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Até já meu amor (um ano depois)

Amo-te por seres o país que lembra que é o povo quem mais ordena e a vontade vence mais batalhas que as balas. Mas odeio-te porque és tu que mais se esforça por fazer esquecer que um dia todos saíram às ruas para ousarem ter esperança e liberdade.

Deixei de empunhar o cravo quando as mãos se passaram a ocupar uma de meia dúzia de pertences numa bagagem feita de lágrimas nos olhos e outra de sonhos, ambições e expectativas que um dia me disseram ser patetas. No meio, preenchendo o meu peito estava uma mãe que ama demasiado para um dia me ver resignado.

Na algibeira, entre as pétalas de cravo amachucadas, está um bilhete de ida que nunca quis ser outra coisa que não de volta.

Rodeando-me estão aqueles que amei, com quem lutei, que choraram a minha partida na medida em que chorei a sua ausência, que fiz sorrir e me abençoaram com o seu sorriso em tantos momentos que nunca souberam a demasiado.

Volvido 1 ano esqueci o perfume do cravo, para me voltar a recordar do inebriante odor da liberdade. Irónico que o último dia em que tive cativos os meus sonhos se passou no dia que honra os melhores de entre os portugueses, que ambicionaram o fim de um povo agriolhado, impedido de ousar ser livre.

A dormência desvaneceu à medida que a mentira da impossibilidade de sonhar deixou de ser tão frequentemente repetida. O futuro deixou de ser tão sombrio no momento em que enxuguei os olhos e deles retirei a venda que me cegava os horizontes.

Disse um até já, carregado dum amor que nunca esqueço, mas que a cada dia entendo menos. Amo-te Portugal hoje na medida exata que te odeio. Amo-te pelos que em ti tens, odiando-te pela forma como os tratas.

Amo-te porque me viste construir os meus sonhos, odiando-te pois não hesitaste em vê-los crescer apenas para me dizeres serem impossíveis.

Amo-te porque lutei por ti, acreditando que um dia te mudaria as arestas que tinhas por limar, odiando-te porque te deixaste tomar por alguns que te mantêm refém dos seus interesses.

Amo-te por seres o país que lembra que é o povo quem mais ordena e a vontade vence mais batalhas que as balas. Mas odeio-te porque és tu que mais se esforça por fazer esquecer que um dia todos saíram às ruas para ousarem ter esperança e liberdade.

Hoje tenho ainda presentes os teus sabores, os teus cheiros, o deslumbre das tuas vistas, mas o cravo desapareceu, não esquecendo que é desse cravo que sou feito, que os que o empunharam na revolução são aqueles que me inspiraram e sempre quis orgulhar. São aqueles que me seguraram a bagagem enquanto deles me despedia, tornando-me o que todos eles lutaram para eu não ser: um filho emigrado.

Destruído por políticas erráticas e políticos errados, olho para ti odiando-te pelo brilho que deixaste perder. Nos corredores dos teus hospitais onde me fiz enfermeiro, onde me fiz adulto, vejo crescer o sofrimento e a degradação onde já não julgava ser possível crescer mais. Vejo os braços caídos de um povo que já nem cabisbaixo consegue caminhar.

Nestes corredores perdem-se as batalhas pela dignidade e humanidade, os mesmos onde disseste que eu já não fazia falta, e como eu os milhares de enfermeiros, castigados por abdicarem de si próprios em prol de cuidar alguém, dedicando-se a batalha impossível dos pequenos milagres com pouco mais que a sua coragem, engenho e dedicação.

Habituei-me a trazer esperança, ainda que me a negasses a cada dia, e por mais que o corpo suplicasse descanso nunca desisti de oferecer o melhor de mim para que voltasses ao melhor de ti.

Não deixei hoje de te amar, antes desististe tu de ser amado. E longe apaixonei-me, não por outro país, mas pela oportunidade de sonhar.

Apaixonei-me pela liberdade de ver reconhecido o meu trabalho, de ver tido em consideração o meu bem-estar, de poder, de ar pateta, divagar sobre um futuro. Apaixonei-me pelo sabor inigualável de viver para além das contas a pagar, e ver frutos no trabalho árduo que desempenho.

Odeio-te, porque era isto que me devias, odeio-te mais porque é o que deves a todos, mas o amor não perdoa, e secretamente acalento a esperança que um dia te deixes mudar.

E se por mim mais nada fizeres, faz pelos que amo, por aqueles heróis incansáveis que lutam contra tudo o que te corrompe, tudo o que te afasta do Portugal de Abril.

E silencia os que dizem que nos querem de volta com programas insultuosos em propósitos eleitorais ou promessas sem sentido, afinal para eles, meu País serves apenas para que perpetuem nas suas vidas prósperas enriquecidos pela desgraça alheia.

Abril sempre, seja onde for, mas que um dia volte a ser ai. Até já.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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