O regresso da raça, texto de Étienne Balibar

07 de abril 2007 - 0:00
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Como os fantasmas da raça e do racismo se transformam apoiando-se na reconfiguração do “inimigo íntimo”, muitas vezes sob uma coberta de universalismo.



Texto de Étienne Balibar, filósofo e professor universitário jubilado, publicado no site Mouvements des idées et des lutes (movimentos das ideias e das lutas).



Falo do regresso da raça e não das raças. Dito de outra forma, o que me interessa, mais do que grupos “concretos” (ou supostos como tal, como as “raças” da antropologia física e cultural do século XIX), é uma ideia, atrás da qual se perfila uma estrutura. As coisas, sem dúvida, nunca são tão simples como esta definição possa fazer crer. É difícil imaginar uma “raça” genérica que não se materialize em oposições e hierarquias de grupos. Mas trata-se aqui de sugerir que, entre o aspecto estrutural, quase-transcendental do problema, e as suas manifestações empíricas, as relações se modificaram em relação ao que se ensinava, ainda recentemente, na história das ideias.



Para os nosso contemporâneos nem a existência, nem o número, nem as delimitações entre as “raças” têm já qualquer evidência, mas os nomes da raça continuam a funcionar na identificação de diferenças étnicas e culturais. Continua-se a falar de “Europeus”, de “Orientais”, de “Árabes” de “Negros” ou de “Africanos”, etc. Mais que nunca talvez o princípio da raça ou da “racialização” se imponha social e culturalmente, em particular como princípio genealógico, assim como representações que relacionam com a origem e a descendência supostas “mentalidades” ou “atitudes” individuais e colectivas. Trata-se de racismo no sentido mais amplo do termo – sem que seja oportuno distinguir, como é sugerido por vezes, entre “racismo” e “racialismo”. Falar de regresso da raça, é em primeiro lugar insistir no facto de que não só o racismo neste sentido elementar está sempre presente, mas que adquiriu uma nova virulência.



Mas porquê regresso? Haveria eclipse, desaparecimento? E de onde regressaria este racismo desaparecido? Talvez muito simplesmente do fundo do nosso esquecimento, da nossa ingenuidade, que nos impediam de perceber o que se passava sob os nossos olhos, um pouco além e aquém de certas fronteiras. Ou do fundo das nossas ilusões e das nossas condescendências, que nos faziam acreditar na incompatibilidade dos princípios democráticos e humanistas oficializados com a teoria e a prática do racismo, excepto como “sobrevivências” e “anomalias”. Mas talvez também seja preciso sugerir que a “raça” regressou com outra face e com outros nomes, e que nós não podíamos reconhecê-la à primeira vista. Tentemos portanto deslindar o que regressa em cada uma destas possibilidades.



Toda a reflexão sobre o regresso da raça apela a uma reflexão simétrica sobre o futuro do racismo. Melhor: dos racismos, já que o que o torna um problema é justamente a sua multiplicidade. Vemos então clarificarem-se os dados da questão: não se trata só de descrever praticamente a resistência inesperada do fenómeno “racismo” ou do seu ressurgimento na nossa sociedade, mas de formular hipóteses de investigação sobre o que serão ou poderão ser as formas futuras do racismo, que tendem a surpreender-nos porque contradizem a imagem que temos da evolução das nossas sociedades, dos nossos sistemas políticos e culturais, dos quais temos necessidade para viver, mas que sentimos confusamente que estão em crise. Trata-se de questionar uma convicção profundamente enraizada na consciência do progresso da razão e da democracia: que o racismo e a fortiori a ideia de raça pertencem ao passado e portanto só podem definhar antes de desaparecer de uma vez por todas. Ao contrário desta convicção tranquilizadora (tão mais forte que levou a que fosse pago um preço extraordinariamente elevado num passado ainda recente), devemos perguntar seriamente se esta representação optimista não é um mero preconceito ideológico. Qual será o futuro dos racismo e da própria raça: importante ou limitado? Contingente ou necessário? Mais ou menos semelhante aos modelos históricos, ou feito de metamorfoses oscilantes entre a possibilidade de novos racismos e a possibilidade dos que já conhecemos desembocarem no surgimento de novas formas de violência colectiva, como sugere a expressão “racismo sem raças” de que se servem muitos antropólogos e sociólogos? Devemos tentar imaginar para poder enfrentá-lo.



