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Afinal, o carrasco é que é a vítima

Sinto um imenso arrepio na espinha e um incontrolável impulso para o vómito, quando me dou conta que ao senhor Neto de Moura e à dona Maria Luisa Abrantes compete administrar a justiça em nome do povo português.

Sob o “doce” pretexto de que ‘entre homem e mulher, não metas a colher’, levámos séculos a fingir que não víamos, não ouvíamos, não sabíamos que – no recato do lar ou no espaço público - um número indecente de mulheres eram humilhadas, sequestradas, espancadas e, demasiadas vezes, pura e simplesmente assassinadas, por homens que ‘não eram de ferro e se passavam’.

Há relativamente pouco tempo, iniciámos, no nosso país, um lento processo de cura para esta obscena indiferença colectiva, à custa de muita denúncia, bastante legislação (nacional e internacional), alguma vergonha pelo silêncio cúmplice e muita, muita, muita convicção de que os Direitos Humanos não têm sexo.

Eis se não quando, o senhor Neto de Moura e a dona Maria Luisa Abrantes, no uso mais do que abusivo dos seus estatutos de ‘irresponsáveis e inamovíveis’ juízes (prerrogativas anacrónicas que urge repensar), puxam dos seus galões de ‘bois e vacas sagradas’ e desatam a pôr ordem na promiscuidade reinante. Eles até não se importam que continuemos a viver num Estado de Direito, desde que, obviamente, lhes seja dada a possibilidade de o endireitarem à sua maneira!

E a maneira destes dois execráveis personagens é muito simples: pega-se numa pitada descontextualizada da Bíblia, junta-se um cheirinho de Sharia (leis islâmicas baseadas no Alcorão), acrescenta-se alguma da boa legislação de 1889, mistura-se tudo com uma mão cheia de nauseabundo preconceito, machismo primário e misoginia, chocalha-se tudo e…voilá!...sai um acórdão do Tribunal de Relação do Porto!

E que diz este inenarrável Acórdão? Basicamente, duas coisas muito importantes que o nosso Estado democrático, progressista e laico teima em esquecer, condenando à perdição e às eternas chamas do Inferno toda uma sociedade tresmalhada e permissiva:

1º - sequestrar e agredir, selvaticamente, uma ‘mulher adúltera’, com uma moca de pregos, convidando para a festança o ex-amante (garantia de agressão por turnos, tipo ‘ora agora bates tu, ora agora bato eu’) não é crime de maior, atento o facto dos dois homens estarem muito aborrecidos e vexados com a situação;

2º - a vítima deve dar graças e cantar hosanas pelo facto dos dois agressores não a terem assassinado, acontecimento que teria do senhor Neto de Moura e da dona Maria Luisa Abrantes toda a compreensão, atento o facto de uma ‘mulher adúltera’ não merecer outro destino, segundo a boa moral, os bons costumes, a boa legislação e… a total insanidade dos venerandos juízes (esta parte é da minha total responsabilidade)!

E, atenção, porque o senhor Neto de Moura não brinca em serviço, quando se trata de justificar e garantir a desigualdade de género. A prová-lo está o facto de, ainda não há muito tempo, ter exarado em acórdão anterior, que esbofetear e insultar, publicamente, uma mulher com um filho de 9 dias nos braços…é normal, atento o facto de umas bofetadazinhas não fazerem mal a ninguém.

Sinto um imenso arrepio na espinha e um incontrolável impulso para o vómito, quando me dou conta que ao senhor Neto de Moura e à dona Maria Luisa Abrantes compete administrar a justiça em nome do povo português e, portanto, em meu nome também. E, neste caso concreto, já não me chega o direito à indignação! Exijo muito mais porque, em democracia, não há, não pode haver lugar à total impunidade. Por isso, pergunto: quem julga os/as juízes?!

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Deputada à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, entre 2008 e 2018.
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