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O dilema da ocupação
RETIRADA OU EXPULSÃO
O que leva muitos políticos e especialistas americanos a manter o apoio à ocupação do Iraque é considerarem que a retirada feita demasiado cedo levaria a um agravamento drástico da violência sectária. Este argumento a favor da continuidade da ocupação não se baseia na situação político-militar real do Iraque, e é importante compreender porquê.
Artigo de Gareth Porter, da TomPaine.
Retirada ou expulsão
Por Gareth Porter
TomPaine
17/10/2006
Ao mesmo tempo que continua a ligar a ocupação do Iraque à guerra contra o terrorismo, George W. Bush advertiu na sua última conferência de imprensa que "os terroristas assumiriam o controle do Iraque" se os EUA retirassem as suas tropas. Mas o argumento que leva muitos políticos e especialistas a manter o apoio à ocupação é o que considera que a retirada feita demasiado cedo levaria a um agravamento drástico da violência sectária. Este argumento a favor da continuidade da ocupação não se baseia na situação político-militar do Iraque, e é importante compreender porquê.
Ao discursar em Washington, o principal argumento do embaixador americano no Iraque, Zalmay Khalilzad, contra uma retirada "precipitada" foi que esta "poderia desencadear uma guerra civil sectária, que arrastaria inevitavelmente Estados vizinhos para uma conflagração regional..." Foi este também o argumento principal do senador Joe Liberman quando em Junho falou contra as emendas democratas que pediam um calendário de retirada.
Não que a guerra civil não fosse piorar no Iraque; hoje parece bastante provável que sim. Mas os Estados Unidos não são militarmente capazes de evitar a pior guerra que ainda está para vir, e tentar fazê-lo apenas iria abrir uma nova guerra entre os Estados Unidos e os xiitas que querem a retirada dos EUA. Como não podemos evitar a violência sectária, a única questão é saber se saímos antes do inevitável confronto com os xiitas - uma batalha que as tropas dos EUA certamente perderiam.
Vejamos, em primeiro lugar, a realidade militar. Com a criação das milícias xiitas - e particularmente o Exército Mahdi de Moqtada al-Sadr - a ocupação americana já não representa o poder militar predominante no Iraque. Um estudo publicado em Agosto pelo Chatham House, um influente think tank estratégico britânico, afirma que o exército Mahdi, que teria menos de 10 mil homens armados quando os EUA tentaram destruí-lo em Agosto de 2004, pode hoje ter "várias centenas de milhares". Acrescente-se a Organização Badr, afiliada ao Supremo Conselho da Revolução Islâmica do Iraque, que tem dezenas de milhares de milicianos xiitas.
Sadr confia que a partir do momento em que o governo xiita obtiver tudo o que puder dos Estados Unidos para fortalecer as forças xiitas, pode derrotar os sunitas através da força militar. Como disse o porta-voz de Moqtada al-Sadr, Mustafa Yaqoubi, ao Washington Post no mês passado, as "outras forças" não teriam "a capacidade de enfrentar-nos". Yaqoubi também deixou claro que o exército Mahdi tenciona expulsar os Estados Unidos do Iraque. "Se deixarmos a decisão [aos americanos], eles não se irão embora", disse. "Para que os ocupantes se vão embora, [os americanos] precisam de algum sacrifício."
O poder dominante das milícias xiitas significa que é impossível que os Estados Unidos permaneçam no Iraque mais tempo além do que os xiitas considerarem útil. Como observou o ex-analista da Agência de Informações da Defesa Pat Lang, as tropas dos EUA dependem das linhas de abastecimento que atravessam centenas de quilómetros de território controlado pelo exército Mahdi. Quando Sadr der a ordem, os abastecimentos podem ser suficientemente reduzidos para tornar muito difíceis as operações militares.
Em Dezembro último, o coronel Joseph DiSalvo, comandante de uma brigada da 3ª Divisão de Infantaria do exército americano, disse a Tom Lasseter da [empresa de média] Knight Ridder que seria impossível que as forças da coligação derrotassem as milícias xiitas. "Não podemos negar as milícias", disse. "Seria necessário ter mais tropas do que é possível".
As forças dos EUA foram incapazes de estancar a violência que cresceu este Verão. Em Junho, a administração Bush fez muito estrondo em torno da Operação Avante - a sua decisão de trazer mais tropas para Bagdad para dar segurança à cidade contra a violência sectária. Mas durante os primeiros três meses desta nova estratégia, de Junho a Agosto, o número de civis mortos por mês por esquadrões da morte sectários cresceu para 3.249 - um terço mais do que nos meses anteriores.
