Há musicalidade até no silêncio

28 de setembro 2007 - 0:00
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Nesta entrevista ao diário espanhol El Mundo, concedida em 1997, quando Marcel Marceau completava 50 anos de carreira, o genial mímico relata a única vez que encontrou Charlie Chaplin e afirma que a única coisa que não se pode exprimir sem palavras é a mentira: "O mímico tem de ser claro e legível. Não pode fazer armadilhas. Com as palavras pode-se esconder tudo. Pode-se fazer promessas que não vão ser cumpridas. A arte do mímico é o grito desgarrado da alma entre o bem e o mal, com a esperança de que o bem seja maioritário."



Há musicalidade até no silêncio



Os outros actores fazem ioga no palco antes do espectáculo. Ele não precisa. Recebe o El Mundo na última fila do teatro. Cabelo branco e frisado. Pestanas enormes que não podem esconder a intensidade do seu olhar. Manchas na pele das suas mãos elásticas. Marcel Marceau (74 anos) celebra os seus 50 anos de profissão repondo um espectáculo solitário (Bip) que alterna com a sua nova criação (Chapeau Melon, Chapéu de Coco), uma homenagem a Charlot em que é acompanhado por 12 actores formados na sua escola.



Por Iñaki Gil, publicado originalmente no El Mundo em 30/11/1997



O senhor só viu Charlie Chaplin uma vez. Como foi?



Foi em 1967. Roger Vadim estava a filmar Barbarella e pediu-se para fazer um papel. Fui ao aeroporto de Orly com dois jornalistas a caminho das filmagens. Vi Charlot com cinco dos seus netos. Para mim, era um deus. Não sabia se ele me conhecia. Falámos um bom bocado e os dois imitámos Charlot. Foi formidável. Como lamento ter dito aos fotógrafos que não me acompanhassem. Mas não queria que Chaplin pensasse que queria ganhar promoção à sua custa. No final, disse que não podia expressar com palavras o que sentia por ele porque eu expressava tudo sem palavras. Assim, peguei na mão dele e beijei-a. E ele ficou com os olhos cheios de lágrimas. Charlot estava quase esquecido em 1967. As crianças não lhe pediam autógrafos. Já há anos que não fazia filmes. Eu representei todos os cómicos que lhe prestavam homenagem. Para mim, é uma recordação inolvidável.



Charlot é a sua infância?



Tinha cinco anos quando ia ver os filmes de Charlot. Imitava-o na rua e numa colónia de férias que a minha tia tinha. Foi a minha primeira trupe.



Que outros personagens admira?



Picasso, Goya. Pelos grandes mestres da dança espanhola, Escudero, Antonio, Carmen Amaya. A dança espanhola tem uma grande qualidade e está próxima da mímica. Tem uma grande força dramática. O bailarino sapateia e mima arabescos com as mãos. É uma síntese extraordinária do Oriente e do Ocidente. Sou um apaixonadoo da Espanha. Tinha 13 anos quando explodiu a Guerra Civil espanhola. Escrevi 250 páginas no caderno escolar,, com desenhos. É a história de dois amigos, um combate com os republicanos e outro com Franco. Um mata o outro sem querer durante a guerra. Contei-o seguindo todas as batalhas. Guardo o livro como uma relíquia. Algum dia será publicado.



O chapéu de coco é a sua homenagem a Charlot?



Sim, mas não só isso. É uma história surrealista de um homem que quer tirar esse chapéu conformista da Inglaterra vitoriana. A época em que se entrava num restaurante sem gravata. A época em que Chaplin fez Luzes da Cidade, a época das diferenças de classe. O homem (um funcionário humilde) quer desembarçar-se do chapéu para ganhar um estilo Rodolfo valentino porque quer seduzir a caixa de um pub. Mas o chapéu está apaixonado por ele e não quer sair da cabeça. Na história, presto homenagem a Chaplin porque Charlot era um vagabundo que queria conservar a sua dignidade e vestir uma gravata como um modesto funcionário.



O seu personagem Bip tem 50 anos. Defina-o.



É um Dom Quixote que se bate com os moinhos da vida actual. Depois da Guerra caçava mariposas, os sonhos da infância. O público era sensível à morte da mariposa na sua mão, porque os seus espasmos imitavam o coração do homem. Fiz simbolismo sem o saber. O personagem cria com a emoção essa arte que são os gritos do silêncio. O nome, tomei-o do personagem Pip, herói de As Grandes Esperanças, de Charles Dickens.



Estamos imersos numa geração de ruído. Os seus silêncios são ouvidos?



As pessoas dizem-me que o meu silêncio faz bem. Quando comecei, há 50 anos, as pessoas diziam-me como se ia escutar o silêncio no meio dos ruídos do mundo. Eu respondia: não é um silêncio, são os gritos do silêncio. Há uma musicalidade inclusive no silêncio. A poesia do gesto cria uma musicalidade na alma do público.



Ser mímico é brincar a fazer-se de mudo?



Acho que as pessoas não se dão conta de que sou silencioso. Se me pusesse a falar destruiria o mistério do silêncio. A arte do mímico está unida ao silêncio como a música à sua tonalidade própria.



Durante todos estes anos, nunca teve vontade de dizer uma palavra no palco?



Não. Só falo na televisão ou na escola onde ensino. É preciso ensinar aos alunos porque se faz tal gesto. Sou obrigado a falar. Digo, por exemplo, que o matador é um mímico porque colhe o peso do touro sobre ele. E quando se aproxima dele com valor, não pode ser ridículo na sua forma de andar.



Existe alguma coisa que não se possa exprimir sem palavras?



A mentira. O mímico tem de ser claro e legível. Não pode fazer armadilhas. Com as palavras pode-se esconder tudo. Pode-se fazer promessas que não vão ser cumpridas. A arte do mímico é o grito desgarrado da alma entre o bem e o mal, com a esperança de que o bem seja maioritário.



Essa é a sua mensagem?



Sim. Espero que as jovens gerações aprendam a fraternidade e que não haja nacionalismos como antes.



Quais são os seus grandes inimigos?



O integrismo e o fanatismo. É uma forma de fascismo mental. Houve uma época de ouro, quando as três religiões eram toleradas na Espanha. Porque é que esse momento não pode voltar? A modernização levou a uma competitividade onde só conta o dinheiro.

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