Estamos de forma crescente no domínio da novilíngua, da língua que George Orwell assim chamou à que se fala no terrificante mundo totalitário do seu romance profético 1984, da que chama paz à guerra, liberdade à escravatura, força à ignorância. Quanto mais o espaço de liberdades se reduz, mais a novilíngua ganha em importância e peso, a ponto de subverter o nosso vocabulário e com ele as nossas referências.
Não é por isso de admirar que no actual contexto de Portugal, como segundo e nem por isso menos importante laboratório de experimentação de políticas destrutivas, a novilíngua tenha encontrado um terreno fértil de propagação. Para a História ficarão certamente frases como “O desemprego é oportunidade”, “Portugal não é a Grécia”, “A emigração não é estigma”, e os novos dicionários deverão redefinir o adjectivo “piegas” e as “zonas de conforto”.
O primeiro será o atributo de indivíduos que se não deixam despojar passivamente dos direitos mais elementares, adquiridos menos de 40 anos atrás : o direito à educação, à saúde, ao abrigo, à subsistência, à dignidade. O segundo, refere-se aos espaços ocupados por jovens, sem emprego, sem casa, sem possibilidades de formar família, sem futuro à vista. São zonas que os ocupantes são convidados a trocar pela emigração.
Daquelas definições ressalta que, se o piegas não tem forçosamente que emigrar, o que emigra não pode ser piegas. E tanto mais que, para além de se deixar despojar dos direitos fundamentais supra-referidos, o jovem-sem emprego-sem casa-sem futuro à vista-da zona de conforto, tem uma outra renúncia a fazer: a de desistir de viver no país que é o seu após ter sido chamado a votar pelos que o mandam agora ir-se embora. Assim sendo, se Portugal é país de oportunidades para uns, ele será “casa que não é tua e da qual é preciso desandares”, para outros, o que na novilíngua se declinará como procura de novas oportunidades. Uma representação gráfica da situação daria os seguintes fluxos: fluxos de entrada para um centro (Portugal) de novas oportunidades, fluxos de saída de um centro (Portugal), sem oportunidades, para um exterior onde é preciso procurá-las.
A tradução da novilíngua para a língua que a precedeu, apresenta-se da seguinte forma: – Novas oportunidades no Portugal das oportunidades: mão-de-obra-dócil, dos mais baixos salários da zona euro, taxa de tributação de novos investimentos desafiando toda a concorrência (sob reserva de aprovação da CE), privatizações low cost — ou seja, possibilidade de produzir a preços competitivos;
– Novas oportunidades no exterior para os que não têm oportunidades em Portugal: trabalhar a preços low cost, ser precário, desempregado, SDF, ocupar lugares sem relação com a qualificação, mas também ter empregos compatíveis com a formação suportada pelo país sem oportunidades – numa palavra, aumentar a competitividade dos países mais ricos.
Falámos apenas dos jovens e das suas zonas de conforto de precariedade e desemprego. Mas os que emigram, hoje, não são só jovens qualificados (licenciados) como gostam de repetir ad nauseum os nossos governantes em espasmos de autosatisfação, esquecendo-se de que somos nós (país periférico) a custear a formação de que os outros (mais ricos) beneficiam sem pagar um tostão.
Com efeito, no Portugal de há anos a esta parte, mas de forma intensíssima a partir da crise financeira, emigram homens e mulheres de todas as idades, sem qualificação, com filhos em idade escolar, a oferecerem-se contra salários de miséria na Europa. Para melhor os acompanhar, o Governo português fechou estruturas consulares, despediu professores de Português, obrigou-os a pagar propinas para os filhos e, não contente com isso, pede-lhes para… ajudar Portugal!
Artigo publicado no jornal “Público” de 10 de fevereiro de 2013