Além disso, as forças dos EUA não quiseram confrontar os mais letais elementos de violência em Bagdad, mostrando assim a sua incapacidade de oferecer aos civis qualquer segurança significativa. A Operação Avante Juntos, na verdade, deixou de fora o exército Mahdi e a Organização Badr. Fontes dos EUA disseram a Peter Beaumont, do Guardian, que os Estados Unidos tinham apoiado a decisão do governo do primeiro-ministro Nouri al-Maliki de não confrontar as milícias, "devido ao medo de uma batalha de larga escala com as milícias em Sadr City". É importante notar que os votos do bloco político de al-Sadr no Parlamento iraquiano foram fundamentais para levar al-Maliki ao poder.
Apesar da retórica em contrário, a prevenção da violência sectária nunca foi uma prioridade da administração Bush no Iraque. No próprio momento em que as milícias xiitas estavam a reforçar o seu poder em 2004 e 2005, o ministro do Interior interino Falah al-Naquib avisou o secretário Donald Rumsfeld e outros membros do governo americano sobre a ameaça que elas significariam, mas "não nos levaram a sério."
O motivo para a desatenção da administração Bush à violência sectária é simples: concentrar-se nessa questão iria criar um conflito com o interesse principal do Pentágono, que é criar uma força de segurança xiita esmagadora para combater a insurreição sunita. Em 2005 e até em 2006, o comando dos EUA usou algumas das mais importantes forças paramilitares xiitas, conhecidas por serem responsáveis pelo crescimento da prática de tortura aos sunitas, como a Brigada Wolf, para manter o controle de cidades sunitas como Ramadi.
A administração Bush não tem estratégia para o Iraque excepto continuar a reforçar as forças paramilitares controladas pelos xiitas do governo iraquiano. Pressupõe-se que as forças de segurança xiitas vão conter os elementos rebeldes e as milícias xiitas. O que aconteceu foi que desde Fevereiro a Julho deste ano, no período crucial de transição para uma muito maior guerra civil, as forças de segurança iraquianas ficaram de lado enquanto xiitas e sunitas se massacravam uns aos outros.
Algumas das forças xiitas que levaram a cabo massacres de sunitas como vingança estão aquartelados no próprio Ministério do Interior iraquiano - o mesmo ministro com quem a administração Bush continua a colaborar intimamente contra a insurreição sunita e os terroristas estrangeiros. Um importante conselheiro dos EUA para a polícia nacional admitiu no mês passado que ainda existem "algumas milícias a operar dentro da polícia nacional". E um comandante militar americano disse que acredita-se que pelo menos cinco dos seis batalhões de polícia paramilitar têm comandantes que se demonstraram "criminosos, ou sectários, ou as duas coisas".
O responsável do ministério pelo centro de tortura de Bagdad, que foi reconhecido pelos EUA em Novembro, é Mahmoud Waeli, conhecido por ser o principal oficial de informações do Corpo Badr. Apesar disso, Waeli continua a operar fora das instalações do ministério, de acordo com uma fonte militar dos EUA que falou em off ao Los Angeles Times no Verão passado. A mesma fonte disse que o Pentágono e o Departamento de Estado se "desligaram" da questão da ligação das milícias com o ministério.
Não, a retirada das tropas dos EUA não vai provocar uma explosão de violência sectária que leve à guerra civil. Isso já está a acontecer. Actualmente, o único recurso dos Estados Unidos é seguir o curso a que a administração Bush resistiu até agora: abandonar a sua postura ameaçadora em relação ao Irão e trabalhar com os vizinhos árabes do Iraque para conter as milícias xiitas e preparar concessões políticas e económicas à minoria sunita que possam conduzir a uma paz ao estilo do Líbano entre as duas comunidades. Mas, para engajar os sunitas, esta operação política exigiria que Bush concordasse com um calendário de retirada.
O argumento que a ocupação americana é a única coisa que impede a guerra civil total e o caos no Iraque é sintomático de uma recusa de encarar realidades desagradáveis que distorceu o discurso nacional sobre o Iraque. Para tomar a decisão de pôr um fim à ocupação, especialistas e políticos terão de encarar de frente estas realidades e começar a torná-las parte desse discurso. Entretanto, as nossas tropas não estão a fazer bem a ninguém, enquanto servem de alvo para os dois lados.
Gareth Porter é historiador e analista de política de segurança nacional. O seu último livro, Perils of Dominance: Imbalance of Power and the Road to War in Vietnam foi publicado em Junho de 2005.
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