Vida Independente - Pelo direito à autodeterminação

O deputado do Bloco Jorge Falcato considera que o caminho para garantir a autodeterminação e o direito a uma vida independente das pessoas com deficiência passa pela rejeição das atuais políticas institucionalizadoras que as impede de concretizar os seus objetivos de vida.

19 de julho 2017 - 17:00
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Na sua atividade enquanto cidadão e deputado tem-se batido pela implementação de medidas que levem à autodeterminação das pessoas com deficiência. Pode falar-nos do conceito de Vida Independente?

 O conceito surge no final dos anos sessenta nos Estados Unidos. Uma época de grandes lutas, da explosão dos movimentos de luta pelos direitos civis, contra o racismo, contra a guerra, pela igualdade e emancipação das mulheres, da afirmação de direitos das comunidades gay e lésbica. É neste contexto que as pessoas com deficiência começam a pôr em causa a forma como até aí eram encaradas, pessoas dependentes que deveriam viver em instituições, a quem eram recusados os mais elementares direitos humanos e afirmam o seu direito à autodeterminação e uma vida independente.

Ed Roberts, um estudante com deficiência, confronta-se na Universidade de Berkley com a inexistência de condições ao nível da acessibilidade e de apoio pessoal e funda o primeiro Centro de Vida Independente.

Mas o conceito de vida independente é muito mais do que ter condições de acesso e apoio na realização das tarefas do dia-a-dia, não?

Sim, o conceito de Vida Independente funda-se no modelo social da deficiência que tem raízes nesta época de grandes transformações sociais e culturais.

Ao contrário do Modelo Médico, em que as pessoas com deficiência são vistas como uma espécie de doentes á espera da cura –institucionalizadas, isoladas do resto da sociedade -  em que a “culpa” da exclusão e segregação a que estão sujeitas são as suas próprias incapacidades, no modelo social considera-se que as pessoas com deficiência encontram-se excluídas do exercício da cidadania e são-lhes negados direitos humanos básicos, porque a sociedade não está organizada de modo a contornar ou anular as consequências dessas incapacidades. Da responsabilização individual evoluímos para uma responsabilização coletiva.

Baseando-se neste modelo, a Vida Independente tem claramente um papel de transformação social, uma visão política de que, para assegurar a autodeterminação das pessoas com deficiência e o cumprimento dos direitos humanos, é necessário alterar profundamente a sociedade de modo a que seja possível remover todas as barreiras à participação das pessoas com deficiência, quer sejam físicas, sensoriais, comunicacionais, económicas ou atitudinais.

Como é que, na prática, isso se reflete na vida das pessoas?

Imagine que não consegue alimentar-se, vestir-se ou cuidar da sua higiene de uma forma autónoma. Como seria a sua vida?

Normalmente existem duas saídas. A institucionalização ou a dependência da boa vontade e sacrifício dos familiares. Nenhuma destas soluções garante a autodeterminação. Estas pessoas não são livres de decidir como querem viver, nem onde, nem com quem.

Aquilo que prevê a Vida Independente é dar-lhes o poder de decidir. A única maneira de garantir este poder é assegurar o direito uma verba suficiente para contratar um/a assistente pessoal que o apoie ou o substitua na realização de todas as tarefas necessárias ao projeto de vida que escolheu. Do levantar da cama à condução do automóvel. Da arrumação e limpeza da casa ao tirar apontamentos na sala de aula. As tarefas de um/a assistente pessoal são definidas pela pessoa com deficiência de acordo com as suas necessidades.

São evidentes os ganhos na qualidade de vida de uma pessoa que tem graves limitações, no entanto, continuará a faltar o resto de que já falámos.

Para que esta pessoa tenha a mesma igualdade de oportunidades e de autodeterminação que a maioria ainda muitas barreiras será necessário derrubar.

Mas para que tal se torne uma realidade são necessárias mudanças que dependem muito da vontade política dos governantes.

 Para a pessoa ter efetivamente condições para decidir livremente a sua vida é necessária uma intervenção a diversos níveis que elimine ou atenue as barreiras existentes à participação das pessoas com deficiência. A Vida Independente não se resume à existência de assistência pessoal. É igualmente necessário adaptar o meio urbano e a habitação, que as pessoas tenham acesso gratuito aos produtos de apoio de que necessitam, que tenham rendimentos suficientes para fazer face às despesas que todos temos para viver e aos custos acrescidos que decorrem da sua deficiência. É necessário, afinal, que a sociedade esteja organizada de forma a proporcionar condições de igualdade de oportunidades para todos.

