Está aqui

Com elas no sítio

O sítio das mulheres tem de ser o lugar dos direitos, o lugar da dignidade e – mais – o lugar da realização individual e coletiva e – ainda mais – o lugar do poder, do poder democrático e responsável.

Os problemas políticos mais demorados para resolver são os mais interessantes” (Borgen)

Confesso que me debati imenso sobre o que poderia trazer como ideias desafiadoras para este debate. Sabia que as camaradas que me acompanham estariam em melhores condições para apresentar as propostas do Bloco de Esquerda e que um diagnóstico da – assim chamada – “condição da mulher” em Portugal, por mais fundamental que seja, não nos levaria mais longe do que provavelmente todas sabemos.

Por outro lado, tendo eu inventado o título desta sessão – que esperava que fosse objeto de polémica e considerado “de muito mau gosto”, gostava muito até que não feministas e feministas me insultassem por esta escolha -, sentia e sinto a responsabilidade de responder à questão que ele implicitamente coloca. Ou seja, quem são elas e qual o sítio delas, sendo que ambos os termos são formulados num registo de desafio a uma noção de poder que é sempre declinada no masculino.

E pareceu-me, então, que era justamente sugestões para a construção, nem que seja utópica, deste sítio “com elas”, deste sítio “das mulheres”, que eu queria falar. Porque sou feminista, acredito no feminismo como um processo profundo de transformação social, e acredito que, sendo obrigatório agir em multiplíssimas frentes com uma agenda ativista firme e rigorosa, este é um processo intrinsecamente político, no qual os partidos políticos desempenham – e ainda bem – um papel fundamental. O Bloco de Esquerda é um “sítio” em que elas – as mulheres e as estratégias desta utopia – estão em pleno, e por isso aqui me reconheço. Mas é preciso refletir, também numa perspetiva autocrítica, sobre as posições, as opções e os discursos que nos convertem nesse “sítio com elas”, o que nos distingue dos outros e das outras e o que nos pode fazer ir mais longe.

Uma coisa que o Bloco de Esquerda nunca teve e nunca terá é uma secção de mulheres. Vários partidos a têm e os que não têm, como Marinho Pinto (que aliás, nem tem partido nem mulheres para compor uma secção), propõem a criação de um Ministério da Mulher. Com ou sem este nome, o “sítio” que a “elas” é designado, é semelhante. De facto, a causa das mulheres, o feminismo, encontra, porventura, um dos seus maiores obstáculos na apropriação de uma agenda para as mulheres pela generalidade dos partidos de todo o espectro político. Uma agenda que se apresenta como feminina (seja lá isso o que for), e que pode passar por feminista, um feminismo bondoso, bem-intencionado, ao qual é difícil apontar o dedo, mas que não é mais do que uma daquelas formas de arrumar as mulheres para um canto da política: ou como ornamento (ficam bem); ou ocupando, por força de lei, lugares nas listas eleitorais, que correspondem a mandatos que jamais irão assumir; ou, quando os assumem, a cuidar de miudezas – elas que tratem das creches, das esmolas aos pobrezinhos, dos problemas das mães (só de algumas), da conciliação da família com o trabalho, em suma, uma série de papéis que reproduzem e reforçam os papéis sociais de género, numa perspetiva conservadora. Quando analisamos com atenção, no Bloco de Esquerda, o trabalho notável da Mariana Mortágua, da Marisa Matias ou da nossa candidata a primeira-ministra, Catarina Martins, bem como das restantes deputadas, autarcas, e militantes de Norte a Sul do país, sabemos que, aqui, não é esse o “sítio” “delas”. Mas sabemos sobretudo que esta agenda boazinha para as mulheres está longe de se fundamentar numa conceção plena de igualdade e numa ideia de transformação profunda dos papéis sociais e das representações culturais dos sexos. Estas implicam superar todos os tipos de paternalismo que menorizam as mulheres e todos os preconceitos que constrangem as suas escolhas, seja qual for o sítio em que se encontram, em termos de classe social, raça, sexualidade, idade, ideologia, religião, ou outras. Isto é manifesto quer nas propostas políticas concretas, quer nas contradições mais subtis em que mesmo os programas e as iniciativas de aparência mais progressista se enredam, nos atos tão falhados quanto reveladores dos seus discursos e da sua retórica.

