Entrevista com um socialista egípcio

Sameh Naguib é dirigente dos Socialistas Revolucionários egípcios e teve uma conversa com Mostafa Omar, no Cairo, a propósito da dinâmica revolucionária no Egipto e do futuro político e social do país. Publicado no Socialist Worker.

13 de March 2011 - 10:00
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Os membros da organização política egípcia Socialistas Revolucionários suportaram anos de repressão policial enquanto lutavam pela democracia e pelos direitos dos trabalhadores. Foi por esta mesma razão que puderam desempenhar um papel importante nas primeiras manifestações do dia 25 de Janeiro, as quais deram um impulso à insurreição que derrubou a ditadura de Hosni Mubarak. O papel proeminente desta organização manteve-se, à medida que a contestação crescia.

Os revolucionários egípcios estão a viver um momento sem paralelo. Estava à espera dos acontecimentos que se desenrolaram a partir do dia 25 de Janeiro?

Com certeza, a partir de uma perspectiva teórica. Há já alguns anos que a situação política era volátil, tínhamos consciência da possibilidade de eclodir uma revolução. Não tínhamos porém qualquer indício de que a revolução pudesse acontecer no dia 25. Não há precedentes para o número impressionante de manifestantes que participaram nos protestos e para o grau de militância que demonstraram.

Estávamos habituados a mobilizar apenas cem ou duzentas pessoas sempre que apelávamos a jornadas de protesto; protestos que a polícia depressa dispersava. Mas no dia 25 de Janeiro o número de manifestantes não parou de crescer, no Cairo, em Alexandria, cidade após cidade.

Os manifestantes conseguiram defender-se dos ataques sucessivos por parte das forcas policiais atirando-lhes pedras. As pessoas saíam de casa e juntavam-se ao nosso protesto; as mulheres ululavam e atiravam-nos guloseimas. Rente ao fim do dia percebemos que a revolução se desencadeara.

Qual foi o papel dos Socialistas Revolucionários, e de outras forças de esquerda, na mobilização do dia 25 de Janeiro?

Tanto nós como as restantes forças de esquerda, lado a lado com o Movimento Juvenil 6 de Abril, desempenhámos um papel determinante nessa mobilização. A Irmandade Muçulmana não apoiou a jornada de protesto marcada para esse dia, isto porque, como sempre, não faz parte da sua política apoiar acções de protesto que não controlam. A esquerda desempenhou, portanto, um papel muito importante.

Nós e as outras forças de esquerda reunimo-nos e delineámos, em conjunto, uma estratégia comum para a jornada do dia 25 de Janeiro. Por exemplo, decidimos lançar o protesto em vários locais dos arredores do Cairo e fazer partir daí a marcha que seguiu em direcção à Praça Tahrir. Tomámos esta medida para impedir que as forças de segurança se concentrassem num ponto e acabassem por deter o protesto ainda antes de este começar – tal como fizeram no passado. Esta táctica revelou-se bastante proveitosa.

E depois, para ser sincero, a polícia não estava preparada para a multidão que acorreu ao protesto. Foram apanhados desprevenidos...

A imprensa ocidental, e a egípcia, continua a insistir que esta revolução foi organizada pela juventude que se mobilizou através de redes sociais como o Facebook e através de outros meios de comunicação. Será que nos pode dar uma ideia da composição social da revolução nos primeiros dias?

Muitos jovens, originários de várias classes sociais, todos com os seus agravos contra o regime; lideraram, sem dúvida, o desencadear desta revolução. Mas o papel das classes trabalhadoras foi determinante, desde o primeiro dia.

Dou-lhe um exemplo: a cidade de Suez – uma cidade de trabalhadores com um passado de lutas anti-britânicas e anti-sionistas assinalável – esteve na dianteira desta revolução. Os operários do Suez saíram em massa das fábricas e foram para as ruas da cidade: foram estes, aliás, os primeiros a sacrificarem-se, como mártires, nesta revolução. Sheikh Hafez Salama, o líder da luta anti-britânica dos anos quarenta, em Suez, e depois, também, da guerra com Israel, esteve na rua com os revolucionários. Chegou mesmo a juntar-se a nós na Praça Tahrir.

Da mesma forma que os trabalhadores do Cairo, de Alexandria, de Mansoura, foram protagonistas destes acontecimentos desde o inicio. Mas os trabalhadores, enquanto força colectiva, não puderam participar nessa altura na luta revolucionária porque os capitalistas fizeram lock out e pararam a produção. Esta situação só veio a mudar pouco antes da queda de Mubarak, a 11 de Fevereiro, e nos dias seguintes.

