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Consenso, dizem eles

O consenso exigido pelos defensores da austeridade eterna significa a resignação perante a injustiça.

Na altura em que a recessão se acentua e o país parece caminhar para um buraco sem fundo, repetem-se as tentativas de unificação nacional em torno do programa de ajustamento. O Presidente da República deu o mote desse discurso, quando pediu aos portugueses que criassem um “consenso social” sobre os sacrifícios exigidos. A expressão seria retomada pelo primeiro-ministro, ao exigir um “consenso alargado” que garanta a credibilização do país junto dos credores internacionais. Também um responsável do FMI em Portugal veio recentemente defender que a diferença entre a Grécia e Portugal é a existência, no segundo caso, de um consenso que permite dar estabilidade à aplicação das medidas de austeridade. E até António José Seguro, numa expressão que classificará melhor a direção do seu partido do que qualquer outra força política ou institucional, considera que o relatório encomendado ao FMI para destruir o Estado Social é “mais um golpe no consenso social e político”.

A razão primeira do ressurgimento deste discurso em Portugal é o facto de tudo estar a correr mal nas contas das direitas. Já nem o próprio governo acreditará nas suas previsões: em 2011, Passos Coelho prometia um “orçamento de estabilização da economia portuguesa” e, no início deste ano, o governo voltava a garantir a “inversão do ciclo económico” e a “preparação da recuperação económica do país”. O otimismo governamental foi sempre desmentido pela realidade da crise: o Banco de Portugal prevê a queda da economia portuguesa na ordem de 1,9% este ano (o dobro da previsão do governo), com o consumo interno a descer e a dívida pública a aumentar (atingindo valores na ordem dos 120% do PIB). A pressão para o controlo das contas públicas é feita no exato momento em que o Estado tem uma diminuição de receitas imposta pela queda da economia e (deveria ter) um aumento das despesas por via das funções sociais do Estado. Nas vésperas da sétima avaliação da troika, a estratégia de antecipar os sacrifícios para mostrar resultados a Bruxelas e a Berlim falhou redondamente. Pelo caminho, deixou um país destruído e um governo deslegitimado.

A expressão não é nova, nem tão-pouco é utilizada exclusivamente no contexto português. O próprio FMI encontrou, no final da década de 1980, os seus fundamentos ideológicos no chamado “Consenso de Washington”. A ideia deste acordo seria a de promover o ajustamento macroeconómico dos países dependentes considerados arcaicos, combinando medidas de redução da despesa e de liberalização das economias, por via da desregulação. Em todos os contextos em que foi aplicada, esta política foi a face mais brutal do liberalismo económico: em nome da meritocracia instauraram-se regimes sociais de direitos mínimos e as funções sociais do Estado foram sendo gradualmente substituídas pela assistência caritativa. Sabemos hoje que a euforia do paraíso prometido pelo neoliberalismo mais não é do que a destruição das economias nacionais em nome da liberalização dos mercados.

Se a tentativa de criar esse consenso sobre a austeridade é uma questão de sobrevivência política, assente num programa que sonha com a reconfiguração de toda a sociedade, esta é garantida em grande medida pela imposição de limitações efetivas à pluralidade de expressão política e económica numa parte significativa dos meios de comunicação social. A falta de pluralidade, mais do que definir o conteúdo do debate, estabelece os parâmetros em que este debate se desenvolve. E é assim que os economistas encartados, sob a capa da neutralidade e imparcialidade, repetem em uníssono que “os portugueses viveram acima das suas possibilidades” – acrescentando imediatamente, num tom inquietantemente propositivo, que a única solução viável é “cortar nas gorduras do Estado”. Entre o início da crise e o momento atual, houve uma transferência progressiva de responsabilidades do sistema financeiro desregulado para a esfera das dívidas soberanas. Este discurso produz hegemonia e reorganiza em seu benefício as agendas de discussão pública. Só assim se compreende que a aparente falência do ideário neoliberal se tenha subitamente transformado numa contraofensiva contra o Estado e os direitos constitucionalmente consagrados.

O problema é que a “inevitabilidade” tantas vezes proclamada não encontra sustentação no país real. A precarização do trabalho destrói qualquer tipo de estabilidade das relações laborais e condena gerações a uma vida a prazo. A pobreza regressa a níveis que nos fazem recuar várias décadas e o desemprego atinge máximos históricos, sobretudo entre os jovens. Paralelamente, as sete maiores fortunas portuguesas aumentaram 13% em 2012. A austeridade é hoje a forma mais brutal da luta de classes, nos exatos termos em que o multimilionário norte-americano Warren Buffet a definiu: “Há de facto uma luta de classes, mas é a minha classe, a classe rica, que está a fazer a guerra e estamos a ganhar.” O objetivo da elite europeia não é responder à crise, nem sequer estancar a dívida pública. A austeridade transforma profundamente o paradigma das relações sociais tal como as conhecemos hoje, assumindo-se como um instrumento que garante a acumulação de capital. O consenso exigido pelos defensores da austeridade eterna significa a resignação perante a injustiça. Não lhes faremos esse favor.

Sobre o/a autor(a)

Estudante. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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