Talvez, neste contexto, não valesse a pena falar da direita, tão ostensivamente opressora e violenta para as mulheres é a sua agenda. Mas vale a pena falar da direita, justamente porque na retórica sorridente de Passos Coelho e Paulo Portas, um patriarcalismo do tempo da velha senhora funde-se com a hipocrisia beata dos valores sacrossantos da família conservadora e com cheiro a mofo, e com um nacionalismo xenófobo que não é diferente do salazarento Deus, Pátria e Família. As mulheres estão no sítio de reprodutoras, parideiras, fadas do lar, e garantes da sustentabilidade da “raça portuguesa”. Vale a pena falar da direita porque nunca é demais sublinhar a violência de quem nos quer reenviar para o espaço doméstico, retirar-nos as mais fundamentais das liberdades, e limpar o país de todos os “desvios” em relação a uma norma do português e da portuguesa que é branca, católica, heterossexual, que casa e procria, que paga e aguenta honradamente a austeridade por dever patriótico, e em que quem mais cala, mais sofre e mais aguenta são as mulheres. E vale a pena denunciar a direita pela violência e crueldade da sua moral reacionária e hipócrita: aquela que converte o ato da IVG numa espécie de via-sacra para um ato de fé em que as pecadoras dos nossos dias devem ser queimadas, via-sacra em que veem os seus corpos invadidos por toda a espécie de coações e ingerências tangíveis e simbólicas.

Mas se, aqui, o combate é tão imprescindível e tem de ser tão forte quanto um valente PAF!!! bem no sítio, não podemos deixar-nos levar por aqueles que, com algumas diferenças, são, na realidade, mais iguais do que desejaríamos; aqueles que ficam, por isso, muito aquém da transformação social profunda que tem de ser o nosso projeto feminista. Como é compatível a garantia dos direitos e das escolhas, se são destruídas as condições materiais para o seu exercício pleno? Quem, à austeridadezona que vivemos, opõe apenas a austeridadezinha light, pode falar de direitos? Quem, na sua austeridadezinha só aparentemente light, continuará a destruição do Serviço Nacional de Saúde, da Educação Pública e da Segurança Social, poderá falar em políticas de igualdade? O “nosso sítio” não é claramente ali.