Mas além do que acaba de referir, são ainda precisos outros meios para que uma pessoa com deficiência possa viver de forma autónoma.

Para além dessas questões gerais relativas à eliminação de barreiras à participação social, não há dúvida que a Assistência Pessoal é uma ferramenta fundamental na materialização de uma política de vida independente. Uma política que terá de passar no futuro por pagamentos diretos à pessoa com deficiência da verba necessária para contratar a assistência escolhida por si.

Como é que tomou conhecimento deste movimento uma vez que em Portugal só há alguns anos é que se começou a falar dele?

Nos anos oitenta conheci Adolf Ratzka [economista alemão, um dos pioneiros da Vida Independente na Europa] que foi uma pessoa que viveu esta revolução nos Estados Unidos enquanto estudante o que lhe possibilitou aproximar-se deste movimento. E foi através de Ratzka que comecei a interessar-me por estas questões.

Foi isso que o levou mais tarde a integrar o movimento (d)Eficentes Indignados em Portugal?

 Na verdade, eu e outros activistas criámos o movimento em 2012 e no ano seguinte definimos que a Vida Independente era o ponto fulcral nas políticas de apoio às pessoas com deficiência o que implicava colocá-la na agenda política. Foi o que fizemos.

Importa, no entanto, referir que em Portugal já se tinha falado de Vida Independente.  Lembro-me de ter estado num workshop sobre o assunto nos anos 80 que foi promovido pelo Disable People’s International e pela Associação Portuguesa de Deficientes (APD) e mais tarde participei na organização de uma conferência sobre o assunto na Câmara Municipal de Lisboa, além de workshops também no município da capital porque trabalhava na CML e integrava o secretariado técnico do Conselho Municipal para a Inclusão das Pessoas com Deficiência.

Ainda assim, esta filosofia só ganha expressão em Portugal já neste século.

Do ponto de vista da visibilidade adquire outra expressão depois da luta que foi empreendida pelas pessoas com deficiência, sobretudo a partir da greve de fome iniciada pelo Eduardo Jorge em 2013 em frente ao Parlamento. Foi a partir desse momento que esta questão ganhou maior expressão junto da sociedade em geral permitindo também o início das negociações com o Governo PSD/CDS.

A discussão com o executivo de Passos Coelho trouxe alguns resultados?

O Secretário de Estado Agostinho Branquinho comprometeu-se com o início da redação de legislação relativa à Vida Independente no início de 2014 mas não foram dados nenhuns passos nesse sentido a não ser, contra a opinião expressa por organizações de pessoas com deficiência, entregar quase meio milhão de euros à União das Misericórdias para fazer formação de assistentes pessoais que segundo parece ficaram na sua maioria no desemprego. Nunca chegámos a perceber que modelo de Vida Independente defendia o anterior governo ou sequer se tinha algum modelo. Foi protelando a tomada de decisões até que felizmente caiu na sequência das eleições de 2015.

Finalmente em 2017 surge uma proposta de projetos-piloto apresentada pelo Governo. O Bloco criticou alguns aspetos dessa proposta, porquê?

Para nós é muito importante a realização deste projetos-piloto e por isso propusemos a sua inclusão no Orçamento de Estado para 2016.

Mas não queremos projetos-piloto que venham desvirtuar os fundamentos da Vida Independente.

Importa-se de especificar?

Uma das questões mais importantes era a limitação de horas de assistência pessoal a que as pessoas teriam direito. Limitar a assistência pessoal a 40 horas semanais era manter as pessoas com maiores necessidades de apoio na dependência das famílias. A Vida Independente visa proporcionar a uma pessoa a assistência necessária para que ela possa concretizar o seu projeto de vida. A limitação do número de horas era claramente uma interferência que iria balizar essas opções e escolhas de vida. 

Mas em concreto, que consequência poderia ter essa limitação?

Posso dar-lhe o exemplo de uma pessoa tetraplégica que resida com a família, mas que pretende viver autonomamente na sua casa. As 40 horas de assistência semanais são claramente insuficientes, é algo inimaginável, nenhuma pessoa com esse tipo de limitações consegue autonomizar-se e fazer a sua vida com um número tão reduzido de horas de assistência, a não ser que ficasse fechado em casa. Seria a continuação de uma situação de dependência dos familiares.

