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Das trompas do juiz ... ao “escurinho” da sociedade...

O racismo ciganófobo e negrófobo é uma espécie de instituição que resulta da tradição filosófica e política que sempre considerou, e ainda considera, os negros e os ciganos como inferiores.

Entre os últimos seis meses do ano passado e o início deste, óbvias situações de racismos institucional e ordinário, ocorreram por este país fora. A absolvição do agente da PSP que assassinou KUKU (um jovem negro de um bairro periférico), a denúncia de agressões a um imigrante na esquadra da PSP de Leiria, as demolições em Santa Filomena, a cruel e insensível “ação de limpeza” efetuada pela polícia municipal em Sete Rios, o cerco policial ao Casal de Mira, as alterações dos regimes jurídicos de proteção social consagradas pelo decreto-lei 133/2012 que legitimou, entre muitas outras malfeitorias, a diabolização e estigmatização social dos beneficiários do RSI, nomeadamente ciganos, negros e pobres, a tenebrosa petição online sobre os animais dos ciganos na Marinha Grande, a recusa de servir ciganos na Casa do Benfica de Elvas, a forma como certa imprensa continua a tratar as e os imigrantes (a comprovar aí estão os acontecimentos na Quinta do Grilo, em Viseu, ou como falam sistematicamente das “máfias chinesas”, mesmo que os seus chefes sejam agentes bem caucasianos da PSP), as alterações à política de imigração introduzidas pela lei 29/2012 que criminalizou a imigração, a negação do direito ao subsidio de desemprego a um casal brasileiro pela segurança social no Porto, a “escravatura” de imigrantes a que se tem assistido no Alentejo, o sinistro fax da PSP de Almada a pedir a identificação e denúncia de alunos ciganos, a “sugestão” de laqueação de trompas de uma imigrante cabo-verdiana num acórdão de um tribunal de família de Sintra cujo processo redundou na retirada e institucionalização dos seus sete filhos, as declarações do Arménio Carlos sobre Abebe Selassié, o chefe do FMI em Portugal ou de Marinho Pinto sobre a comunidade brasileira,são todos factos que deveriam ser (e são-no de facto) mais que suficientes para um debate sério sobre o racismo em Portugal.

De entre todas estas ocorrências que são apenas uma pequena amostra do racismo que existe na sociedade portuguesa, a polémica sobre a laqueação das trompas e as declarações do secretário Geral da CGTP, Arménio Carlos, foram as que mais controvérsia e discussão geraram. E eis então que, nos últimos tempos, subitamente, o país se pôs a falar de racismo como se fosse coisa nova, como se não fosse constitutivo e ontológico da forma como sempre olhou para a diferença. No fundo, para o racismo! Como se alguma vez, Portugal, como qualquer outra antiga potência colonial e com aspirações neocolonialistas, tivesse feito uma rutura catártica com a espinhosa questão da “raça”!

Gastou-se assim rios de tinta e saliva. A indignação cínica e circunstancial transbordou por todas as margens políticas! Tivemos até herdeiros envergonhados do Estado Novo a indignarem-se e neoconservadores adeptos da “guerra das civilizações”, convictos da superioridade civilizacional ocidental, fingindo-se repentinamente defensores do cosmopolitismo a gesticularem! Na verdade, mesmo que dessincronizados, o certo é que os dislates subjacentes à narrativa do “escurinho” e da “laqueação das trompas” participam do mesmo princípio: o da pretensa superioridade cultural e civilizacional. E é disso que é preciso tratar para desmontar mitos com frontalidade e trilhar novos caminhos.

A patetice e a hipocrisia do debate roçaram o insulto às nossas inteligências!

O debate insuflou-se de cinismo e de desfaçatez entre os que teimavam em negar o óbvio e aqueles que enchiam o peito de certezas científicas na catalogação do racismo em termos de mero posicionamento ideológico. Porém, convém dizer que do lado das forças progressistas ou que se assumem como tal, a coisa não correu francamente bem.

Ora, entre a tibieza da condenação e a fuga para frente, houve quem, numa tentativa de banalização e de esvaziamento da coisa, até borregou: “O etíope é mesmo escurinho. E dizê-lo, como o disse Arménio Carlos (sou insuspeito) não é, nem de perto nem de longe, racismo”, (dixit João Soares).

Perante tal desfaçatez, lembrei-me do reformista americano Victor Berger, um dos fundadores do Partido Socialista da América, que dizia: “não há dúvida de que os negros e mulatos constituem uma raça inferior." E porventura, apetece mesmo perguntar: será que muitos ainda da tal dita elite progressista não pensa mesmo assim?

