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Austeridade pós Covid?

Só podemos superar crises como esta pandemia com soluções coletivas, públicas e democráticas. Serviços públicos fortes, especialmente sistemas universais de saúde pública, são vitais e devem ser defendidos e fortalecidos, agora e no longo prazo.

1. A realidade dos nossos dias

Vivemos num contexto de pandemia, onde as instituições recomendam ficar em casa para diminuir o contágio do vírus.

Este isolamento social, acompanhado das restrições impostas pela declaração de estado de emergência, fez com que muitas atividades económicas ficassem limitadas. Onde é possível trabalha-se à distância. Mas muitas atividades consideradas “não essenciais” foram praticamente obrigadas a encerrar por tempo indeterminado.

Estes acontecimentos criam naturalmente uma diminuição significativa da atividade económica. Apesar de alguns incentivos por parte do governo, há multiplas empresas em regime de lay-off e contam-se muitos despedimentos pelo país fora (alguns de forma abusiva, como relata o site https://www.despedimentos.pt). Muitas empresas não podem ter a sua atividade normal, muitos trabalhadores e muitas trabalhadoras já estão ou irão para o desemprego, muitos e muitas continuarão empregados(as) mas com os rendimentos reduzidos.

A crise pandémica está a gerar uma crise económica. Não só em Portugal, mas um pouco por toda a Europa.

 

2. A “solidariedade” europeia

No dia 27 de março1, no final de uma reunião do conselho europeu, o primeiro ministro António Costa considerou o discurso do ministro das finanças holandês “repugnante” por este pedir que Espanha fosse investigada por não ter capacidade orçamental para fazer face à pandemia.

Passadas quase duas semanas2, num estudo realizado e divulgado pela comissão europeia, são referidos quatro problemas de Portugal, entre eles os elevados salários públicos, a elevada despesa com pensões e com a saúde. Este estudo saiu num contexto em que os profissionais do Serviço Nacional de Saúde estão com imensas dificuldades para fazer face à pandemia e em que a defesa de rendimentos é imperativa para não agudizar a crise económica. É caso para perguntar em que realidade vivem os membros da comissão europeia e os autores do estudo.

No dia seguinte, o eurogrupo (liderado pelo ministro das finanças português) chegava a um acordo para supostamente fazer face à crise provocada pela pandemia do covid-19. De fora do acordo ficaram as propostas de mutualização da dívida e de financiamento monetário da despesa pública no combate à crise, propostas que não sobrecarregariam com dívida os países mais afetados por esta pandemia e que foram pedidas numa carta escrita pelos presidentes de vários parlamentos de países da União Europeia3. O economista Ricardo Paes Mamede escreveu o seguinte sobre o acordo alcançado:

“(…) o eurogrupo anunciou um acordo "histórico" que produz efeitos irrisórios face às actuais condições de financiamento dos Estados membros e que não preenche nem um quinto das necessidades de Portugal até ao fim do ano. Isto pedindo "apenas" em troca que os países cumpram as regras orçamentais europeias. As mesmas que, nas condições atuais, nos conduzirão a mais uma década de austeridade.”

 

3. O que queremos para o futuro?

A situação que atualmente se vive um por pouco por toda a Europa é uma crise de saúde de escala global que acarretará consequências sociais e económicas gravíssimas.

Daqui para a frente precisamos de uma coordenação muito mais forte das respostas de saúde, sociais, económicas e financeiras à crise. Também precisamos que a UE aprenda lições dos fracassos dos dogmas de austeridade, endividamento e livre concorrência. É necessária uma mudança definitiva de rumo. Esta crise deve anunciar, de uma vez por todas, o fim da política económica neoliberal, que prejudicou a nossa capacidade coletiva de enfrentar desafios como este (como por exemplo, debilitando o SNS).

Só podemos superar crises como esta pandemia com soluções coletivas, públicas e democráticas. Serviços públicos fortes, especialmente sistemas universais de saúde pública, são vitais e devem ser defendidos e fortalecidos, agora e no longo prazo.

Como diz o co-presidente do grupo da Esquerda Europeia no Parlamento Europeu, Martin Schirdewan:

“Estamos a enfrentar um teste de solidariedade sem precedentes. (…) Se os governos da Alemanha e da Holanda insistirem em seguir este caminho (comprometido com a austeridade), colocarão em perigo o futuro da própria União Europeia. Se os líderes europeus não podem agir em solidariedade no meio desta pandemia, nunca o farão.”

 

4. Bloco de Esquerda propõe fundo europeu para responder à crise sem austeridade

Após terem conhecimento do resultado da reunião do Eurogrupo, que os eurodeputados eleitos pelo Bloco de Esquerda consideraram “um fracasso”, apresentaram uma proposta alternativa. Marisa Matias e José Gusmão defenderam a criação de um Fundo de Recuperação europeu, concretizável e sem ameaça de austeridade. Um fundo europeu, até um máximo de 1,47 biliões para uma quebra do PIB de 10%, financiado através de obrigações emitidas pelo próprio Fundo (se tiver existência formal) ou pelo Banco Europeu de Investimento, com maturidade de 80 anos. A proposta completa pode ser lida aqui.

Artigo publicado em “Mais Ribatejo” a 15 de abril de 2020


Notas:

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