Por essa razão, considerámos inadmissível chamar projeto-piloto de Vida Independente a algo que deixava de fora as pessoas que necessitam mais de assistência, que ficariam impedidas de realizar os seus objetivos de uma forma livre.

A avaliação médica foi outra medida que contestaram.

 Discordamos absolutamente com a exigência de um atestado multiusos que é uma avaliação médica com a qual não concordamos. Aliás, esta é também  a opinião expressa pelo Comité de Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas que já fez saber ao Governo português que é necessário alterar esse tipo de avaliação.

Que espécie de problemas pode trazer essa exigência?

Muitas pessoas com deficiência ao nível intelectual que necessitam de assistência pessoal não têm a percentagem de 60 por cento que é exigida.

Criticaram igualmente a constituição de uma equipa técnica com competência para se pronunciar sobre as pessoas que poderão usufruir de assistência pessoal. Porquê?

A proposta de composição dessas equipas seria de três técnicos superiores nas áreas das Ciências Sociais, da Reabilitação ou do Comportamento Humano o que nos pareceu e continua a parecer que é uma visão muito medicalizada daquilo que deve ser a assistência pessoal e nós rejeitamos que esta seja encarada como um serviço de reabilitação.

É a manutenção de uma visão tutelar sobre as pessoas com deficiência quando a Vida Independente é precisamente o contrário disso. É dar o poder às pessoas com deficiência de decidirem a sua vida.

Qual é o verdadeiro papel do assistente pessoal?

 Cabe-lhe cumprir os desejos da pessoa com deficiência e substituir-se às suas pernas e aos seus braços ou apoiar na decisão por exemplo quem tem uma deficiência intelectual, mas nunca decidir pela pessoa. O assistente pessoal não está ali para influenciar ou condicionar ou sequer fazer juízos de valor sobre o estilo de vida da pessoa. Por isso ao introduzir a mediação técnica de terapeutas ou psicólogos, estamos a baralhar um pouco as coisas.

O Governo foi sensível aos vossos argumentos?

 Nós desenvolvemos um processo de participação que passou pela realização de oito sessões públicas de debate, de Norte a Sul do país, sobre a proposta do governo e um inquérito on-line que nos permitiu chegar a mais de 500 pessoas e organizações. Tendo por base os dados recolhidos neste processo enviámos ao governo um documento com as conclusões a que chegámos e 17 propostas de alteração à proposta inicialmente apresentada pelo governo. É de louvar a atitude da secretária de Estado para a Inclusão das Pessoas com Deficiência [Ana Sofia Antunes] porque é raro neste país termos audições públicas que acabam por ter influência no resultado final.

Neste caso, acabou por haver uma série de alterações ao projeto inicial como, por exemplo, a livre escolha do assistente pessoal e também do atestado multiusos deixar de ser exigido no caso das pessoas com deficiência intelectual.

Sublinho ainda a importância de a equipa técnica ter sido reduzida para duas pessoas tendo sido alargado o seu âmbito de especialização porque, quanto a nós, é muito mais útil termos um gestor no projeto-piloto do que um terapeuta.

E a questão relacionada do tempo disponibilizado pelos assistentes?

 Dada a contestação generalizada desta medida pelas pessoas com deficiência e na sequência do processo negocial com a Senhora Secretária de Estado para a Inclusão, conseguimos que 30 por cento das pessoas que vão estar integradas nos projetos-piloto não tenham limite de horas atribuídas em termos de assistência pessoal que assim pode chegar até às 24 horas por dia.

Partindo do princípio que nem todas as pessoas vão necessitar de tantas horas de assistência, podemos dizer que com estas medidas aproximamo-nos de um projeto de Vida Independente satisfazendo assim todas as necessidades reais das pessoas.

Considera que se está a dar um passo importante na alteração do paradigma das políticas para as pessoas com deficiência que têm existido no país?

Eu diria que é um passo enorme, um avanço significativo num caminho que começámos a desbravar de uma forma mais determinada a partir de 2013.

E em relação ao envolvimento das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) no projeto?

Na minha opinião uma política nova deveria basear-se em novas formas de organização geridas pelas pessoas com deficiência. Numa política de Vida Independente devem ser quanto a mim as pessoas com deficiência a ter o comando das operações.

Essa posição é fruto de alguma reserva de cariz político em relação a estas organizações?

Na maioria dos casos, as IPSS não têm pessoas com deficiência nos seus órgãos de gestão, ou quando estão são uma minoria e por isso não têm o poder de decisão.

