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A culpa de Merkel e a ganância espacial

Enquanto fogem nas suas naves espaciais, os mais ricos deixam para trás o resto da população, condenada a viver o fim dos seus dias num planeta exaurido. A ficção científica corre o risco de se tornar realidade.

O reconhecimento vem do centro da Europa e o seu simbolismo não podia ser maior. Angela Merkel, na sua última grande conferência de imprensa enquanto chanceler alemã, assumiu que não fez o suficiente para cumprir as metas climáticas do acordo de Paris. É uma crítica à Alemanha e à União Europeia. É a confissão da culpa, feita pela principal voz da elite política europeia, no falhanço face ao futuro do planeta e das jovens gerações.

Sabemos que a consciência está pesada pelos trágicos acontecimentos, as cheias que vitimaram centenas de pessoas na Alemanha e na Bélgica. Não se ouviram com atenção os cientistas, fizeram-se ouvidos moucos aos jovens, mas não é possível calar o planeta. E é quando o planeta se queixa que percebemos a real dimensão do problema: já não é uma coisa de teóricos, não afeta só uns quantos países – tem um impacto global e consequências devastadoras. As alterações climáticas estão aí.

Não é só na Europa que assistimos aos efeitos das mudanças climáticas. Os cientistas dizem que a recente onda de calor no Canadá matou milhões de animais marinhos e, em algumas regiões, a exposição à luz solar foi o suficiente para cozinhar mexilhões vivos. Nos EUA, as temperaturas escaldantes batem recordes, os incêndios estão descontrolados e as nuvens de fumo cobrem todo o país, percorrendo milhares de quilómetros da costa oeste à costa este. Do outro lado do oceano Pacífico, na China, as chuvas intensas batem recordes – os túneis do metropolitano na cidade de Zhengzhou ficaram subitamente inundados levando à morte de, pelo menos, 25 pessoas. No Irão, a seca está a levar a população ao desespero e a protestos nas ruas que só a brutalidade da polícia consegue reprimir. E são só alguns exemplos.

Mas, enquanto milhões lutam contra as alterações climáticas, há uns quantos, uma mão cheia deles, que querem sair daqui rapidamente. Até parece um filme, o enredo já não é novo: numa sociedade distópica, a elite que beneficiou da hiper exploração prepara a sua fuga de um planeta em agonia – enquanto fogem nas suas naves espaciais, os mais ricos deixam para trás o resto da população, condenada a viver o fim dos seus dias num planeta exaurido. Mas a ficção científica corre o risco de se tornar realidade.

A recente corrida ao espaço, ambientalmente absolutamente irresponsável, é disso exemplo. A disputa entre os milionários astronautas é, além de disparatada, um hino ao egoísmo, a ilustração da completa ausência de empatia com o resto da humanidade. Mas é, também, a procura de novos negócios. Almeida Garrett perguntou há quase 200 anos quantos pobres seriam necessários para fazer um rico e, se as desigualdades das últimas décadas criaram biliões de pobres, também é verdade que levaram à concentração pornográfica de dinheiro em fortunas imensas que procuram novas formas de o gastar. Uma feira de vaidades avaliada em mais de 200 mil milhões de euros, é esse o valor potencial do novo negócio do turismo espacial e que prometem ir crescer rapidamente.

No momento em que as alterações climáticas se agigantam, em que por exemplo a limitação de voos comerciais de curta distância começa a ser equacionada, o novo negócio das viagens espaciais é mais um ataque ao futuro do planeta, a emissão de mais gases com efeitos de estufa e uma nova machadada na camada de ozono. Estes voos espaciais não têm qualquer intenção científica, são mais uma forma de aumentar os já gigantescos lucros, passando a fatura ambiental ao resto da humanidade.

Num momento em que as desigualdades são crescentes, o capricho destes milionários é um insulto a todos nós e só pode gerar indignação com o sistema selvático que lhes permitiu enriquecer

Num momento em que as desigualdades são crescentes e a pandemia fez disparar a pobreza, o capricho destes milionários é um insulto a todos nós e só pode gerar indignação com o sistema selvático que lhes permitiu enriquecer. Houve um liberal da praça que correu às redes sociais gritar, perante quem se revoltava com estes milionários, que “todas as mudanças tecnológicas que mudaram o mundo para melhor começaram como luxos especulativos”. Além da falsidade histórica da afirmação, comprovável por qualquer aluno do secundário, faz por ignorar que a especulação destes milionários já começou com a forma como os seus negócios foram criados, a fuga recorrente ao pagamento de impostos apesar das imensas fortunas, a exploração desumana dos seus trabalhadores, e o permanente desrespeito pelo planeta.

Artigo publicado no jornal “Público” a 23 de julho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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