon. Um outro fundo da mesma família tinha já anunciado a mesma intenção em Setembro de 2014. Convém esclarecer que a família Rockefeller é tão somente a herdeira de John D. Rockefeller, o “pai” da industria petrolífera, fundador da Standard Oil, empresa de onde derivam as actuais Exxon, BP, Chevron  entre outras empresas da industria petrolífera.

Claro está que as preocupações ambientais desta família e dos seus fundos nunca foram evidentes, ou não tivessem nos finais de 2014 mais de 50 biliões de dólares investidos em indústrias de combustíveis fósseis. O que motiva então esta decisão são razões económicas e de rentabilidade dos fundos de investimento descritas no texto.

(4) Poderíamos aqui também incluir a menos óbvia energia geotérmica devido à libertação de vapor de água em larga escala, um gás que também provoca “efeito de estufa”.

(5) Alguns sites que desenvolvem esta temática:
www.renewablecommunities.org/p/energy-democracy.html
cleantechnica.com/
medium.com/@JohnDuda/energy-democracy-community-320660711cf4#.r9k84qaay

(6) Fonte: Agência Internacional de Energia:
https://www.iea.org/media/statistics/Keyelectricitytrends2015.pdf

Sobre o/a autor(a)

Geólogo. Líder de exploração na indústria petrolífera
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