A novilíngua e a emigração

porCristina Semblano

12 de February 2013 - 12:20
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Os que emigram, hoje, não são só jovens qualificados (licenciados) como gostam de repetir ad nauseum os nossos governantes em espasmos de autosatisfação.

Estamos de forma crescente no domínio da novilíngua, da língua que George Orwell assim chamou à que se fala no terrificante mundo totalitário do seu romance profético 1984, da que chama paz à guerra, liberdade à escravatura, força à ignorância. Quanto mais o espaço de liberdades se reduz, mais a novilíngua ganha em importância e peso, a ponto de subverter o nosso vocabulário e com ele as nossas referências.

Não é por isso de admirar que no actual contexto de Portugal, como segundo e nem por isso menos importante laboratório de experimentação de políticas destrutivas, a novilíngua tenha encontrado um terreno fértil de propagação. Para a História ficarão certamente frases como “O desemprego é oportunidade”, “Portugal não é a Grécia”, “A emigração não é estigma”, e os novos dicionários deverão redefinir o adjectivo “piegas” e as “zonas de conforto”.

O primeiro será o atributo de indivíduos que se não deixam despojar passivamente dos direitos mais elementares, adquiridos menos de 40 anos atrás : o direito à educação, à saúde, ao abrigo, à subsistência, à dignidade. O segundo, refere-se aos espaços ocupados por jovens, sem emprego, sem casa, sem possibilidades de formar família, sem futuro à vista. São zonas que os ocupantes são convidados a trocar pela emigração.

Daquelas definições ressalta que, se o piegas não tem forçosamente que emigrar, o que emigra não pode ser piegas. E tanto mais que, para além de se deixar despojar dos direitos fundamentais supra-referidos, o jovem-sem emprego-sem casa-sem futuro à vista-da zona de conforto, tem uma outra renúncia a fazer: a de desistir de viver no país que é o seu após ter sido chamado a votar pelos que o mandam agora ir-se embora. Assim sendo, se Portugal é país de oportunidades para uns, ele será “casa que não é tua e da qual é preciso desandares”, para outros, o que na novilíngua se declinará como procura de novas oportunidades. Uma representação gráfica da situação daria os seguintes fluxos: fluxos de entrada para um centro (Portugal) de novas oportunidades, fluxos de saída de um centro (Portugal), sem oportunidades, para um exterior onde é preciso procurá-las.

A tradução da novilíngua para a língua que a precedeu, apresenta-se da seguinte forma: – Novas oportunidades no Portugal das oportunidades: mão-de-obra-dócil, dos mais baixos salários da zona euro, taxa de tributação de novos investimentos desafiando toda a concorrência (sob reserva de aprovação da CE), privatizações low cost — ou seja, possibilidade de produzir a preços competitivos;

– Novas oportunidades no exterior para os que não têm oportunidades em Portugal: trabalhar a preços low cost, ser precário, desempregado, SDF, ocupar lugares sem relação com a qualificação, mas também ter empregos compatíveis com a formação suportada pelo país sem oportunidades – numa palavra, aumentar a competitividade dos países mais ricos.

Falámos apenas dos jovens e das suas zonas de conforto de precariedade e desemprego. Mas os que emigram, hoje, não são só jovens qualificados (licenciados) como gostam de repetir ad nauseum os nossos governantes em espasmos de autosatisfação, esquecendo-se de que somos nós (país periférico) a custear a formação de que os outros (mais ricos) beneficiam sem pagar um tostão.

Com efeito, no Portugal de há anos a esta parte, mas de forma intensíssima a partir da crise financeira, emigram homens e mulheres de todas as idades, sem qualificação, com filhos em idade escolar, a oferecerem-se contra salários de miséria na Europa. Para melhor os acompanhar, o Governo português fechou estruturas consulares, despediu professores de Português, obrigou-os a pagar propinas para os filhos e, não contente com isso, pede-lhes para… ajudar Portugal!

Artigo publicado no jornal “Público” de 10 de fevereiro de 2013

Cristina Semblano
Sobre o/a autor(a)

Cristina Semblano

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne; ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV -Sorbonne e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle
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