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Anomalias do sujeito e patologias do capitalismo cognitivo
O que capitaliza o capital é o poder semiótico.
Félix Guattari (A Revolução Molecular)
O filósofo José Gil, num artigo de opinião publicado no passado dia 20 de novembro (revista Visão), analisava a crescente “irresponsabilidade hierárquica” no seio deste Governo - onde o irrevogável vice-primeiro ministro seria o paradigma - bem como a concomitante autovalorização cada vez mais banalizada entre os governantes, enquanto sintoma de anomalia individual e social. Estaríamos assim perante um “Governo de egos inchados, desligado do povo e suscitando nele, às vezes, o mesmo sintoma”.
Em suma, segundo o filósofo, a atrofia do indivíduo efetivada através da política austeritária de ataque constante às condições de bem-estar social, resulta no surgimento de um ego artificialmente sobrevalorizado e ensimesmado, sem correspondência real e socialmente aferida. Parece evidente que este mecanismo corresponde a uma espécie de heroísmo psicótico, como se os senhores (governantes) - e os súbditos (povo) - tivessem definitivamente vencido a “crise”, apresentando-se agora como heróis. A potencial “anomalia do sujeito” é esta ego trip poder tornar-se realmente massiva e inquinar o processo de construção da subjetividade coletiva e individual.
Por outro lado, a ideia de vivermos hoje sob um “Capitalismo Cognitivo” vem sendo usada para descrever a mutação pós-fordista no tipo de acumulação capitalista com ênfase na exploração dos processos de trabalho e da especialização flexível, bem como da rápida aceleração no ritmo de inovação das tecnologias e da exploração das energias psíquicas nas redes digitais, sob domínio hegemónico do neoliberalismo.
As transformações tecnológicas implícitas no processo de globalização alteraram tão profundamente as perspetivas socioculturais que as ferramentas teóricas herdadas da teoria crítica europeia já não são suficientes para mapear o presente e imaginar o futuro, de tal modo que a prática da política moderna perdeu controle sobre a realidade, pois a conexão mental e a interação entre indivíduo e coletivo metamorfoseou-se através das mediações técnicas. Uma das características mais marcantes do capitalismo cognitivo é obviamente a de capturar o conhecimento social (intelecto geral) como valor e mercadoria, neste sentido o capitalismo cognitivo equivale à padronização dos processos cognitivos, onde a atividade mental se confunde com o fluxo de informação.
Fazendo uso da reconhecida fórmula das três fases do capitalismo de Ernest Mandel, Fredric Jameson, em Culture and Finance Capital, descreve o capitalismo tardio – estádio especulativo da expansão financeira - como uma espécie de vírus desenvolvendo-se numa epidemia lançada pela máquina capitalista e refletindo-se na desconstrução dos Estados pelo capital financeiro e pelas dívidas públicas. É portanto no contexto do capitalismo tardio que a noção de capitalismo cognitivo se insere, no recorte da dita “sociedade do conhecimento” onde a informação, as conexões tecnológicas e o processo de produção de conhecimento são dimensões fulcrais da estruturação social, mas também do próprio capitalismo.
Se é verdade que as recentes transformações tecnológicas alteraram as condições de atividade mental e as formas de interação entre o indivíduo e a esfera coletiva, dando azo à emergência de uma “Semioesfera” (F. Bifo) onde os neurónios se fundem com a energia elétrica, com a realidade virtual e com a ciberfinança, criando assim uma rede neuronal sintética sobre o planeta terra. Sabe-se também que este dispositivo global produz efeitos perniciosos na estrutura cerebral, nomeadamente devido à aceleração e ao excesso de informação e de estímulos, causando défices no nível de atenção, na formação dos afetos e no funcionamento da memória.
A situação provocada pela agonia do capitalismo é complexa e perigosa, pois ao mesmo tempo que as multinacionais californianas da Internet (Google, Facebook, etc...) dominam o fluxo informacional da rede e dos acessos, os Estados colonizados pelo capital financeiro promovem o desmantelamento das instituições sociais públicas (p.ex. de educação e saúde), destruindo a vertente humanista (letras, filosofia, …) dos sistemas de ensino, condicionando o conhecimento aos dogmas económicos vigentes. Por um lado retira-se aos cidadãos os direitos sociais, o trabalho, os rendimentos e, desse modo, as formas de subsistência atingem o limiar do insuportável e da sobrevivência; e por outro, são destruídas as instituições que historicamente suportam o desenvolvimento de alternativas, as escolas e as universidades.
