Cidades solidárias contra o ódio: a propósito das “cidades-refúgio”

porHugo Monteiro

09 de setembro 2025 - 21:42
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Além de retomarem uma tradição de acolhimento exercida, muitas vezes no limiar da desobediência civil, estas “cidades-santuário” colocam o princípio ético-político da solidariedade para com as pessoas migrantes como identidade e como cartão de visita.

1. Caminhava-se para o final do século XX, na cidade de Estrasburgo. Salman Rushdie chegava à cidade francesa com um alvo invisível sobre si: a fatwa, decretada por Ayatollah Khomeiny, limitava-lhe a cidadania, numa condenação global à morte. A questão era séria e constituía um problema real para as cidades por onde Rushdie viajasse. É que, ao contrário de tantos outros milhares de degredados, provenientes de tantos sítios do mundo, a vida do escritor era considerada valiosa o suficiente para mobilizar recursos e interpelar a responsabilidade dos poderes locais.

Além das habituais precauções de segurança, a cidade de Estrasburgo adotou uma medida simbólica adicional: pelas zonas onde se previa a passagem de Rushdie e artérias adjacentes, trocaram-se as placas com os nomes das ruas, inverteu-se a toponímia e colocou-se o mapa ao contrário – para dificultar qualquer maquinação, o burgo abdicou da sua normal cartografia, suspendendo as suas próprias regras. A cidade redefiniu-se a partir de um critério expressivo: em vez de exigir a adaptação de quem chega, em vez de enjeitar responsabilidades ou, em última análise, mandar o viajante para o seu local de origem, reengendraram-se as regras supostamente mais imutáveis do edificado urbano. A cidade virou-se do avesso para se fazer porto seguro, salvaguarda da vida humana – de uma, pelo menos, para quem foi “santuário”.

A lógica das “cidades-santuário”, de certa forma, coletiviza esta receção de privilégio, afirmando um princípio de proteção justa a tantos outros, a tantas outras “Rushdies”: imigrantes, com ou sem documentos, com ou sem estatuto específico mediante a causa da sua deslocação. Além de retomarem uma tradição de acolhimento exercida, muitas vezes no limiar da desobediência civil, estas “cidades-santuário” colocam o princípio ético-político da solidariedade para com as pessoas migrantes como identidade e como cartão de visita.

2. Trata-se de um conceito antigo, reapropriado à medida dos desafios do tempo. Vingou especialmente nos Estados Unidos e teve consequências e alcances políticos diferentes ao longo da sua vigência. As “cidades-santuário” produzem leis e proporcionam recursos, de base local, que permitam uma proteção mínima a populações em trânsito, com ou sem papéis e independentemente da concessão formal da sua cidadania. Trata-se de um movimento urbano que, para lá da mera proclamação formal, tenta organizar redes de suporte entre cidades cujo desígnio prioritário é o de se definirem a partir de uma condição de solidariedade face a comunidades migrantes, legalizados/as ou não.

Nos EUA, cidades como Chicago, Los Angeles, Seatle ou San Francisco estabelecem, a partir deste estatuto, formas de oposição e de resistência às leis centrais de persecução de migrantes, que se constituíram como muralha, por exemplo, às políticas de Trump, desde o seu primeiro mandato. Mesmo que a sua ação se limite, por vezes, a priorizar as leis locais face a imposições centrais, as “cidades-santuário” têm sido um dos recursos – simbólicos, quando menos – de resistência urbana às políticas segregadoras MAGA. Ainda antes de Trump, permitiu impedir funcionários/as municipais e forças de segurança locais, na “cidade-santuário” de Nova Iorque, de fornecer dados de pessoas indocumentadas às autoridades federais, caso não estivesse em causa o reporte de atividade criminal. A medida durou, com maior ou menor aplicação, até que o paradigma securitário decorrente do 11 de setembro revogasse o que dela restava. Refira-se, porém, que ainda hoje algumas “cidades-santuário” têm justamente nas limitações à partilha de dados um foco importante da sua ação de proteção e resguardo. Seja como for, é na história dos movimentos sociais norte-americanos que se evidencia a dimensão mais vastamente política do conceito.

3. No princípio dos anos 80 e ao longo de toda a década, o chamado “sanctuary movement” tentou levar a cabo, a partir de algumas cidades dos Estados Unidos, ações solidárias de base local, de forma a proteger e a apoiar pessoas deslocadas provenientes, essencialmente, da América Central. Impulsionados pela necessidade de responder à ingerência opressora de sucessivos governos norte-americanos face às restantes américas, movimentos sociais herdeiros da luta pelos direitos civis e contra a guerra no Vietnam organizaram processos de acolhimento e de proteção de pessoas deslocadas face a leis centrais injustas, em lógicas muitas vezes no limiar da desobediência civil. A palavra “sanctuary”, retomada pela esquerda anticapitalista e movimentos indígenas, alguns fortemente marcados pela Teologia da Libertação ou outras espiritualidades que, no contexto da América Latina, se associaram à esquerda marxista na ação comunitária junto das populações mais pobres, tinha um impacto simbólico, mas apontava também para uma herança cultural.

