Bruxas e demónios

porJoão Teixeira Lopes

26 de março 2023 - 20:21
PARTILHAR

Ao assistir à peça As Bruxas de Salém, encenada por Nuno Cardoso, somos perfurados por uma lâmina inquietante: a narrativa (altamente ficcionada) do que aconteceu em Salém, Massachusetts, poderia ser transposta, a muitas outras situações.

Ao assistir à peça As Bruxas de Salém, encenada por Nuno Cardoso, mergulhando no texto do dramaturgo Arthur Miller, somos perfurados por uma lâmina inquietante: a narrativa (altamente ficcionada) do que aconteceu em Salém, Massachusetts, em finais do século XVII, poderia ser transposta, com as necessárias adaptações, a muitas outras situações em que as sociedades encontram os seus bodes expiatórios como forma de catarse ou purga coletiva. Está lá tudo: a divisão do mundo em puros e impuros; a diabolização (literal ou metafórica) de quem pensa de maneira diferente; a incapacidade de escuta dos testemunhos que não encaixam na ordem do discurso estabelecida após as primeiras acusações; a invenção de “factos alternativos” quando o que se diz não encaixa no que aconteceu e, acima de tudo, a definição de uma situação legítima de fala que engrossa a palavra (ou melhor: o poder da palavra) de todo o tipo de incumbentes que dela fazem um sacerdócio.

Quando “as evidências espectrais” passam a ser tidas como meio de prova (alguém que se declara possuído e exprime histericamente essa condição nomeia um outro que surge como o espectro que o faz sofrer) ninguém está a salvo e a desonra, a prisão ou a forca podem ser o irreversível destino. Como diz Nuno Cardoso, o encenador, as bruxas “dão um jeito desgraçado” porque, numa sociedade em ruínas, são o mote mágico para todas as vinganças, vilezas e ódios.

A certa altura, suspende-se o pensamento; a razão gira à volta de si mesma, cortejando a loucura. Deixam de existir limites ou, como agora se diz, “linhas vermelhas”. Obedece-se por antecipação. Violenta-se por antecipação. Despreza-se a força do argumento depurado por discussões sucessivas e pela fidedignidade da adesão à realidade, em favor da força da simplicidade monolítica. Inventa-se outra realidade que passa a ser a primeira. De repente, na Comet Ping Pong, uma pizzaria em Washington, ocorrem, diz-se na net, “imagens de culto de desencarnação, sangue, decapitações, sexo e, claro, pizza”. Uma elite mundial de artistas famosos, aliada a políticos como Hillary Clinton, praticaria, nos bastidores dessa pizzaria, rituais satânicos, pedofilia e tráfico de órgãos. Porque não?

Se qualquer um pode “escrever no livro do Diabo”, ninguém está a salvo. Emergem, pois, os novos sacerdotes, sedentos de sangue, detentores da palavra justa e santa, os que nomeiam, classificam, ordenam e organizam o mundo em graus de pureza. Todos os ímpios estão em perigo, pois as bruxas e os demónios andam por aí, passeando impunemente num mundo em ruínas. Felizmente, as vozes da Autoridade Certa indicar-nos-ão um caminho sem tibiezas: a salvação (ser como eles) ou a forca.

Artigo publicado em gerador.eu a 22 de março de 2023

João Teixeira Lopes
Sobre o/a autor(a)

João Teixeira Lopes

Sociólogo, professor universitário. Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
Termos relacionados: