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Centenário do armistício: glorificação e banalização da guerra

Os lisboetas viram passar na Av. da Liberdade “o maior desfile militar dos últimos cem anos”, para assinalar o Armistício da I Guerra Mundial. Ora, se há guerra de que ninguém se deva orgulhar, esta é uma delas.

Meu pobre e louco Portugal, se deres o teu assentimento à guerra, é porque imaginas que estamos ainda no tempo das partazanas. A tua noção objectiva do mundo estacou nessa ápoca recuada. De facto, a essa altura da História, os homens mediam-se pela força do braço e a grandeza da alma. Hoje estas medidas não contam; os dirigentes do mundo têm alma de rato; são velhos sem orgasmo ou temporãos caducos. Não vão à guerra; mandam, por via de regra, os filhos dos outros.[...] Meu pobre Portugal, sem fábricas, sem dinheiro, com negação absoluta para o expediente, que triste figura não hás-de fazer se puseres essa cruz às costas.”

Aquilino Ribeiro, “Diário”, 1914

 

No passado dia 4 de novembro, os lisboetas e os turistas viram passar na Av. da Liberdade “o maior desfile militar dos últimos cem anos”, para assinalar o Armistício da I Guerra Mundial, “estimular o orgulho nacional e ser um acto de cidadania”. Ora, se há guerra de que ninguém se deva orgulhar, esta é uma delas. O único acto de cidadania que esta guerra pode estimular é a manifestação de repúdio pelas classes dominantes que, assustadas pelo avanço das ideias socialistas entre os trabalhadores europeus cansados da brutal exploração do capitalismo financeiro-industrial, mandaram os operários e camponeses dos seus países servirem de carne para canhão no jogo de partilha das colónias e mercados, condenando à morte cerca de 37 milhões de pessoas (8 a 12 milhões de civis), 22 milhões por parte dos aliados, sendo 7.900 portugueses, e 15 milhões das “potências centrais”). A maior carnificina da História a que se seguiria, passadas duas décadas, outra ainda maior, com 80 milhões de mortos na II Guerra Mundial, sendo 3/4, cerca de 60 milhões, de civis.

Também noutras localidades se assinalou o Armistício. Em Viseu, a autarquia, em colaboração com o Núcleo de Viseu da Liga dos Combatentes e o RI14, promoveu algumas iniciativas, como a recriação de uma trincheira e de uma tenda de enfermaria de campanha, no Mercado 2 de Maio. Um “soldado” distribuía espingardas de madeira, capacetes e mochilas a adultos e crianças (mais de uma centena de alunos das escolas do concelho passaram por esta “experiência pedagógica”, no dizer do vereador da Cultura e Património, Jorge Sobrado,) convidados a entrar por um cenário de madeira e panos simulando um vagão e uma trincheira, enquanto se ouvia o som do comboio e o das metralhadoras. Algumas fotografias da guerra penduradas na serapilheira. Dizia uma das “enfermeiras” do grupo “Passado Vivo” que “foi um marco histórico, a primeira vez que as mulheres participaram numa guerra, como voluntárias da Cruz Vermelha”. Se a guerra provocou alguma mudança histórica para as mulheres foi a sua entrada no mercado de trabalho para substituirem os homens que foram obrigados a abandonar os campos e as fábricas, sobretudo na Inglaterra e na Alemanha.

Consegui dissuadir uma amiga a submeter as suas duas criancinhas a uma experiência tão “pedagógica”. Não sei se foi “pedagógica” a experiência dos 3 mil combatentes dos dois regimentos sediados em Viseu, mobilizados para a frente (entre os quais o meu avô Raúl), ou a dos 7.500 portugueses que pereceram em La Lys e em África, ou a dos milhões de civis dos países beligerantes, como Portugal, que se viram (ainda mais) condenados à fome. A crise económica já tinha levado a conflitos sociais, greves e manifestações.