Pois bem, nem por mera coincidência histórica, já no XV, o alemão Jerónimo Münzer, num relato de uma sua passagem por Portugal, dizia: “Os etíopes andam sempre em guerra uns com os outros. Fazem-se mutuamente prisioneiros e vendem-nos por uma bagatela. [….]. O esperto do Rei português compra os escravos ao Rei vencedor, e, em seguida, por meio dos seus intérpretes e ajudado pelo mar, fá-los reconduzir à sua pátria e vende-os aos amigos deles por ouro, dentes de elefante e outras cousas.” “Há em Lisboa, como em todo o Reino, muitos negrinhos a quem o Rei obriga a praticar a religião cristã e a aprender a ler e escrever o latim; tenciona converter à nossa religião as ilhas de que é senhor e muitos outros domínios dos reis negros. Há já vários reis da Etiópia cujas boas graças ele obteve com presentes e outras cousas, que dizem que não adoram senão o deus do Rei de Portugal. […] Que grande quantidade de escravos negros se trazem todos os dias da Etiópia para Lisboa!”

Por certo, o atual chefe do FMI em Portugal, Abebe Selassié, tem obviamente melhor sorte que aquela que teriam os tais “negrinhos” de que nos falava Jerónimo Münzer. No entanto, o debate em torno do racismo ou não das declarações de Arménio Carlos, para além da questão da semântica entre “o escurinho” e “os negrinhos”, não deixa de ser curiosamente interessante pela proximidade, senão política, pelo menos histórica na forma como sempre as elites portuguesas lidaram com a dimensão cromática do racismo.

Ao longo destes séculos, em Portugal e por todo o ocidente, o racismo ideológico consolidou-se e aprofundou-se no racismo institucional que legitimou e ainda legitima o racismo sociológico. Em 1926, no Estatuto do Indigenato, podia ler-se “Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, os direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais. Não submetemos a sua vida individual, doméstica e pública, [...] às nossas leis políticas, aos nossos códigos administrativos, civis, comerciais e penais, à nossa organização judiciária.” E em 1929, o segundo artigo deste estatuto revisto dizia taxativamente: “os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nas colónias, não possuíssem ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses.”

O código genético do racismo que hoje alimenta a negrofobia e a ciganofobia patentes, ao longo da história, na produção legislativa do modelo de sociedade que se foi criando e, em que “a raça” sempre foi e continua a ser um elemento fundamental, assume hoje várias formas e tem, cada vez mais, uma expressão institucional muito preocupante.

Contrariamente ao que se pretende fazer crer sempre que eclode uma polémica sobre o tema, nem a abolição da escravatura, nem “as independências”, nem o “25 Abril”, nem a indisfarçável diversidade cultural resolveram as questões do racismo na sociedade portuguesa. O problema, de facto, é que o racismo ciganófobo e negrófobo é uma espécie de instituição que resulta desta tradição filosófica e política que sempre considerou, e ainda considera, os negros e os ciganos como inferiores.

É por isso que o que é assustador e preocupante na atual situação, é o facto de o presente ser uma espécie de regresso ao sombrio passado. Como é o caso, por exemplo, do fax da PSP de Almada, que visa alunos ciganos, ser tão velho como aquele decreto real de 1649 sobre os ciganos onde podia ler-se: “Eu El Rey ..... por se ter entendido o grande prejuízo e inquietação que se padece no Reino com huma gente vagamunda que cõ o nome de siganos andam em quadrilhas vivendo de roubos enganos e imbustes contra o serviço de Deus e meu. Demais das ordenações do Reino, por muitas leis e provisões se precurou extinguir este nome e modo de gente vadia de siganos com prizoens e penas de asoutes, degredos e galés, sem acabar de conseguir; e ultimamente querendo Eu desterrar de todo o modo de vida e memoria desta gente vadia, sem asento, nem foro nem Parochia, sem vivenda propria, nem officio mais que os latrocinios de que vivem, mandey que em todo Reino fossem prezos e trazidos a esta cidade [Lisboa], onde serão embarcados e levados para servirem nas comquistas divididos...”

No século dezoito do passado milénio, os ciganos eram punidos com açoites e degredados por dez anos para as colónias por apenas serem ciganos, como atesta um decreto real que rezava: “Hei por bem, e mando que não haja neste Reino pessoa alguma de um, ou de outro sexo, que use de traje, língua, ou giringonça de ciganos, nem de impostura das suas chamadas buenas dichas; e outrosim, que os chamados Ciganos, ou pessoas que como tais se tratarem, não morem juntos mais, que até duas casas em cada rua, nem andarão 37 juntos pelas estradas, nem pousarão juntos, por elas, ou pelos campos, nem tratarão em vendas, e compras, ou troca de bestas, senão que no traje, língua e modo de viver usem do costume da outra gente das Terras; e o que contrário fizer, por este mesmo fato, ainda que outro delito não tenha, incorrerá na pena de açoites, e será degradado por tempo de dez anos; o qual degredo para os homens será de galés, e para as mulheres, para o Brasil.”

Lembrar estas sinistras páginas da nossa memória coletiva consiste em lembrar tudo aquilo que todos nós já sabíamos mas que fingimos esquecer ou tentamos banalizar, ou seja, a existência do racismo.

Objetivamente não se pode falar do racismo no passado. Porque o racismo, não só não passou, como continua bem presente. E porque infelizmente, por detrás de cada ato administrativo, de cada iniciativa legislativa e de cada decisão política sobre as minorias étnicas, está “o racismo como albergue selvagem do humanismo europeu, a sua besta” e está coberto com “o sombrio véu da cor” da pele ou da diferença cultural.