Uma tal questão sem dúvida não surge do nada. É provocada por tendências destrutivas da conjuntura às quais é difícil escapar. Seria preciso aqui toda uma análise, e eu tenho de me contentar com uma descrição geral, mas suficiente espero eu, para indicar um fio condutor. As razões para nos interrogarmos sobre o regresso da raça e sobre o futuro dos racismos não têm o seu ponto de partida nem na teoria pura nem numa constatação puramente empírica, mas numa série de problemas de definição e de interpretação que circulam entre ambos. Retenho quatro “sinais dos tempos” que procurarei caracterizar insistindo na sua especificidade, assim como na sua interdependência - ou antes pressupondo que esta é, em geral, uma característica do curso actual da “mundialização”.



Primeiro sinal: o desenvolvimento exacerbado dos nacionalismos do Norte tal como do Sul e a sua propensão ao etnocídio e mesmo ao genocídio. A mundialização vira as costas às perspectivas “cosmopolíticas” traçadas pela tradição das Luzes e pela sua posteridade contemporânea (Habermas), ela apresenta-se antes como um cosmopolitismo invertido. A intensificação das comunicações, a acentuação das interdependências, a relativização do sentido das fronteiras e a emergência progressiva de um espaço político e cultural comum não produzem o reconhecimento mútuo, ou a consciência de pertencermos a uma mesma humanidade, mas a uma intensificação das intolerâncias, das pulsões de destruição fundadas na reivindicação de identidades colectivas mais ou menos imaginárias – e por esta mesma razão praticamente indestrutíveis. Certamente que se poderia aqui sugerir que esta mudança de perspectiva se explica pelo facto da mundialização permanecer inseparável de fenómenos de dominação e de concorrência que revelam o seu carácter imperialista. Mas uma observação deste género só eleva um grau ao problema ou acrescenta um traço à sua descrição.



Segundo sinal: o que se chamou (Huntington) o “choque das civilizações” (clash of civilisations). Não contestarei que, sob a forma que lhe conferiu o seu inventor e que fez a sua fortuna, esta fórmula adaptada às necessidades da política neo-imperial dos EUA é uma abstracção fundada em generalizações apressadas de “factos” sociológicos e políticos heteróclitos. É também uma self-fulfilling prophecy e é justamente o que a torna inquietante: pouco a pouco passa para a realidade, torna-se uma regra de conduta e um instrumento que permite aos adversários definirem-se eles-próprios segundo o modelo “amigo-inimigo” teorizado por Schmitt. Constitui o ponto de acordo paradoxal entre os que, por outro motivo, se definem como inimigos irreconciliáveis, entre os quais nada é comum: o ponto de acordo está justamente no facto de que eles não têm qualquer possibilidade de negociação ou diálogo, já que pertencem, por essência, a culturas (ou civilizações) incompatíveis. Apesar desta lógica ser falsa historicamente (porque todas as “civilizações” distinguidas assim estão fundadas em contributos recíprocos ou, como dizia Lévy-Strauss em Raça e História, “coligações”, e comportam uma diversidade interna pelo menos igual à que as distingue umas das outras), ou antes exactamente porque ela é falsa, começou a ditar acções e reacções, incluindo na forma de actos falhados (como como vimos não há muito por ocasião das declarações “intempestivas” do papa Joseph Ratzinger sobre o carácter violento do Islão enquanto religião). O que levanta a questão da importância real do factor religioso nas representações da política mundial. Seria preciso aqui discutir a sobredeterminação intrínseca das ideias de “civilização” e de “conflito de civilização”, em particular para revelar a interacção complexa que se estabelece no discurso político entre religioso (para não falar de um pós-religioso, de um religioso em crise permanente, característico da pós-modernidade) e pós-colonial (o qual no essencial não se distingue em nada do colonial ou como forma de continuação).



Terceiro sinal: o capitalismo tende a transformar-se – por um lado pelo menos – em “bio-capitalismo”, fundado no desenvolvimento de uma “bio-economia”. Isto não é uma novidade absoluta: Marx tinha-o considerado ao se concentrar na reprodução da força de trabalho como processo integrado no ciclo de acumulação do capital (no “capítulo inédito do Capital”), e Foucault definiu a bio-política como o conjunto das técnicas de governo que fazem do Estado o agente de uma normalização dos corpos individuais e de uma regulação dos processos demográficos (em Surveiller et Punir [Vigiar e punir], e nos cursos do Collège de France dos anos 1976 e seguintes). Mas o importante hoje, a novidade tendencial, é precisamente o declínio relativo da bio-política dos Estados a respeito da bio-economia, a preponderância dos mecanismos de mercado sobre os de administração (...)



