Poeta do invisível

28 de setembro 2007 - 0:00
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Normalmente, quando se fala em mímica, a imagem que vem à cabeça é a de um actor ou uma atriz de rosto pintado de branco, que veste roupas listadas, calças largas e chapéu. O artista age em silêncio e, com gestos precisos, faz com que a audiência entenda perfeitamente o que ele cria em cena. A existência dessa caracterização e dessa técnica, que comove e influencia pessoas no mundo inteiro há 60 anos, deve-se ao trabalho do genial francês Marcel Marceau, que morreu no dia 22 de Setembro, aos 84 anos.



Por Mariana Ceratti, publicado originalmente pelo Correio Braziliense em 24/9/2007



Marceau fascinou plateias, fez rir e chorar com um personagem que, hoje, exactamente 60 anos depois de sua criação, é imitado por milhares de admiradores: o cómico, sensível, melancólico, altamente falível (portanto, humano) e inigualável Bip. Com a sua criatura, o mímico rodou o mundo e materializou uma técnica que exige anos de estudo e uma disciplina corporal digna de um bailarino clássico ou de um atleta. "Antes mesmo de existir a Internet e essa tecnologia de hoje, Marceau já agia num mundo virtual", compara o mímico Miquéias Paz, um dos principais representantes dessa arte no Distrito Federal (Brasil). Há 10 anos, ao saber que o seu ídolo faria uma apresentação em São Paulo, Miquéias não teve dúvidas: pegou o carro e guiou durante uma noite inteira só para vê-lo. "Ele estava com setenta e poucos anos, mas exibia o vigor de um rapaz de 20", lembra-se.



É Miquéias que descreve um dos princípios do método de Marceau: o trabalho com um ponto interno de referência, sem conexão com o cenário. "A partir desse ponto, o actor estabelece como é seu ambiente e onde estão os objectos em cena. Dá a esses objectos peso, inércia e movimento. E faz o corpo reagir a eles", define. A precisão e a elegância que o mestre dos mímicos dava aos seus gestos era tamanha que acabou inspirando artistas e criadores que, a princípio, nada têm a ver com as artes cénicas. Um deles foi Michael Jackson. Inspirado em Marceau, o astro do pop inventou o moonwalk, o passo de dança em que ele anda para trás, como se fosse empurrado pelo vento.



Talento nato



Mas Bip, o alter ego de Marcel Marceau, não era feito só de gestos capazes de recriar um mundo à parte em cena. Mais do que abrir portas e brincar com objectos virtuais, mais do que tocar instrumentos invisíveis e criar animais diversos com o corpo, o personagem transmitia a emoção de seu criador e reflectia a história de Marceau. "O mímico que se desinteressa pelos sentimentos humanos faz somente um teatro de movimentos", dizia o mestre. Nascido Marcel Mangel em Estrasburgo, na França, em 22 de Março de 1923, ele pertenceu a uma família judaica com ideais socialistas e diversos artistas, como músicos e dançarinos.



Aos 7 anos, o garoto já divertia os amigos da vizinhança. "Descobri que poderia fazer as pessoas rir e chorar sem falar", disse Marceau, em entrevista ao site Salon.com. Naquela época, não sabia que estava a fazer mímica - já que, nas brincadeiras, a ideia era somente imitar os seus ídolos do cinema mudo, como Charlie Chaplin. Em 1939, o jovem Marcel e a sua família tiveram de sair à pressa de casa no dia em que a França entrou na Segunda Guerra Mundial. O rapaz e o seu irmão mais velho, Alain, fugiram para Limoges. Para esconderem as origens, naqueles tempos de anti-semitismo, os irmãos mudaram o sobrenome para Marceau.



Em 1944, o pai de Marceau, um talhante, foi preso e levado para o campo de concentração de Auschwitz, na Polónia, onde morreu. A mãe do artista foi para Perigueux, sul da França, com Alain e Marcel. Tempos depois, os irmãos fugiram para Paris. Marcel Marceau acabou por entrar, em 1946, para a Escola Charles Dullin de Artes Dramáticas. Foi lá que conheceu o seu mentor, o lendário Étienne Decroux (1898 - 1991). O professor ensinou ao jovem que havia uma arte chamada mímica - e que ele a praticava, sem saber disso, desde os tempos de diversão na infância. "És um mímico nato", disse o mestre ao pupilo, uma frase lembrada por Marceau na mesma entrevista à Salon.com.



Arte banalizada



As boas relações entre Decroux e Marceau, no entanto, não iriam durar muito tempo. O motivo? As escolhas artísticas do criador de Bip. Quem as explica melhor é a atriz, directora e professora Nadja Turenko, ex-aluna de Corinne Soum - professora de mímica tanto na escola de Marceau quanto na de Decroux. "Eles separaram-se a partir do momento em que Marceau resolveu fazer um resgate da pantomima clássica, do século 19, que é uma tradição europeia. Na pantomima, o gesto reproduz alguma coisa que não está ali. E há movimentos e números que são básicos: quando o Marceau juntava o polegar com o indicador e mexia os dedos, por exemplo, a plateia sabia que aquilo era um bicho voando."



Decroux, por sua vez, desenvolveu um trabalho hoje conhecido como mímica corporal dramática ou mímica moderna - que, entre outras características, permite que o actor emita sons e não tem um repertório corporal definido. Quando o então discípulo resolveu seguir um caminho próprio, claramente voltado para as massas, Decroux entendeu que Marceau estava a banalizar a arte da mímica. E nunca perdoou ao aluno.



Em 1947, Marcel Marceau começou a fazer sucesso como mímico. Nessa época, não só criou o seu personagem mais famoso, como começou a fazer participações em filmes - Les enfants du paradis foi o primeiro. Depois, vieram, entre outros, Barbarella (1968) e A última loucura de Mel Brooks (1976), em que, curiosamente, Marceau diz a única fala ("Não!"). Às primeiras apresentações na França, seguiram-se encenações na Itália, Suíça, Bélgica e Holanda. Única trupe de mímica no mundo nos anos 1950 e 1960, a Companhia Marcel Marceau actuou nos principais teatros do mundo. Em 1955, já tendo escrito milhares de números especiais para Bip, fez a primeira de muitas montagens nos Estados Unidos, mais precisamente na Broadway. O então pouco conhecido artista tornou-se um sucesso de público e crítica.



Clássico eterno



Apesar do reconhecimento que teve ao longo de seus mais de 60 anos de carreira e da noção que tinha de sua habilidade ("Há apenas um Marcel Marceau", costumava dizer), o artista tinha medo de que o seu método se desvanecesse depois de sua morte. "Ouvi dizer que sou um clássico. Mas o tempo passa tão depressa e as pessoas esquecem-se de tudo rapidamente. O que é importante é manter-se um clássico depois que a sua vida acaba. Uma forma de fazer isso acontecer é levar a mímica para cada vez mais jovens." Com esse intuito, Marceau fundou, em 1978, a Escola Internacional de Mimodrama de Paris, que até hoje recebe jovens de todas as nacionalidades, entre os 18 e os 26 anos.



Marceau era Embaixador da Boa Vontade das Nações Unidas para o Envelhecimento e recebeu diversos prémios, incluindo dois Emmy pelos seus programas de TV. Em 2005, aos 82 anos, realizou uma tourné de despedida pela América Latina, que o levou ao Brasil, a Cuba, à Colômbia e ao Chile.

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