Estou sem imaginação para escrever esta crónica, o que também não é tema, de tão glosada a angústia do cronista fatigado perante a alvura do papel expectante. Podia falar do selo fascistoide do Papa timoneiro, de costas voltadas para criançada nacionalista, com o menino negro ajoelhado a rezar. Era demasiado fácil e já todos o fizeram. Podia, talvez, sem originalidade, juntar-me à indignação dos que vociferam contra a peregrina decisão do Ministério da Educação de obrigar alunos do 2º ano a fazer as provas de aferição no computador, completando a domesticação digital das mentes infantis. Podia – porque não? – dissertar sobre o Grande Esquecimento – o de aqui e de agora, da dispersão rizomática, do escapismo dilacerante, das experiências instagramáveis, do nariz metido no telemóvel, ciborgues que somos, onde começa a pessoa e acaba a máquina? Podia. Mas seria fatalista e decerto não contribuiria para a esperança. Contudo, saltitar de ideia em ideia é um inventário de tentativas, não o tecido de uma crónica.
Podia falar do aluno que hoje se me dirigiu, frágil e titubeante, no final da aula, contando-me da sua emoção ao ler “Poverty, By America”, do sociólogo norte-americano Matthew Desmond, pois também ele e sua mãe estiveram em situação de pobreza, como não, uma mulher solteira desempregada e um filho, em Portugal? De como se sente deprimido e isolado, sem à-vontade para falar, distante dos seus colegas, que não leem, um bicho estranho na toca dos coelhos que se ocupam a cavar cada vez mais fundo a própria toca. Deixei-lhe um endereço de email e palavras de alento, que mais podia fazer, tinha um almoço e a seguir uma reunião.
Esta é uma crónica fracassada (ou a crónica de um fracasso? Ou o fracasso de um cronista?), já não tem volta. Só um poema a pode salvar, como Deus ex-Machina. Talvez. Um poema que fale da tessitura de uma manhã; de como o canto de um galo precisa do canto de outro e assim sucessivamente, erguendo o dia. Um dia onde cabem todos. Um poema-fio-de-luz.
João Cabral de Melo Neto no final da crónica.
Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão
Artigo publicado em Gerador a 18 de maio de 2023