A designação genérica de Novas Economias resulta em sub-categorias amplamente divulgadas como Economia do Conhecimento, Economia da Cultura ou Economia da Informação. Ora, quando a energia cognitiva se torna a principal força de produção e valorização económica, e ao exigir-se cada vez maior produtividade com maior precarização do trabalho, o sistema nervoso é submetido a uma sobrecarga geradora de psicopatologias adaptativas às exigências do capitalismo tardio.
Desta forma conclui-se que, quer a política (governação) quer o capital tendem hoje a produzir patologias graves nos sujeitos e nas estruturas sociais. Os diagnósticos vão sendo conhecidos, mas será que a agonia do capitalismo moderno pode ser conscientemente gerida pela ação política e levar a uma nova forma de existência social que possibilite a reconquista da democracia e da liberdade?
Nota sobre o título do artigo: O título é proveniente de um conjunto de interesses de pesquisa realizada por diversos autores, nomeadamente pelos operaistas italianos, Franco Bifo, Matteo Pasquineli, Maurizio Lazzarato, entre outros. Dá o título a este evento https://www.ici-berlin.org/event/476/; bem como a uma série de livros publicados pela http://www.archivebooks.org/
Comentários
"O capital tende hoje a
"O capital tende hoje a produzir patologias graves nos sujeitos e nas estruturas sociais". Hoje?Mas este não é o tema central da análise crítica do capitalismo que começa no século XIX com Marx?
"Mas será que a agonia do capitalismo moderno pode ser conscientemente gerida pela ação política e levar a uma nova forma de existência social que possibilite a reconquista da democracia e da liberdade?" Reconquista face ao quê? Serão a liberdade e a democracia significados estáticos não sujeitos às dinâmicas das contingências da história? Para haver reconquista é necessário que haja uma perda, mas não estaremos neste caso perante aquilo que Hegel chamava de perda da perda?
Desde já grato pelo
Desde já grato pelo comentário !
Na verdade diria que para produzir patologias "graves" nem sequer é necessária intervenção do capital, uma "sociedade disciplinar" é suficiente. Contudo, atualmente, a possibilidade de alteração da neuroplasticidade do cérebro humano é substancialmente mais eficaz e perturbadora dadas a complexidade da interação homem-tecnologia-ambiente, bem como os seus efeitos, designadamente nos processos de individuação. Se no sec. 19 Nietzsche descartava deus como quem descasca uma banana, no sec. 21 o capital atingiu a velocidade da luz e flui muito melhor pelos neurónios.
"Reconquistar a democracia e a liberdade ", de facto, dito assim, parece um slogan de um partido de extrema-esquerda :)...mas não era isso que se pretendia aqui.
A questão no fundo é saber como é que a "política futura" lidará com a estrutura tecnológica (e seus usos) montada pelo capitalismo cognitivo (comunicativo, semiótico,...) de modo a reverter a sua tendência actual de dominação (glocal): Assange, Snowden,... ou seja, como vai conquistar poder para reconquistar democracia&liberdade (no plural ?) que obviamente estão severemante danificadas (independemente do significado de ambas as ideias).
É uma questão de poder, de reconquista da potência acumulada pela máquina tecno-capitalista...resta saber como ?
Com este curto artigo apenas tentei evocar uma dimensão do capitalismo que deve ter mais atençãocaso se pretenda destruir a hegemonia e implementar as transformações político-sociais.
* O grau de perda é perceptivel por comparação com a década anterior (p.ex.), não vejo que Hegel seja necessário para isto, não é uma questão de metafísica da história. Dos direitos laborais ao sistema de saúde, etc, etc, a perda é acentuada e reflecte-se na perda fundamental de democracia&liberdade.
Por fim, não se trata de uma questão de detreminismo ou pessimismo tecnológico, é óbvio que esta mesma estrutura tem potencional revolucionário comprovado e fornece resistência simbólica, no entanto o uso e abuso de poder é ainda muito assimétrico
Cumprimentos,
Rui Matoso
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