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Que escritoras portuguesas censurou o Estado Novo?

Os números parecerão surpreendentes. É que foram muitas as obras que a PIDE tentou apagar da vida pública. Centenas? Milhares. E de escritoras portuguesas? Vinte e uma. Vamos descobrir quais. Por Ana Bárbara Pedrosa.
Arquivo da PIDE na Torre do Tombo. Fotografia de Ana Bárbara Pedrosa.

Ao longo de vinte semanas, o Esquerda.net publicará análises das censuras feitas às obras das autoras portuguesas no decorrer do Estado Novo. Aqui, pesarão os motivos que levaram à proibição da circulação das obras e ainda a recepção, ou falta dela, que tiveram. Num caso, a proibição por parte da PIDE motivou um protesto internacional. Houve editoras fechadas, penas, ameaças. Houve obras que ficaram perdidas para sempre, outras que voltaram a ver as prateleiras depois do término da ditadura, outras que se canonizaram.

Tentaremos aqui entender se a censura foi determinante no apagamento de obras literárias, se a única recepção que as obras tiveram foi a leitura da PIDE ou se, pelo contrário, estas conseguiram sobreviver para além das proibições, ultrapassar os mecanismos repressivos, ter público (durante ou após a ditadura), influir na sociedade portuguesa e/ou na estética literária. Ao mesmo tempo, pretende-se reinscrever estas obras, que passaram por uma tentativa de ocultação/apagamento por parte do regime, na história, recuperando as suas autoras enquanto sujeitos históricos.

O objectivo deste trabalho é, assim, trazer à luz o que o Estado Novo tentou apagar. Através dos serviços censórios, o regime tentava limitar, anular a recepção das obras: censurando-as, vedava-as, apagava-as da vida pública.

Neste sentido, proceder-se-á aqui ao resgate da memória de obras literárias, quase todas elas caídas no esquecimento, resgatando ainda autoras que, mais do que da história da literatura, fazem parte da história de Portugal. Assim, poder-se-á saber quais das obras se edificaram no património literário português, e porquê, e, ao mesmo tempo, por que razão caíram algumas no esquecimento. Para isso, será analisado o papel que a ditadura desempenhou no silenciamento de artistas/activistas e na canonização literária.

Para se chegar ao total de obras – 21, escritas por 9 autoras –, foram usados os serviços de arquivo da Torre do Tombo, localizada em Lisboa, onde se encontra o arquivo da PIDE/DGS. Através deste, pode aceder-se não apenas à lista das obras censuradas, mas também aos relatórios escritos pelos censores literários e às fichas que as autoras tinham na polícia política. O próprio arquivo desmascara o que havia para desmascarar. Os censores não tinham qualquer pudor nos seus intentos, cortavam as ervas daninhas, e por vezes não entendiam sequer o texto. Não eram literatos, não eram leitores, apenas testas de ferro de um regime.

Mas mulheres escritoras porquê?

O interesse desta lista reside na condição de partida transversal no decorrer do Estado Novo. Confinadas ao espaço doméstico pelo regime, as mulheres não eram vistas como agentes históricos ou sociais, estando dificultado o acesso que teriam à produção simbólica. Recuperar para o presente obras literárias que o Estado Novo tentou apagar da memória colectiva, proibindo-as e não raras vezes perseguindo as suas autoras, partindo da ideia de que o acto de escrita era já um acto performativo de desconstrução de uma ordem social politicamente imposta, passa por trocar as voltas a quem quis instrumentalizar a literatura.

As escritoras que aqui serão tratadas não são um grupo homogéneo ou estático. Nas próximas semanas, escreveremos sobre: A Campanha (Fiama H. P. Brandão), Casa Sem Pão, Ida e volta duma caixa de cigarros (Maria Archer), Antologia de Poesia Portuguesa Erótica, Comunicação, O Encoberto, O Vinho e a Lira, O Homúnculo, A Pécora (Natália Correia), O Testamento, O Museu, A Campanha, O Golpe de Estado, Diálogos dos Pastores e Auto da Família e Quem move as árvores (Fiama H. P. Brandão), Falsos Preconceitos, Pigalle, O adolescente (Nita Clímaco), Famintos, Vinte Anos de Manicómio! (Carmen Figueiredo), A Magrizela (Maria da Glória), Minha Senhora de Mim (Maria Teresa Horta), Novas Cartas Portuguesas (Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa).

A escrita literária por parte das mulheres, num contexto político de menorização política e social das mesmas, significava a reivindicação do acesso à produção simbólica e a um aparelho conceptual criado por homens. Ao mesmo tempo, significava a ressignificação de si mesmas enquanto sujeitos históricos ou mesmo literários: ao invés de serem apenas objectos literários, passavam a ser agentes literárias, conquistando a palavra e libertando-se do espaço doméstico e das imposições do Estado Novo. Ao dar-se voz à experiência das mulheres, deixada em branco pela cultura dominante, permitia-se ainda um maior alcance à criação literária.