Quarto sinal: o bloco de regimes políticos que se apresentam como “democráticos” (...) corresponde na realidade a uma forma de democracia exclusiva, ou de democracia para alguns e não para outros, sob a forma de direito igual. É preciso para isto aperfeiçoar mecanismos que permitam mascarar a exclusão ou naturalizá-la fazendo dela a própria forma do universal, ou a sua consequência lógica. Também este não é um fenómeno absolutamente novo. Talvez, como sustentou Luciano Canfora (...), toda a “democracia” histórica tenha sido sempre fundada na exclusão, a cidadania “limitada”. Mas em graus diversos, sabemos, e a partir de legitimações opostas entre si. O facto é que os sistemas políticos que se apresentam hoje como modelos de democracia e de participação cívica são também os que excluem praticamente a maioria da sua população da escolha dos seus dirigentes a través de mecanismos de segregação social (como nos EUA), ou mantêm instituições de apartheid larvado (como Israel a respeito dos seus cidadãos “árabes” ou a União Europeia que define uma nova cidadania transnacional de que permanecem excluídos os “imigrados” ou “estrangeiros extra-comunitários”, muitos dos quais instalados no seu território há várias gerações). (...)



Isolando assim certas tendências heterogéneas da política contemporânea, não pretendo dar um quadro exaustivo, mas quero tornar compreensível o que provoca a urgência prática e política do “regresso da raça” e do neo-racismo, por conseguinte do futuro dos racismos no mundo actual “mundializado”. Quero também recordar que se trata de uma questão decisiva para que, sabendo criticar os limites e contradições do seu universalismo auto-proclamado, a Europa continue a representar um lugar de elaboração da democracia, do que depende a própria possibilidade da sua construção.



Entretanto, o facto de supôr uma interacção entre o regresso do racismo e as tendências da conjuntura histórica em que se insere não chega para o compreender, pode mesmo induzir-nos em erro. Porque esta relação não pode ser da ordem da instrumentalização. Mas deve passar para a mediação de processos simbólicos, conscientes ou não, desenvolvendo-se no campo do imaginário colectivo e agindo em compensação nas próprias tendências históricas. É neste nível que se pode determinar se as palavras “raça” e “racismo” são ajustadas para interpretar certas tendências destrutivas da humanidade, ou certos aspectos tipicamente modernos do niilismo cultural. Por isso, de novo, a questão: o regresso da raça está na continuação da história passada ou inicia uma mutação das estruturas do ódio, que importa compreender para dar de novo à ideia de humanidade a capacidade de superar as suas deficiências e ultrapassar os seus limites? (...) Não temos só assistido a um “regresso da “raça”, mas também a um retorno da teoria sobre a raça, sintoma de conjuntura cujo o momento veio apontar-nos certas consequências. Sublinho particularmente três.



As primeiras dizem respeito às próprias transformações do conceito de “racismo”. Diferentemente do nome “raça”, cujas origens remontam ao período da transição entre o fim da Idade Média e a primeira modernidade, o conceito de “racismo” é recente: cristaliza-se nos anos 1940-1950, no momento da mudança da ordem internacional provocada pela Segunda Guerra Mundial. Daí a conjunção típica de três grandes problemas históricos e geográficos: o anti-semitismo europeu, o colonialismo e a segregação das pessoas de “cor”. Trata-se aqui ao mesmo tempo de uma “invenção” cujas condições permanecem agregadas para sempre ao uso deste conceito, e do ponto de partida de uma série de disjunções e de metamorfoses que levaram a que os seus usos actuais divirjam largamente dos primeiros e contradigam os significados. Neste sentido, no momento do regresso da raça a ideia de “racismo” está em crise: teórica em primeiro lugar, mas não sem consequência políticas. E da mesma forma a noção de anti-racismo, que está ligada à ideia da democracia contemporânea e como tal anti-fascista, pós-colonial, anti-segregacionista, também se encontra posta em questão. (...)



As segundas consequências penso que aprofundam a articulação simbólica das dimensões antropológicas e políticas da “raça” e da sua representação. Quando se examina os discursos que conferiram uma função central à noção de raça desde há três séculos, a sua complexidade é tal que se tem a impressão de escrever uma “história total” da cultura ocidental, ou melhor uma história invertida dos seus ideais, face “impolítica” da qual seria muito arriscado pretender que permaneceu exterior às suas capacidades de criação e às suas correntes dominantes. Para não forjar com simplificações uma totalidade imaginária, creio que é preciso tomar como fio condutor a produção e a reprodução em condições incessantemente renovadas do inimigo interno. É uma figura quase “ontológica”, mas também um processo institucional quotidiano, situado à partida e à chegada das práticas sociais que misturam inextrincavelmente a atracção e a repulsa: está hoje no centro da violência que a Europa (mas também outras partes do mundo) exerce contra os seus “imigrados”. (...)