É o que, por exemplo, evidencia a retirada dos filhos da Liliana, a imigrante cabo-verdiana a quem o Estado decidiu retirar sete filhos. Segundo consta, ainda que num ambiente familiar obviamente com dificuldades económicas e com privações, Liliana mantinha uma relação saudável e “normalíssima” com os seus filhos como a maioria das famílias pobres deste país. Liliana recusou por razões estritamente pessoais e que só lhe assistem a ela a injunção de laquear as trompas para não ter mais filhos, mas o juiz entendeu que ela “tinha de deixar os seus hábitos e tradições em África e que aqui tinha de se adaptar.”

Mas na verdade, a questão essencial aqui é que Liliana é o retrato máximo das desigualdades e um somatório de precariedades, ela é não só mulher, pobre e desempregada, é sobretudo imigrante, muçulmana e negra! A história da Liliana é a história da transversalidade das discriminações que, neste caso, junta ao machismo, a precariedade e o racismo. Na verdade, mesmo que dessincronizados, o certo é que os dislates subjacentes à narrativa do “escurinho” e da “laqueação das trompas” participam do mesmo princípio que é o da pretensa superioridade cultural e civilizacional. E é isso que é preciso tratar porque, de facto, as áreas que devem precisamente potenciar e estruturar o trajeto inclusivo e cidadão na sociedade, como sejam, a educação, a habitação, a saúde e o emprego, são aquelas onde, efetivamente, as comunidades ciganas e negras em Portugal são mais prejudicadas.

As discriminações são construções políticas que operam como mecanismos de controlo social, por via da diminuição, da estigmatização e da homogeneização normalizadora e castradora do direito à diferença. Por isso, o desafio é imenso e consiste em recusar cair no embuste que consiste em fazer do silêncio, a estratégia política e ideológica do branqueamento ou da negação do racismo. Não temos o direito de nos calar e não podemos calar o racismo.

Entre assobiar para o lado, invocar qualquer pretensa superioridade moral, ética, intelectual e ideológica ou desvalorizar e/ou relativizar qualquer expressão de racismo - venha ela donde vier, porque em termos práticos, a diferença é nula -, significa simplesmente contribuir para cultivar o consenso social e político sobre o mesmo. O que é de todo inaceitável.

Num contexto de generalizada e brutal despolitização e de banalização do racismo ideológico é preciso responder com firmeza e inteligência ao simplismo retórico e teórico sobre o facilitismo das dicotomias. Lamentavelmente o racismo, tal como o machismo e a homofobia, está à esquerda e à direita, porque sociológica e culturalmente a narrativa conservadora reacionária ganhou hegemonia social e política. É, portanto, necessário um combate cultural contra-hegemónico para resgatar os combates contra o racismo, o machismo e a homofobia dos espaços lacunares da disputa política. Porém, pelo que se disse, ouviu e entendeu das últimas polémicas sobre o tema, parece que a questão ou não interessa ou, taticamente, não convém! Ora isto é fazer o jogo do adversário.

Pois, em Portugal, o racismo oscila numa constante esquizofrenia entre saudade do passado e procrastinação de futuro! O que tem um país onde espreita uma secreta e envergonhada vontade de resgatar Salazar, que ainda se curva perante a retórica saudosista de um passado colonial criminoso, um país e uma elite que se atreve ainda a saudar Jaime Neves e Kaúlza de Arriaga, algumas das figuras mais sinistras deste colonialismo, a dizer sobre racismo? Até agora, um conjunto de banalidades que negam a evidência que é a existência do racismo.

É preciso romper com o consenso sobre a hipocrisia e o cinismo políticos que querem impor uma narrativa pós-racial, sem ainda ter resolvido a questão do racismo. E é preciso que se diga que, em Portugal, há racismo! Para que não se pense que a luta anti-racista é uma quimera ou um mero capricho de uns tantos lunáticos.

E o que não se pode de todo fazer é não tomar posição sobre qualquer forma de manifestação de racismo por taticismo político, ou cair no fácil comodismo que consiste em sempre achar que Portugal é menos racista de que os restantes países europeus – como se alguma vez fosse admissível medir a imbecilidade e/ou relativizar a barbárie.

Parece evidente que o lado instrumental e folclórico do debate sobre ruído em torno das declarações de Arménio Carlos, a celeuma em volta do caso da Liliana e o ensurdecedor silêncio acerca das sistemáticas violações dos direitos das minorias étnicas em Portugal, deve ser um alerta para que a discussão, mais uma vez, não caia no imenso vácuo da negação nem da autossuficiência mas sim, que crie as condições para um verdadeiro espaço na sociedade portuguesa de luta política contra o racismo!

O combate contra o racismo é uma exigência democrática. Ou será exigir o impossível, reclamar toda a intransigência contra todas as formas de discriminação?

Sobre o/a autor(a)

Dirigente de SOS Racismo
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