Em 28 de maio de 1974, os artistas que integravam o Movimento Democrático de Artistas Plásticos realizaram uma ação de intervenção artística no Palácio Foz, antiga sede da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, que consistia na colocação de um pano negro na estátua de Salazar ao mesmo tempo que proclamavam a expressão “A arte fascista faz mal à vista”. Além de ser “gesto de liberdade revolucionária”1 contra a ditadura, esta ação seria uma crítica ao modo como a arte era apenas usada como “casaca de cerimónia”2 e à forma como se pensavam as políticas culturais do país.
Não é só por essa vertigem da liberdade e de vontade revolucionária, que surge quando as possibilidades de construção do coletivo estão em aberto, que se pode caracterizar o tempo logo após o 25 de Abril. É também por se ter pensado em todas as dimensões do ser humano social e cultural para assim se avançar na defesa dos seus direitos, tornando-o livre, participante, cidadão. Enquanto espaço essencial de confronto e de pensamento, a arte teve um papel fundamental neste debate.
Nas opções das práticas artísticas, valorizou-se não apenas a diversidade, na articulação com outras manifestações culturais como a poesia, mas também o desafio ao tradicionalismo, a crítica social, a subversão dos conceitos tradicionais, pensando e intervindo para e com a comunidade.
Ações artísticas, como a pintura coletiva na Galeria de Arte Moderna de Belém, não decorrem só da alegria pelo fim de um regime opressivo e pelo entusiasmo pela ideia de liberdade, mas são também delineadoras de uma nova mentalidade no processo de pensamento e de criação artística, colocando foco na proximidade com o público. Nesta intervenção, o espaço da obra está desviado dos circuitos de apresentação elitistas porque não seria o do atelier, nem o da sala de exposição tradicional. A individualização da autoria do artista é secundarizada em função de um objetivo. A exposição ocorria em simultâneo com cada artista numa mesma sala, em que cada um se concentrava numa parcela própria de parede de forma a resultar num mural conjunto. A obra teria assim autoria de todos os artistas com igual peso e de igual modo. Esta experiência participada de ação artística pretendia aproximar a arte com a sociedade civil e a demonstrar a importância dos valores do coletivo.
O muro era um lugar reivindicativo que fortaleceu o pensamento crítico e a intervenção social. Expressava uma vontade de pensar o país, utilizando a rua, a cidade, como um espaço público comum e um território pleno de liberdade. O mural seria a forma mais direta e democrática de intervenção artística porque oferecia visibilidade imediata para o público e possibilitava a coexistência de várias propostas, incentivando a diversidade, a partilha, a comunidade. Também foi nas ruas que se reclamou o direito à cultura num interesse pela agitação e subversão, onde é exemplo a ocupação de uma residência em Lisboa para reivindicar a construção de um Museu de Arte Moderna, ou se realizou simbolicamente o “funeral” do Museu Nacional de Soares dos Reis no Porto, numa ação artística-protesto contra o obsoletismo dos museus em Portugal.
Acontecimentos como a organização dos artistas como a do Movimento Democrático dos Artistas Plásticos, a sua integração nas instituições formais de decisão, passando a tomar parte da discussão sobre o papel da arte nas políticas culturais do país, serviram para pensar uma outra função da produção artística e uma nova relação entre artistas e público.
Nesta altura também se reclamou do Estado a defesa, a preservação e a valorização do património cultural, tendo surgido Associações de Defesa do Património, e se lançou as bases para o entendimento do museu como um espaço de pensamento e de crítica e com especialidades diferenciadas.
Num cenário político internacional de avanço dos novos fascismos, figuras como Trump, que todos os anos propõe um orçamento zero para o National Endowments for the Arts, ou como Bolsonaro, que abre um campo de batalha contra a produção cultural porque a considera dominada pela esquerda, escolheram o pensamento, a arte e a cultura como inimigos principais. Por isso é tão importante privilegiar estas áreas do conhecimento enquanto espaços essenciais de transformação e de intervenção na sociedade e entendê-las como uma forma de luta e de resistência.
Notas:
1 A arte fascista faz mal à vista, revista “Flama”, Maio 1976, p. 40 e 41.
2 Comunicado da comissão central do Movimento Democrático dos Artistas Plásticos
