“Queremos as nossas vidas” e isso não é vago, nem pouco

porSofia Roque

01 de outubro 2012 - 0:18
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No deserto da democracia, pudemos surpreender-nos com o imprevisível. À biopolítica brutal deste Governo, as pessoas respondem reclamando as suas vidas, “tudo”, num agir em conjunto exemplar.

Depois de todas as análises e reflexões sobre o memorável dia 15 de Setembro, o dia em que um milhão de pessoas saiu à rua exigindo a demissão do Governo, respondendo a uma convocatória que sugeria muito mais do que a expressão do descontentamento ou da indignação, gostaria de sublinhar aqui dois aspetos: o do comum, que permitiu um agir em conjunto exemplar, e o da densidade política da reivindicação contida na afirmação inicial “Queremos as nossas vidas!”. Porque esse, como tantos outros, foi apenas o primeiro dia do resto da nossa luta. Os passos dados são irreversíveis.



No deserto da democracia, pudemos surpreender-nos com o imprevisível. A tensão que se sentia no ar, naquele dia, ressoava o poder gerado pela ação comum de uma multidão comprometida. E o compromisso foi o da insubmissão esclarecida: a austeridade anunciada não nos indignou apenas, antes tornou visível o fanatismo liberal de quem nos governa, detonando o discurso da inevitabilidade e da necessidade dos sacrifícios. Mesmo que talvez a maioria das pessoas se sinta num beco sem saída, porque desconfia da troika e tem medo do risco da alternativa, era preciso dizer bem alto que queremos outro rumo e sendo muitos a dizê-lo, a vontade tornou-se comum e representativa. E o que aconteceu surgiu como um oásis no deserto: se há oásis que nos permitem viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele, como refere Hannah Arendt, indicando o potencial criador da relação sem mundo que é inerente às relações entre seres humanos – “quando o nosso coração acede diretamente ao do outro, como na amizade, ou quando o espaço-entre, quer dizer o mundo, se incendeia, como no amor” (1) - há outros que colocam em causa o próprio deserto, sendo antes dadores de um mundo comum, emergente no espaço-entre os que agem concertadamente, tornando a política possível. Hoje isso significa democracia.



Sobre a amplitude da reivindicação “Queremos as nossas vidas!”, permito-me fazer ecoar aqui as palavras de José Gil, citando-o a partir do artigo que publicou esta semana na Visão. Até porque nem sempre acolho bem as suas reflexões sobre a atualidade política e desta vez aconteceu o contrário. Segundo o filósofo, este Governo decidiu aplicar uma biopolítica brutal, estando justificado pela troika e pela necessidade de” fazer mais com menos”. Assim, “o «empobrecimento» não significa apenas menos salário, menos subsídios, mais impostos e contribuições de toda a ordem. Significa mais trabalho, mais cansaço, mais obediência, mais stresse, menos tempo livre, mais doenças, mais morte - quando não abandono, angústia e exclusão no desemprego”. A desvalorização do custo do trabalho é biopolítica, porque, “ultrapassado um dado limite de suportabilidade das imposições ao trabalho material, é à força imaterial do trabalhador, à sua vida própria, à sua carne e ao seu espírito, que se vão buscar as mais-valias que o empregador (aqui, sobretudo, o Estado) recebe”. O que José Gil nos diz é que o saque se reflete no corpo material que trabalha, mas também na vida imaterial sem a qual não se pode “viver”. É a educação, a cultura, os afetos, as expetativas, os sonhos, a memória. Reclamar “as nossas vidas” é reclamar tudo – para que sobreviver não seja apenas acumular um dia após o outro, como uma vitória amarga.



No próximo dia 13 de Outubro, poderemos reclamar essa vida ampla que é comum e é também a de cada um, singular e irrepetível. A manifestação cultural que ocupará a Praça de Espanha, em Lisboa, poderá ser um outro oásis no deserto – agir em conjunto para demonstrar que a arte é inevitável nas nossas vidas.

 

(1) Hannah ARENDT, A Promessa da Política (2005).

Sofia Roque
Sobre o/a autor(a)

Sofia Roque

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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