Estiveram três milhões de pessoas na Praça Tahrir, em Alexandria e noutros locais do Egipto, a fazer esta revolução. Como é que os Socialistas Revolucionários, reunindo um numero modesto de pessoas, se organizaram para intervir neste movimento de massas e quais foram as vossas prioridades?

Tanto socialistas como nasseristas, bem como outras pessoas de esquerda, desempenharam, desde o princípio, um papel muito importante nesta revolução. Mas à medida que o número de pessoas que se juntavam aos protestos aumentou, a revolução desabrochou e chegou a mobilizar cinco milhões de pessoas – isto se apenas contabilizarmos os que foram mobilizados em cidades como Cairo e Alexandria. Tínhamos de nos centrar em alguns aspectos e estabelecer prioridades. Escolhemos quatro ou cinco aspectos prioritários.

Defendemos a continuação da luta, a fim de derrubar o regime, e rejeitámos quaisquer apelos à negociação com Mubarak. Colocámos as reivindicações dos trabalhadores em destaque em todas as nossas publicações e colocámo-las à cabeça das nossas acções de luta. Articulámo-nos com todos os nossos contactos e aliados no movimento de trabalhadores e lutámos por jornadas de greve que fortalecesse a revolução.

Apelámos ainda ao arresto dos bens pertencentes às grandes empresas que estão ligadas ao regime de Mubarak e exigimos que esses bens sejam nacionalizados e colocados sob o controle dos trabalhadores. Lutamos para transformar esta revolução política numa revolução social; reivindicamos um salário mínimo de mil e duzentas libras (egípcias), sindicatos livres, emprego e subsídio de desemprego; isto para além de outras reivindicações dos trabalhadores.

Para além disso, emitimos seis comunicados onde articulámos a nossa análise da realidade com as nossas reivindicações; distribuímo-los aos milhares e milhares pelas ruas e praças do país – e também utilizamos a nossa página da Internet para chegar a todas as partes do Egipto.

Qual é o papel da Irmandade Muçulmana na revolução, uma vez que se trata do maior grupo de oposição do país?

Os líderes da Irmandade Muçulmana não aceitaram o apelo à mobilização que se transformou nos protestos do dia 25 de Janeiro. Esta organização não tem por política apoiar as jornadas de luta alheias e sobre as quais não tem qualquer controlo. Mas decidiram participar nos protestos assim que se aperceberam que a revolução fora desencadeada.

Os membros da Irmandade Muçulmana desempenharam um papel importante na Praça Tahrir, e noutros locais também, especialmente no dia 2 de Fevereiro, quando o governo mandou aquele bando de malfeitores atacar os manifestantes com cargas a cavalo e com cocktails Molotov.

No entanto, o que fez toda a diferença não foi necessariamente o número de apoiantes que a Irmandade Muçulmana possui – pois não tem mais do que 15 a 20% do apoio político popular, e só havia um membro da Irmandade Muçulmana entre os treze mártires desse dia [2 de Fevereiro] –, mas sim o seu grau de organização. Os membros da Irmandade Muçulmana demonstraram uma grande disciplina e com isso ajudaram a defender a Praça [Tahrir].

A Irmandade Muçulmana pretende agora constituir um partido político. Alguns dos seus membros querem que esse partido seja laico, em vez de religioso, e organizado por civis. A velha guarda conservadora, porém, essa irá opor-se a esta vontade. Isto quer dizer que iremos assistir a divisões no seio da Irmandade Muçulmana.

Já assistimos, aliás, à formação de um grupo mais liberal, a Etilaf Shabab Althawra [Coligação da Juventude Revolucionária], a qual não só fez uma série de reivindicações políticas como se reuniu com o exército na passada segunda-feira.

Esta formação política inclui alguns activistas que participaram na revolução. Mas não deixam de representar a ala liberal da classe média, a mesma que quer limitar a revolução à reivindicação política de reformas democráticas e que não questiona ou desafia sequer o sistema capitalista. Estes liberais vêem-se a si mesmos como conselheiros e estão a pressionar o exército no sentido deste substituir este ou aquele político corrupto por este ou aquele tecnocrata honesto.

Muitos destes liberais opuseram-se à realização de greves argumentando que os trabalhadores estão a ser egoístas. E alguns estão a atacar os grevistas através do Facebook. Tal como eu disse anteriormente, esta ala liberal deseja apenas reformas políticas, opõe-se à luta de classes.

É óbvio que nós também apoiamos e exigimos reformas democráticas. O que acontece é que nós lutamos por uma democracia absoluta, na qual os interesses dos trabalhadores estejam à cabeça de quaisquer outros interesses. Nós, Socialistas Revolucionários, não queremos que a revolução se detenha nas reformas políticas, é por isso que estamos a organizar uma revolução social liderada pelos trabalhadores do Egipto.