Definir o nosso sítio torna-se mais claro se descermos a problemas concretos. Já falei da IVG. Vou falar agora da tal violência a que geralmente se chama doméstica. A dimensão do problema, atualmente, no nosso país tornou forçosa a sua inclusão nos discursos dos partidos de todo o espetro político. Com 24 mulheres mortas, é realmente difícil não falar em flagelo –“ que chatice! Lá temos nós de falar desta coisa e arranjar aqui uma frase que até fique bem na fotografia”. E sempre saem duas coisas: ou o consolo auto-complacente de que “no Irão é que as mulheres são oprimidas, aqui está tudo bem, feminismo para quê, se afinal as mulheres até já podem fazer tudo, fossem para lá e viam como era”… e a toada poética e cavalheiresca de que “numa mulher não se bate nem com uma flor”, como li ontem num outdoor tão bonzinho quanto patético da JSD de Miranda do Corvo. Esta toada é a mesma que converte o 8 de Março de um dia que assinala o combate pelos direitos das mulheres no dia em que se oferece um ramo de rosas ou uma peça sexy de lingerie à mulher que se quer rainha…, mas do espaço doméstico. E, perdoem-me a provocação, isto é capaz de não andar tão longe do Irão como parece, exceto na escolha do vestuário feminino (até que ponto um baby doll é uma burka?) e no facto de os nossos patriarcas não usarem as barbas das hordas muçulmanas. O nosso “sítio” não é o da domesticação pela flor nem o do corpo que “se prepare, que eu vou-lhe usar” do Coronel Jesuíno, de Gabriela. Nem o da “coitadinha” da vítima, cujo agressor é sempre um homem normal, calmo, bom pai e bem inserido socialmente, a quem “passou alguma coisa pela cabeça”. Nem o daquela brasileira, agredida por um polícia, com quem este mantinha uma relação extraconjugal, e que porque é estrangeira, provavelmente negra, e “a amante” nem chega a merecer a consideração de vítima. Nas entrelinhas deste discurso soa sempre algum eco de eventual culpabilidade da mulher agredida e a complacência perante o agressor. Soa um conceito de relações “conjugais” tão estreito que está a anos-luz de apreender as dinâmicas sociais e a complexidade do problema na contemporaneidade, mas salvaguarda o sacrário da domesticidade e do lar, a bondade da união monogâmica e heterossexual, como se o casamento não fosse desde sempre território de intenso exercício de práticas de dominação machista, como o ditado “entre marido e mulher, não metas a colher” denuncia. Neste discurso, mesmo no de aparência progressista, raramente soa a consciência da causa real desta violência “doméstica”, enraizada profundamente nas mentalidades e numa organização desigual da sociedade que dita para as mulheres um “sítio” sem dignidade humana. No discurso da “vítima”, que é o discurso da comiseração, encontramos a autocomplacência do feminismo liberal e de muito feminismo dito de esquerda, em que as “emancipadas” fazem o combate das “outras”, como se a classe social, a formação superior, a autonomia financeira nos pusesse a salvo da violência ou de qualquer outra forma de sexismo. Nesta conceção da violência doméstica e das suas vítimas, não cabem frequentemente, mesmo para a esquerda mais progressista, aquelas mulheres que “supostamente” teriam capacidade de resistir, de se afastar, de acusar o agressor – e que por razões muito complexas, mas em grande parte pelo estigma social de classe, não o fazem ou são desqualificadas no seu direito à justiça e à proteção, por não aparentarem a “vulnerabilidade” requerida. Não prestam nem para “vítimas” e ficam de fora de quaisquer políticas – “então a mulher não tem de ser frágil? E esta, que tem tudo, vai-se fazer de coitadinha?”. Neste quadro, as mulheres apresentam-se como um conjunto relativamente limitado de problemas sociais, de ordem prática e material. Perguntamos: e não é urgente resolvê-los? E não são prioritários? Certamente. Mas não podemos ficar por aqui. Porque se nos limitarmos a uma visão do sítio das mulheres como o conjunto destas questões pontuais, reproduzimos o status quo que as invisibiliza, discrimina e oprime. É quando percebemos que, mesmo depois de resolvidas as questões materiais, a violência e a subalternização persistem, que sabemos que não chega. É então que concluímos, sem margem para dúvidas, que a esquerda tem de ir muito além da “luta de classes”, porque a discriminação de género, mesmo que se cruze com tantas outras discriminações, persistiria certamente numa sociedade sem classes. É aqui que temos de alargar a nossa utopia e o nosso ativismo com um pensamento feminista radical – no sentido de ir à raiz da ideologia hegemónica que remete as mulheres para um “não-sítio”. E é aqui que sabemos que é este feminismo radical, articulado com tantas outras lutas, que pode distinguir os nossos combates. Os ditos “problemas das mulheres” devem ser enfrentados e combatidos como questões fundamentais de toda uma sociedade que rejeita a existência de subalternos e vítimas e assume a dignidade da pessoa humana como missão. O sítio das mulheres tem de ser o lugar dos direitos, o lugar da dignidade e – mais – o lugar da realização individual e coletiva e – ainda mais – o lugar do poder, do poder democrático e responsável (que não é necessariamente idêntico com a ocupação de um cargo político, mas pode e deve também sê-lo). O sítio de “com elas no sítio” seria, idealmente, aquele que tornaria este debate obsoleto, num espaço-tempo de democracia plena em que políticas de mulheres, políticas para as mulheres deixasse de ser necessário, porque teriam desaparecido as desigualdades, as opressões, as discriminações, as violências, as normas coercivas dos papéis socio-sexuais, e em que todos e todas fôssemos apenas e felizmente pessoas.

Texto apresentado no debate “Com elas no sítio. Mulheres, política e austeridade”, realizado em Coimbra, a 24 de Setembro de 2015.

Sobre o/a autor(a)

Professora universitária, dirigente do Bloco/Coimbra
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