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Das esquerdas...

Diz Vital Moreira (VM) no Público que há duas - a dele e a do BE /PCP - e que "o que as separa é mais do que o que as une".

Bom, só duas não serão, mas o meu estimado amigo gosta de simplificar as coisas, por facilidade de argumento. Tendo, contudo, a concordar com ele enquanto me lembrar do PEC apresentado pelo seu governo. Poderia, até, acrescentar, sem excessiva liberalidade, que "o que une hoje o governo às direitas é bem mais do que o que os possa dividir". Deixem para lá o folhetim das primárias PSD, onde cada um procura mostrar mais músculo do que o outro, e concentremo-nos no PEC que Cavaco Silva abençoará depois de ungido por Durão Barroso. O PEC é, de facto, o cimento que separa as águas.

VM cultiva a escrita ordenada e gosta de começar pelo "era uma vez". Diz ele que antes da crise financeira estávamos bem, assentes na "trilogia da disciplina das finanças públicas, da modernização do país e da consolidação e aprofundamento do Estado social". Cada um vê a realidade à luz da cadeira em que se senta. Eu poderia tentar explicar ao meu oponente que boa parte da população portuguesa nunca viveu senão em cenário de crise e com vidas em crise. Mas é capaz de ser melhor cingir-me às estatísticas que registam a quebra do poder de compra dos salários desde 2003, ou as que medem a "modernização do país" comparando as taxas de crescimento do PIB per capita entre os países da zona euro e Portugal: desde 2002 foi sempre a divergir. De facto, a divergência começa no diagnóstico, ele culpando a crise internacional, eu sustentando que esta cavalgou a que já cá estava. Mas deixemos o passado, que aliás convoca igualmente as responsabilidades da direita e muito em particular Cavaco Silva, o maior de todos os "despesistas", e passemos ao futuro, que é disso que trata o PEC.

Jura VM que o documento é "credível e em geral socialmente justo". Acrescenta que fez "as escolhas que menos penalizam a economia" e, pasme-se, "os grupos sociais de menores rendimentos". Exulta, até, porque "sobrecarrega quem mais pode". Para este tipo de dislates os brasileiros têm uma piada - só contaram p´ra você. Eu acho simplesmente que o meu colega foi contaminado pela "cegueira dos de cima", muito comum em Bruxelas. Vital não percebe, sequer, o erro em que incorre. Com estes argumentos, ele não ataca a "segunda esquerda", a façanhuda, mas os seus camaradas de partido, de Manuel Alegre a Mário Soares, de João Cravinho a Vera Jardim, passando por mais não sei quantos que se têm oposto às privatizações, aos cortes nos programas sociais e à falta de coragem para taxar a realização de mais valias em bolsa. No afã de defender o chefe, Vital, convertido à ortodoxia, não é mais do que uma pálida imagem dos seus tempos de heterodoxia. É pena.

Miguel Portas, artigo publicado no jornal Sol de 26 de Março de 2010

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputado, dirigente do Bloco de Esquerda, jornalista.
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