Existem no Egipto muitos outros grupos de esquerda, radicais e socialistas. Qual é o vosso relacionamento com estes grupos de esquerda? Estão a desenvolver alguma acção política?

Nós coordenamos sempre a nossa acção com todas as outras forças de esquerda. Por exemplo, fazemos parte de uma frente comum de esquerda radical: coordenamo-nos no apoio às greves, na organização de manifestações e na redacção de comunicados à imprensa. Isto é importante. Além disso, a situação que vivemos hoje não tem precedentes; a maior parte das forças de esquerda, e da direita, estão a tomar a iniciativa e a formar partidos políticos.

Nós também estamos a tomar iniciativas nesse sentido. Desde logo, temos ajudado os comités a defender a revolução junto dos estudantes e dos trabalhadores. Estamos agora a recolher um milhar de assinaturas entre os trabalhadores militantes mais destacados a fim de constituir um novo partido dos trabalhadores egípcios. Este partido, por sua vez, poderá organizar, representar e articular os interesses das classes trabalhadoras e impulsionar a revolução num sentido mais social.

A classe trabalhadora egípcia é bastante numerosa, as greves são massivas e acontecem por todo o país. Onde é que vão começar a formar esse partido político?

Sim, é verdade. Mas não vamos começar do zero. Nestes últimos anos de luta temos feito contactos e estreitado relações entre a classe trabalhadora. Por outro lado, estamos a concentrar a nossa acção em sectores chave da economia: os trabalhadores da indústria têxtil, das cimenteiras, dos correios, dos caminhos-de-ferro, dos transportes e das comunicações.

Eu penso que este novo movimento – por parte de militantes – para a organização de sindicatos livres vai ser bem sucedido. E irá substituir os sindicatos pró-governamentais e ajudar-nos no esforço de organização de um partido de trabalhadores. Vivemos dias de revolução. Vamos tomar a iniciativa e aguardar resultados.

O exército está a governar o país, emite comunicados e vai fazendo algumas concessões – tal como a dissolução do parlamento. Quais são as vossas expectativas em relação ao futuro no que diz respeito à acção do exército? Será que este vai usar a sua força contra os grevistas?

O exército integra uma parte substancial da economia egípcia, pois controla 25% da mesma, das fábricas, campos agrícolas e hotéis, ao comércio de armamento.

O exército forçou a queda de Mubarak e tomou o poder como forma de abrandar o ritmo da revolução e para salvar o regime. No entanto, a pressão revolucionária por parte dos trabalhadores já provocou divisões nas lideranças militares: tanto o ministro da defesa de Mubarak, Mohamed Tantawi, como o Vice-Presidente Omar Suleiman, pretendiam usar a força para deter a revolução. O Tenente-general Sami Hafez Anan, que é o Chefe do Estado-Maior do exército – e que, por sinal, estava em Washington no dia 25 de Janeiro – recusou-se a autorizar o uso da força. A partir de aí não havia outra alternativa senão desfazerem-se de Mubarak.

Por outro lado, o exército tem apelado ao fim das greves. Mas é tudo o que pode fazer. Neste momento não tem a possibilidade de proibir as greves e atacar os grevistas. O momento em que vivemos ainda está a favor dos trabalhadores. O exército necessitaria de tempo para mobilizar a maioria da opinião pública – e não apenas as classes médias liberais – contra o movimento grevista, isto antes de o poder atacar.

Por fim, o exército está numa posição delicada, pois a revolução egípcia está a ter um impacto regional e internacional muito grande. O mundo inteiro está de olhos postos em nós. Além disso, a revolução tem raízes muito profundas, um fôlego gigantesco e um enorme potencial para se tornar numa revolução social. O que está a acontecer no Egipto é diferente da revolução que ocorreu nas Filipinas nos anos oitenta – contra Ferdinand Marcos – e na Indonésia nos anos noventa – contra Suharto. O papel das classes trabalhadoras na revolução egípcia é muito mais importante do que o papel que desempenhou nessas duas revoluções.

As classes trabalhadoras egípcias criaram as condições para o que sucedeu no dia 25 de Janeiro, nomeadamente através de uma luta de classes intensa iniciada em 2004 e que agora está em movimento. Portanto, isso quer dizer que é muito mais difícil para as classes dirigentes limitarem a revolução egípcia à sua dimensão meramente reformista.

23 de Fevereiro de 2011

Publicado no Socialist Worker

Tradução de Pedro Sena para o Esquerda.net

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