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A sede da liberalização

As lições das crises recentes servem para questionarmos algumas das verdades absolutas que estavam instituídas. Diziam-nos que ao mercado bastava apenas o mercado, mas se não fosse o Estado, o mercado teria sofrido um abalo quase fundacional em 2008.

O artigo de hoje é um exemplo da transposição da ideologia para as situações mais comezinhas da nossa vida. Aliás, é a identificação como um caso concreto, aparentemente de menor importância, pode ter um cunho ideológico muito definido.

Afinal, o Estado, que tinha sido diabolizado ao longo de décadas, foi o salvador do mercado, quando este se consumiu a si próprio. Foi exactamente isso que aconteceu na crise financeira de 2008, quando os bancos foram salvos pelos estados. O primeiro dogma que ruiu é relativo à autosustentação do mercado: verificou-se que o mercado não se auto-regula e, por isso, teve de ser salvo de si próprio. O segundo dogma que ruiu foi o de que o Estado não deveria interferir no mercado.

A desconstrução dos dogmas que referi foram um enorme abalo na ideologia neoliberal. Digamos que foram os esqueletos que saíram do armário e mostraram a falência do neoliberalismo. Um outro dogma em que a teoria liberal se alicerça é o da livre concorrência. Digamos que, de forma indirecta, ficou já afectado com a falência dos anteriores. Mas, devemos notar, a sua base de difusão era muito menos credível. Basta vermos os jornais para, mesmo sem a crise financeira, percebermos que a livre concorrência é uma falácia. Américo Amorim tornou-se o homem mais rico de Portugal à custa de um negócio com o Governo de José Sócrates: exactamente de uma forma que ataca a livre concorrência. Aliás, o trajecto industrial de Américo Amorim demonstra até como ele só conseguiu ficar mais rico à custa de uma brutal diminuição da concorrência no sector corticeiro. E, com apenas este exemplo, se demonstra como a livre concorrência não é nem real, nem sequer uma virtude, dado que aqueles que realmente são valorizados, raramente assumiram essa posição de destaque sem colocarem em causa a livre concorrência. Este é o triunvirato dos dogmas que caiu e de cuja queda não nos podemos esquecer, nem deixar que ninguém se esqueça.

O caso concreto que referi logo no início do texto prende-se com a certificação das instalações de gás e electricidade. Compreendem agora porque referi que este era um tema aparentemente menor na agenda política. Contudo, servirá para ilustrar a forma como a ideologia encontra o dia-a-dia em questões tão comezinhas como estas.

A certificação das instalações de gás e electricidade é a segurança de quem compra uma habitação. Seja num apartamento ou numa moradia, a certificação realizada por uma entidade independente, indicando que a instalação se encontra devidamente efectuada, é uma garantia forte de que não ficará em causa a nossa segurança pela incúria dos construtores. Realço, neste ponto, a necessidade da certificação ser feita por uma entidade independente dos interesses do construtor e, devido a essa independência, seja objectiva e séria na avaliação.

Historicamente, a certificação das instalações era realizada pelas entidades regionais do Ministério da Economia ou pelas empresas distribuidoras. A difusão da ideia de que existia demasiado Estado levou a que nos governos de Cavaco Silva se começasse a preparar o terreno para que as certificações das instalações deixassem de ser realizadas pelas entidades regionais do Ministério da Economia. E, assim, foi sendo aberto o caminho para que privados assumissem as funções que anteriormente eram executadas pelo Estado. No Governo de António Guterres, deixou de existir qualquer interferência das entidades regionais do Ministério da Economia no processo de certificação, passando a ser totalmente executado por privados. Neste ponto, ainda não estavam cumpridos os dogmas neoliberais na sua plenitude: apesar da ausência da presença do estado nestas actividades económicas, as restrições à actividade ainda não permitiam a existência de um mercado liberalizado, obrigando que as entidades certificadoras fossem pessoas colectivas, certificadas e acreditadas. No sector do Gás o mercado era de livre concorrência, mas restrito às entidades promulgadas pela Direcção Geral de Energia e Geologia. O sector da Electricidade tinha restrições muito mais efectivas, existindo apenas três entidades certificadoras distribuídas por zonas geográficas, sem qualquer concorrência entre si.

O passo final neste processo de implantação neoliberal chegou com a tão badalada liberalização do mercado das inspecções. Dessa forma, o Governo de José Sócrates criou um novo sistema de certificação das instalações de gás e electricidade. Os pilares do novo sistema baseavam-se na existência de um termo de responsabilidade por parte do técnico responsável pela execução da obra e na possibilidade das autarquias realizarem inspecções aleatórias às instalações.

Percebe-se, facilmente, o alcance destas medidas: por um lado a pressão sobre os técnicos para assinarem termos de responsabilidade de obras que não cumpririam as regras de segurança; por outro lado, as autarquias, já deficitárias nos seus orçamentos e conhecimento técnico, não realizariam qualquer controlo sobre as instalações e sobre o trabalho dos técnicos. Resultado final: todos nós ficaríamos mais indefesos perante os interesses dos construtores civis.

A preocupação com a segurança não é apenas teórica. O grau de não conformidades na primeira análise de projectos chega aos 80%. O número de projectos que, após a fase de instalação, necessita de correcções atinge os 50%. Estes dados são os bastantes para se perceber a gravidade e o alcance da medida legislativa proposta pelo Governo. Este foi o ponto em que a cegueira ideológica se sobrepôs à segurança dos cidadãos. É também a prova que muitos não tiraram as devidas conclusões da derrota que o neoliberalismo sofreu em 2008, pelo que não podemos deixar de a lembrar.

A resposta que o Bloco de Esquerda teve para com esta situação foi a de, activamente, impedir que a legislação entrasse em vigor. Sendo certo que não secundamos o modelo que actualmente existe, o modelo proposto pelo Governo seria completamente incauto. Assim, entregamos uma apreciação parlamentar sobre a matéria, na qual fomos acompanhados pelos restantes partidos da oposição. Seria de esperar que, face a esta demonstração de força de toda a oposição, o processo tivesse decorrido de forma célere e o governo facilmente saísse derrotado. No entanto, a realidade foi bem mais dura. O PS tudo fez para, administrativamente, atrasar o processo. Este atraso chegou ao ponto de só ter sido concluído o processo da apreciação parlamentar quase três meses depois do seu início. Por outro lado, o peso ideológico das medidas do Governo colocou muitas dúvidas na acção do PSD. Foi de tal forma difícil, que o voto do PSD contra as medidas do Governo só se atingiu quando o debate político saiu das ideias e entrou no carácter dos deputados. Dito de outra forma, a união de ideias do Bloco Central só foi subjugada perante o confronto dos egos pessoais.

A vitória que a oposição conseguiu foi um enorme passo na defesa da segurança dos portugueses, no que às instalações de gás e electricidade diz respeito. Contudo, apenas se venceu uma batalha, estando ainda em aberto o desfecho da guerra. E os argumentos que serviram para esta vitória, como referi, são extremamente débeis, mas, demonstram como a velha máxima de dividir para reinar ainda pode ser aplicada na política.
 

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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