É também um pouco perverso vermos integrarem este projeto instituições que têm lares residenciais e toda uma filosofia institucionalizadora uma vez que a Vida Independente parte da concretização de políticas que visam precisamente o contrário, ou seja, desinstitucionalizar as pessoas, tirá-las dos lares, integrá-las na comunidade.

De acordo com estes princípios, são dois tipos de políticas que se chocam, que são incompatíveis. Ou as pessoas com deficiência têm o poder de decidir e são donos das suas vidas ou não têm e são outros a decidir por elas sobre como serão e como devem ser as suas vidas.

Não foi este o entendimento do governo.

E agora, depois deste processo de definição de um modelo, como vai ser?

Os próximos tempos vão ser de capital importância para o futuro da Vida Independente em Portugal. Será fundamental a participação das pessoas com deficiência no processo de gestão dos projetos-piloto, para que não sejam capturados por organizações que têm uma visão assistencialista e reabilitadora, em tudo contrária à filosofia de vida independente.

Aguardamos, ainda, que sejam aprovadas uma Resolução do Conselho de Ministros e uma Portaria que irão estabelecer o enquadramento normativo das candidaturas à implementação de projetos-piloto.

Sabemos de muitas pessoas com deficiência em todo o país que necessitam de assistência pessoal e que estão dispostas a organizar-se para se candidatarem à gestão de projetos-piloto. É este o caminho e temos de dar todo o apoio a esta auto-organização, pois não há melhores especialistas nas necessidades das pessoas com deficiência do que elas próprias.

Será a experiência dos projetos-piloto que servirá para tirarmos as conclusões sobre as melhores práticas e modelos de gestão da assistência pessoal que nos permitirão fazer uma boa lei de Vida Independente.

É tempo de mobilização da comunidade das pessoas com deficiência e de reforçar o ativismo pela Vida Independente. Não podemos perder esta oportunidade.

A Vida Independente é um avanço na política na área da deficiência, mas não esgota o que será necessário fazer. Como avalia o que tem sido feito nesta área e o que falta fazer?

Diria que falta quase tudo. Embora se verifique uma nova forma de encarar as políticas nesta área, passado mais de ano e meio desta governação, ainda não se sentem efetivamente grandes mudanças na vida concreta das pessoas com deficiência e das suas famílias.

No final deste ano teremos finalmente a entrada em vigor da Prestação Social para a Inclusão, mas de uma forma faseada, o que irá desvirtuar os princípios que a orientam e com os quais estamos completamente de acordo.

Deixar para o último trimestre de 2018 a entrada em vigor do complemento que irá fazer com que a prestação seja no valor igual, ou superior, ao patamar do limiar de pobreza, parece-nos de grande injustiça para uma população que há demasiados anos está a viver com prestações miseráveis que são sensivelmente metade do valor desse limiar de pobreza. Já era altura de se fazer justiça.

Também não concordamos com a intenção de só no final de 2019 estar prevista a revisão dos apoios às crianças e jovens com menos de 18 anos.

Estes apoios são fundamentais para as famílias que vivem situações dramáticas para proporcionar apoio e os cuidados necessários aos seus familiares.

Aprovados dois Orçamentos do Estado e as famílias pouco mais tiveram para além do aumento do subsídio por assistência por terceira pessoa, que ficou num valor ridículo de 60 cêntimos hora, ou do aumento de 2 euros mensais na bonificação por deficiência do abono de família. Também foi aumentada a dedução à colecta em sede de IRS para as famílias com pessoas com deficiência a cargo, mas o que sabemos é que estas famílias são na sua generalidade pobres não tendo por isso muitas elas sequer colecta de IRS, não tendo assim qualquer benefício.

O estado português não pode continuar a esquecer as famílias e a delegar nelas as despesas extra que são da sua responsabilidade, empurrando-as para um processo de empobrecimento.

É preciso que o governo defina, de uma vez por todas, uma política para a deficiência, que estabeleça uma estratégia que cumpra os direitos estabelecidos na Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência.

Uma estratégia com objectivos claros, acções concretas, um calendário para as cumprir e o financiamento previsto para cada uma delas. Foi isto que o Comité dos Direitos da Pessoa com Deficiência disse que Portugal devia apresentar até Março deste ano. Já passaram quatro meses desse prazo e não se conhece nenhuma proposta de estratégia. E não se conhece também um processo de auscultação das pessoas com deficiência na construção dessa estratégia. Não podemos continuar assim. Vamo-nos bater para que assim não seja.

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