Finalmente, convém apontar uma terceira ordem de consequências das discussões contemporâneas sobre o racismo que inflectem “estrategicamente” o seu uso, cobrindo os domínios sociológico assim como antropológico e político: penso na possibilidade ou não de isolar a questão da raça das outras estruturas de dominação, de normalização da vida humana e de violência social aberta ou escondida. Por seu turno, três simetrias vieram aqui ocupar o primeiro plano e articular entre elas debates teóricos, lutas, processos de subjectivação: em primeiro lugar a articulação entre raça e classe (sobre a qual os trabalhos de Foucault projectaram uma luz arqueológica forte, talvez ofuscante, em que o fio da crítica era dirigido contra certos mitos da tradição socialista e marxista expondo o tema da “luta das classes” para melhor cobrir o da “luta das raças”); em seguida a articulação raça-sexo (ou raça-género segundo a terminologia preferida pela sociologia americana, que tem o inconveniente de sugerir uma variabilidade puramente cultural da diferença dos sexos); enfim a articulação raça-religião ou se se quiser não ficar encerrado num conceito ocidental -cêntrico da “religião”, a articulação da raça e da instituição do sagrado (mas não esqueçamos que o que trouxe este problema a primeiro plano e o impôs à nossa atenção foi a polémica sobre o “choque das civilizações” cujo alvo é constituído pelo essencialismo islâmico, e em contrapartida a discussão sobre a permanência do anti-semitismo e a necessidade de incluir o anti-judaísmo e a islamofobia tradicional num “anti-semitismo” generalizado”, cuja fonte simbólica está ligada precisamente à história dos monoteísmos ocidentais e à sua função messiânica).



É ainda necessário não simplificar as coisas. Descobrimos hoje que a verificação destas estruturas de poder e de sujeição é de facto constitutiva delas. Por isso, é absurdo, no limite, procurar isolar a raça e o racismo dos seus contextos de classe, de sexo, de religião. Inversamente poder-se-ia ser tentado a operar uma redução histórica das representações e instituições da raça a diversas combinações de relações de classe, de sexo e da instituição do sagrado: a raça em sentido estrito “não existiria”, mas por razões muito diferentes das invocadas por Sartre: ela seria um nome, uma projecção ideológica e discursiva de estruturas económicas de exploração e de instrumentalização do vivente humano (a “mundialização” é no fundo contemporânea da emergência do capitalismo e do seu “mercado da força de trabalho”), de certas formas de imposição do princípio genealógico (inseparáveis do poder sexual dos homens sobre os corpos das mulheres e de incorporação deste poder dos homens na reprodução da comunidade), enfim de uma lógica tipicamente religiosa de definição do puro e do impuro, do sagrado e do profano, das forças redentoras e demoníacas, que se combina estreitamente à exploração e ao sexismo. O facto de “reconstruir” a raça como um efeito combinado destas lógicas de classe, de sexo e de religião teria a imensa vantagem de contribuir para “des-substancializar”, para desmistificar. Mesmo a raça “biológica” que se apresentava no século XIX (e ainda no XX) como um conceito científico deveria e poderia ser interpretada nestes termos, o que nos ajudaria a compreender como a instituição científica permaneceu profundamente marcada no seu funcionamento como nas suas funções políticas de legitimação por estruturas sociais de tipo capitalista, patriarcal e monoteísta. Compreenderíamos melhor então a sobredeterminação das representações e das relações de dominação que convergem para produzir de maneira essencialmente inconsciente a imagem fascinante e terrífica do inimigo íntimo e reproduzir as estruturas da exclusão interna sob a hegemonia aparente do universalismo. Mas uma tal redução seria ainda muito rápida, porque ela nos faria perder o sentido particular, quase fenomenológico, induzido pelo nome de raça ou por este ou aquele dos seus equivalentes num lugar e num momento dados: “árabe”, “muçulmano”, “negro”, “imigrado” hoje na Europa. Devemos trabalhar numa perspectiva histórica e sociológica em que o facto de nunca se poder separar absolutamente a raça nem das relações de classe e de exploração, nem das estruturas familiares e sexuais, nem dos conflitos religiosos e das representações do sagrado, não leve a reduzir todos os racismos a uma única combinação abstracta, mas antes abra a possibilidade de compreender as variações, os aspectos “dominantes” e a novidade a respeito dos racismos passados e futuros. É somente desta maneira que responderemos à ideia profundamente incómoda de que a raça está ainda diante de nós.

 

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