10 Anos de IVG – Cidadania sem banalização

porAna Campos

11 de fevereiro 2017 - 17:25
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O referendo foi talvez o primeiro esboço daquilo que é hoje a geringonça – um encontro de objetivos para uma ação com eficácia e que sirva para resolver problemas inadiáveis na sociedade. Saboreemos esta vitória, mas fiquemos a reunir forças para os próximos ataques.

Em Portugal, depois de anos em que se verificava um impasse e uma incapacidade dos defensores da liberdade de decisão das mulheres se encontrarem realmente para um objetivo vencedor, finalmente o referendo de 2007 permitiu uma unidade de organizações de mulheres, de partidos de esquerda e cidadãos que consideravam esta situação impossível de manter-se num país em democracia há mais de 30 anos. O referendo foi talvez o primeiro esboço daquilo que é hoje a geringonça – um encontro de objetivos para uma ação com eficácia e que sirva para resolver problemas inadiáveis na sociedade.

Desde há 10 anos, as mulheres em Portugal podem, se o desejarem, interromper uma gravidez até às 10 semanas, num estabelecimento de Saúde reconhecido com capacidade para tal. Este reconhecimento é feito pela Direção Geral de Saúde (DGS) e nada em Saúde neste país será tão auditado e com tanta frequência e rigor como eventualmente as interrupções de gravidez, o que é muito importante, para manter dados rigorosos e qualidade nos cuidados prestados. A DGS publica anualmente o seu relatório dos resultados e também no que se refere a este ponto tem havido um cumprimento e divulgação anual, o que seria desejável para todos os campos da saúde, mas que aqui também é muito importante.

Ficam por agora para a história os anos de militância de muitas mulheres em torno deste tema, que mobilizou muitas feministas, homens e mulheres pertencentes a organizações políticas e de defesa de direitos humanos. Era mesmo disso que se tratava – da defesa de um direito de escolher entre manter uma gravidez ou não, até uma determinada idade gestacional, que em Portugal é a mais baixa da Europa, uma vez que noutros Países se situa entre as 12 e as 14 semanas. A penalização e criminalização na lei com possível pena de prisão punha a condição da mulher idêntica a um criminoso, embora os que pretendiam manter a lei anterior, quando este facto era invocado, argumentassem que seria importante apenas como medida dissuasora…

A vitória no referendo permitiu que até hoje os argumentos dos grupos anti-escolha sejam contrariados um a um.

A condição da mulher estava aqui em causa: a sua capacidade de decisão, a sua dignidade estarão sempre em causa quando existe uma lei criminalizadora e quando a sua decisão está na mão de terceiros. Importante é que se saiba que, dos estudos científicos realizados, não existe um método contracetivo que seja 100% seguro, uma vez que há sempre algumas condicionantes à sua aplicação e efeito – interferências, intercorrências e em nenhuma sociedade, por mais perfeita que seja a contraceção, se pode eliminar a existência de uma gravidez não desejada e não programada, que pode ou não ser aceite.

É pois importante que nas sociedades democráticas em que a cidadania é facto real e sinal de democracia, as mulheres, perante uma gravidez inesperada, possam utilizar a hipótese de a interromper. E o que se vê é que, sendo um acontecimento eventualmente inesperado, que pode causar dificuldade de decisão e trauma, não é um acontecimento banal. Os dados internacionais demonstram que, a par da legalização da interrupção da gravidez, o reforço e melhoria de práticas contracetivas é uma realidade, desde que os serviços de saúde compreendam as necessidades e as populações sintam a possibilidade de acesso a aconselhamento contracetivo.

A vitória no referendo permitiu que até hoje os argumentos dos grupos anti-escolha sejam contrariados um a um. O aborto não é uma banalidade: em Portugal, 70% das mulheres que a ele recorrem fazem-no pela primeira vez e 2,5% recorrem a ele pela 3ª vez na sua vida reprodutiva. Estes factos são muito importantes e não fazem do grupo das repetições de aborto um fator que mais não deva do que reforçar neste grupo as necessidades de aconselhamento mais adaptado às situações concretas de cada caso.

Evolução dos dados publicados sobre registos de IVG em Portugal desde 2008

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Retirado do documento da DGS – Relatório dos Registos das Interrupções de Gravidez - dados de 2015; www.dgs.pt

Em segundo lugar, ele é transversal à sociedade e atinge mulheres com diferentes níveis de escolaridade, acompanhando os grupos etários em que se tem filhos em Portugal, não havendo grupos predominantes. Sabe-se que, apesar de haver em todos os grupos com diferentes escolaridades casos de IVG, em relação aos grupos profissionais, ele surge em 20% dos casos em que as mulheres estão desempregadas.

Níveis de escolaridade

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Retirado do documento da DGS – Relatório dos Registos das Interrupções de Gravidez - dados de 2015; www.dgs.pt

Um  terceiro  aspeto que muitos profissionais de saúde consideravam impossível de resolver, era o previsível número de objetores de consciência: muitos são essencialmente profissionais que infelizmente não consideram que os “pacientes” tenham o direito de decidir das suas vidas, mesmo noutros aspetos da saúde e esse é um aspeto do chamado “poder médico” que é muito menos frequente hoje, mas que persiste ainda na formação médica essencialmente.

Assim, os não objetores, em colaboração estreita com enfermeiros, em equipas muito sólidas e motivadas, deram e darão respostas adequadas dentro do SNS, havendo hoje 71,3% de IVG realizadas no serviço público, embora haja hospitais que enviam sistematicamente todos os casos para as clínicas privadas com quem o Estado contratualizou estes serviços.

Por fim, 95,7% das mulheres que realizaram IVG por opção escolheram posteriormente um método de contraceção. Do total de mulheres que realizaram IVG por opção, 37,9% escolheu um método contracetivo de longa duração (dispositivo intrauterino; implante contracetivo ou laqueação de trompas), o que pode contribuir para uma menor taxa de erro na aplicação da contraceção.

Utilização de contraceção após um aborto

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Retirado do documento da DGS – Relatório dos Registos das Interrupções de Gravidez - dados de 2015; www.dgs.pt

Em resumo:

  • Registou-se uma redução de 10,2% de IVG por opção da mulher entre 2008 e 2015 – neste ano o número de IVG foi de 15873, menos 1,8% do que em 2014 
  • O número de IVG por 1000 nados vivos em Portugal, situa-se abaixo da média europeia.
  • Como não há leis perpétuas e nos direitos humanos estas leis são inflenciadas pelos contextos históricos, estamos num período perigoso para a perda destas leis; já o experimentámos no governo PSD/CDS que já tentou limitá-la e mais uma vez, humilhar as mulheres.
  • Agora Trump nos EUA já ameaçou reduzir estes direitos e a seguir Marine le Pen fará o mesmo, se ganhar as eleições.
  • Saboreemos esta vitória, mas fiquemos a reunir forças para os próximos ataques.
Ana Campos
Sobre o/a autor(a)

Ana Campos

Médica, ativista dos direitos das Mulheres.
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