A História não é um registo neutro do passado. Cabe-nos, por isso, trazer para a discussão e para a crítica literária aquilo que dela se quis apagar: as mulheres enquanto agentes sociais com acesso à produção simbólica e as próprias obras que o regime considerou atentatórias do seu desejo de perpetuar-se.

Será difícil destrinçar exactamente qual era o papel que a censura literária desempenhava na canonização literária. O seu objectivo era calar a diversidade e havia circulação livre de literatura que não fosse julgada pelos censores literários como atentória do regime, ou da sua moral. Veremos que a PIDE censurou obras muito diversas, cujas autoras tiveram percursos e intenções muito diferentes, assim como valores literários. A selecção deste corpus permite não olhar a hierarquias ou ao cânone e dar a todas as autoras, caídas no esquecimento ou não, estudadas ou não, um tratamento por igual.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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Neste dossier:

Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

No decorrer do Estado Novo, foram censuradas 21 obras de 9 autoras portuguesas. Salta à vista o número reduzido e a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

"Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (...) Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “Minha Senhora de Mim” (1971)

"Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “O delator”

"É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.", pode ler-se num parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de "Quem move as árvores" (1970)

"As relações dialógicas são constantes na obra de Fiama: se em O Testamento vimos que vida e peça se confundem, dialogando, em Quem move as árvores há um paralelismo temporal com alcance no passado, entre a época da monarquia e o Estado Novo. Em nenhum dos casos o povo escolhe, o poder é imposto." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de três peças num volume

"Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Museu”

O tom absurdista da peça dificulta a sua análise, na medida em que, para além de não haver grandes relações dialógicas até nos próprios diálogos, se torna difícil descortinar as intenções da autora. No entanto, são mostrados dois grupos numa relação conflitual, em que um está submisso ao outro, recebendo acriticamente as suas instruções, viabilizando acontecimentos que servem os interesses do segundo. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Testamento”

"A peça de Pais Brandão sugere que não pode haver espectadores na vida, que toda a gente tem de intervir em tudo o que à vida pública diz respeito, e é por isso que peça e vida se confundem, mostrando a autora que em tudo há relações dialógicas". Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O Encoberto”

"Trata-se do desenvolvimento em estilo de 'paródia' de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas, à maneira de 'Natália Correia', com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar", pode ler-se no relatório da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A Pécora”

Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O vinho e a lira”

"Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más.", pode ler-se no parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “O adolescente”

As orelhas da capa do livro faziam propaganda a dois livros proibidos. Assim, a PIDE proibiu também a circulação deste romance. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A comunicação”

Este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. A PIDE considerou que “o estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras” obrigava à “reprovação da peça”, já que a sua “Indispensável sequência” impossibilitava “quaisquer cortes de saneamento”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Falsos preconceitos”

A PIDE considerou que “dada a imoralidade que o livro revela”, “não é de molde a ser autorizada a sua circulação no País”, e isto apesar de a obra ser de tal forma reaccionária que, afinal, se colocaria ao serviço do que o regime apregoava. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria da Glória: a proibição de “A Magrizela”

Nesta obra, não apenas há muitas situações sexuais como há muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Vinte anos de manicómio!”

O romance não foi censurado assim que foi publicado. É que, "como era feito por uma escritora”, os censores da PIDE nunca supuseram “que esta tivesse escrito com tanta realidade”.  O livro tem “um realismo tão cru e descrições de tal basévia e lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Famintos”

A PIDE censurou a obra “Famintos”, de Carmen de Figueiredo, considerando que esta se “refere a uma vida familiar romanceada, com descrição de acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: ephemerajpp.com

Maria Archer: a proibição de "Casa sem pão"

"Casa sem pão" (1957) foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE e deu azo não apenas ao processo mais longo sobre qualquer uma das suas obras, mas também ao processo mais longo que tratamos neste dossier. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: cvc.instituto-camoes.pt

Maria Archer: a proibição de "Ida e volta duma caixa de cigarros"

A PIDE censurou a obra "Ida e volta duma caixa de cigarros", de Maria Archer, considerando que este “não atingiu o alcance moral” e que a autora “compraz-se na volúpia do pormenor sensual”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Arquivo da PIDE na Torre do Tombo. Fotografia de Ana Bárbara Pedrosa.

Que escritoras portuguesas censurou o Estado Novo?

Os números parecerão surpreendentes. É que foram muitas as obras que a PIDE tentou apagar da vida pública. Centenas? Milhares. E de escritoras portuguesas? Vinte e uma. Vamos descobrir quais. Por Ana Bárbara Pedrosa.