Em França o Partido Socialista elegia 103 deputados e o seu líder, Jean Jaurés, fundador do “L'Humanité”, que viria a ser o jornal do PCF, acérrimo defensor da paz, mesmo contra elementos do seu partido, seria assassinado por um jovem nacionalista defensor da guerra com a Alemanha. Também na Alemanha se sucediam as manifestações populares contra a guerra, mas os operários grevistas foram enviados para a frente, como castigo. O Partido Social-Democrata, SPD, votou a favor dos créditos de guerra, traindo a sua base operária, levando Karl Liebknecht, o único deputado a votar contra, a saír e juntar-se a Rosa Luxemburgo com quem fundaria o Partido Comunista da Alemanha. Foram os comunistas os principais defensores da paz em todos os países. Por isso, mal os trabalhadores tomaram o poder, pela primeira vez na História da Humanidade, na Revolução de Outubro de 1917 o governo soviético propôs a todos os povos em guerra e aos seus governos conversações no sentido da paz. Como a Inglaterra e a França recusaram, a alternativa foi negociar a paz com a Alemanha e a Áustria. Derrotadas estas na guerra de1914-18, os aliados invadiram a Rússia, com a Inglaterra, a França, os EUA e o Japão a liderar a agressão de 14 países, com destaque ainda para a Itália, Grécia, Sérvia, Polónia, Roménia, uma Legião Checoslovaca e os chamados “guardas brancos”, os contra-revolucionários, chefiados pelo almirante Koltchak e pelo general Denikine. Os aliados decretaram um bloqueio à Rússia que cortou comunicações com outros países. Mas o Exército Vermelho, composto por operários e camponeses, conseguiu vencer o poder bélico das principais potências capitalistas, tal como faria na II Guerra Mundial, derrotando as tropas de Hitler e obrigando, assim, à intervenção dos EUA que deu uma outra força à frente ocidental contra o nazi-fascismo.

Entre 5 e 8 de setembro de 1915, 36 delegados socialistas de 19 países reúnem-se na Suíça para organizar um movimento internacional contra a guerra. Em 1916 há deserções em massa nos exércitos de vários países. Os marinheiros franceses em Odessa (Ucrânia) revoltam-se. Em abril de 1917, metade do exército francês (68 divisões) recusa-se a regressar à frente de combate, enfrentando condenações à morte. O Socialismo surgia como a única alternativa para a barbárie.

Alfredo Barroso, num interessante artigo de opinião no Jornal I, do passado dia 12, intitulado “A Grande Guerra reaccionária de 1914-1918”, cita o chefe do estado-maior general alemão, em 1912, a dizer ao seu imperador Guilherme: “Pode Vossa Majestade estar tranquilo: porque, se a guerra eclodir, os soldados marcharão pela Pátria como um só homem, e o socialismo será esquecido”.

Macron disse, na cerimónia das comemorações do centenário do Armistício, em Paris, perante os chefes de Estado de todo o mundo, muitos deles fautores de guerras (note-se que dos cinco países do Conselho de Segurança da ONU - EUA, Reino Unido, França, Rússia e China - só a China não está envolvida em nenhuma guerra) que “o patriotismo é o contrário do nacionalismo”, porque “o nacionalismo é traição” aos valores morais, ao colocar “os nossos interesses primeiro e o dos outros não interessa”. Traição aos valores morais é a política de Macron de limitar direitos e liberdades cidadãs, reduzir salários, facilitar despedimentos e precarizar as relações laborais. Os interesses do grande capital primeiro e os dos cidadãos não interessa. O patriotismo glorificado tem sido um outro “ópio do povo”. O nazi Hermann Göring, no processo de Nuremberga, explicou: “Naturalmente que a gente comum não quer a guerra; nem na Rússia, nem em Inglaterra, nem na Alemanha. Isto é compreensível. Mas, apesar de tudo, são os governantes dos países que determinam a política, e é sempre fácil arrastar consigo o povo (…). É fácil. Tudo o que é preciso fazer é dizer-lhes que estão a ser atacados e denunciar os pacifistas de falta de patriotismo, enquanto expõe os povos ao perigo. Funciona do mesmo modo em todos os países”.

O nacionalismo pode ser mau, se usado para dominar, explorar, discriminar e humilhar outros povos (como na Hungria, Polónia, Espanha, Israel ou Marrocos); ou bom, se for para a autodeterminação dos povos colonizados e nações sem Estado (como o Sahara Ocidental, o Curdistão, a Catalunha ou o País Basco). “A Minha Pátria é a língua portuguesa” dizia Pessoa. Eu diria: “A minha pátria é a minha língua e são todas as línguas!” E se fossemos todos poliglotas, isto é, se aprendessemos a dialogar com os outros, a conhecê-los, a ser solidários com todos os povos amantes da paz? No Natal de 1914, as tropas francesas e alemãs confraternizaram nas trincheiras, violando ordens superiores. É este exército internacionalista dos povos unidos que pode preservar a paz na Europa e não o exército europeu que está a ser congeminado por Macron e Merkel.

Sobre o/a autor(a)

Ativista associativo na defesa dos Direitos Humanos. Militante do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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