O princípio é antigo. Tem raízes na ancestral tradição da hospitalidade “para além da lei”, presente nas grandes religiões monoteístas ou na grande literatura. Permanece, nalguns povos, como uma espécie de resto identitário, fortalecido pela sucessão do tempo e das circunstâncias. Em Gaza está em toda a parte (2025), Alexandra Lucas Coelho nota, mais do que uma vez, o modo como este reduto de hospitalidade permanece no povo palestiniano, como exemplo de um traço cultural comum a grande parte do Islão. Está também em Homero, na verdade, como está na Bíblia e contextualiza, até hoje, por exemplo, um certo pudor na intrusão repressiva das forças da ordem nos campiuniversitários ou nas grandes instituições dos saberes. Um “santuário” resguarda, desoprime, instiga uma justiça nem sempre compaginada com a imposição repressiva da lei vigente.

4. “Refúgio” e “Santuário” são palavras simbolicamente carregadas. Essa carga simbólica permite mobilizar a força da tradição numa bem presente exigência de justiça perante passantes, visitantes, peregrinos, caminheiras… “Cidades-refúgio”, como “cidades-santuário”, realçam a importância dos recursos e das comunidades locais como fontes de um acolhimento justo e integrado, que precedem e excedem o Estado enquanto instâncias de receção e de cuidado. Talvez seja essa a sua virtualidade política principal, ao convocar a missão do acolhimento de quem chega ao nível da “rua”, das organizações de base e da cidade vivida, colocando um desafio específico à democracia local, para além do formalismo e da burocracia. Permite, desde que com enquadramento e projeto, identificar, com mais evidência e enraizamento, uma agenda ética e política de base local, que possa corresponder aos desafios específicos de integração de uma determinada comunidade numa determinada cidade.

“Cidades-refúgio”, como “cidades-santuário”, realçam a importância dos recursos e das comunidades locais como fontes de um acolhimento justo e integrado, que precedem e excedem o Estado enquanto instâncias de receção e de cuidado

As experiências concretas de bairro, de rua, na coletividade e no café, constituem muitas vezes exemplos espontâneos de cidadania partilhada. Estes exemplos são, hoje, relativamente abafados pela onda mediática de xenofobia e pela agenda da extrema-direita, mas dizem respeito à interculturalidade real, de base popular e de inscrição local.

5. As condições concretas e simbólicas de acolhimento do/a Outro/a definem as cidades e definem-nos na cidade: na que temos e na que gostaríamos de ter, ponderando-se a distância entre uma e outra, mas também as lutas a fazer para diminuir essa distância, atenuar a injustiça, viver urbanamente na cidade de todos e todas. Qualquer cidade é, potencialmente, um viveiro democrático, um centro onde se disputa e concretiza a vontade geral, que ali é traída, ou cumprida, ou formulada, ou até multiplicada. Por ser materialização de pluralidades, de cruzamento de diferenças, uma cidade é maior do que a soma das suas instituições.

Perante quem chega, a cidade pode ser uma muralha agressiva, como uma ponte agregadora ou um repositório de solidariedade e entreajuda. No quotidiano das nossas cidades, nas “ruas do benformoso” ou nas “avenidas Fernão Magalhães”, cuja designação permanece indiferente a quem por elas caminha, a quem nelas trabalha, a quem nelas tão frequentemente está em perigo, há uma Europa em plena escalada xenófoba. É nas ruas dessa Europa que, de forma mais do que simbólica, são evidentes os efeitos de uma divisão suicidária e autofágica da classe trabalhadora. Expressa-se nos resultados eleitorais, nas paragens de autocarro, nos cafés, nas parangonas da imprensa tabloide… Como contrariá-lo?

6. O capitalismo foi especialmente eficaz no esgotamento e anulação da sua crítica, ao ponto de, como bem apontou Marc Fisher, invalidar sequer imaginar, hoje em dia, uma alternativa exequível.

A cidade, espaço privilegiado de educação democrática e de disputa política, é púlpito e laboratório de ensaio para alternativas: feixe de solidariedade organizada; santuário de diferenças

Torna-se imperativo, por isso mesmo, demonstrar a insustentabilidade de um sistema alimentado pelo isolamento individualista, onde uma rivalidade divisiva parece ser o motor de perpetuação de cidades desumanizadas e exclusivas. Ao definirem-se como realidades solidárias, “santuários” de preservação da dignidade de todos e todas, as cidades são o centro da luta anticapitalista na disputa de uma hegemonia social, potenciada como sociabilização de alternativas e como laboratório de soluções outras: apontam para espaços-outros; abrem os possíveis e a imaginação política.

A cidade, espaço privilegiado de educação democrática e de disputa política, é púlpito e laboratório de ensaio para alternativas: feixe de solidariedade organizada; santuário de diferenças.

Artigo publicado originalmente em Anticapitalista #82 – Setembro 2025

Hugo Monteiro
Sobre o/a autor(a)

Hugo Monteiro

Professor do Ensino Superior Politécnico, ativista
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