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Voluntariado estudantil na resposta às cheias de 1967

Foi a maior catástrofe de origem climatérica do século XX em Portugal. O socorro aos sobreviventes mobilizou a solidariedade estudantil e deixou marcas em todos os que a praticaram.

Face à pandemia Covid-19, multiplicam-se iniciativas de apoio mútuo, mobilizando o voluntariado de milhares de pessoas - por vezes complementando a resposta pública sob pressão - na assistência a membros de grupos de risco, idosos isolados ou famílias em carência económica. Este é portanto o momento para evocar uma das mais intensas mobilizações de solidariedade da nossa história contemporânea. No final de novembro de 1967, cerca de seis mil estudantes acudiram às populações mais pobres da região de Lisboa, atingidas pelas cheias repentinas em que morreram mais de 500 pessoas. Os efeitos da catástrofe evidenciaram o peso das desigualdades e a vulnerabilidade do povo pobre, abandonado pela ditadura. Nessa experiência, emergiu toda uma geração de militantes políticos empenhados em derrubar o fascismo.

 

O trecho que se segue é do artigo “As inundações de 1967 na região de Lisboa - Uma catástrofe com diferentes leituras”, publicado em 2016 por Francisco da Silva Costa e António Avelino Batista Vieira (Departamento de Geografia e CEGOT, Universidade do Minho) e Miguel Cardina (Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra) na revista “Investigaciones Geográficas”, da Universidade do Chile. 

No final deste texto, reproduzimos depoimentos publicados em 2017 pela Rádio Renascença e pelo Expresso, entre eles o do falecido coordenador do Bloco de Esquerda, João Semedo.

Uma catástrofe com diferentes leituras

As inundações na região de Lisboa produziram avultados danos materiais e produziram uma imediata necessidade de mantimentos e remédios, de água e comunicações. Os seus efeitos foram atenuados pela ação organizada de setores da população, pelos soldados, cantoneiros e trabalhadores voltados à ingente e pesada tarefa de recuperar casas e limpar ruas da lama invasora (Costa et al. 2014). Enquanto isso, chegavam medicamentos, agasalhos, alimentos e assistência sanitária, numa cena que se repetia por toda a área atingida (Paviani 1968). 

Num ambiente de comoção geral, promovem-se em diferentes localidades peditórios, espetáculos e subscrições, visando recolher fundos para apoio aos sinistrados. Os estudantes, por exemplo, participam nas ações de auxílio que se efetuam no terreno, desdobrando-se em tarefas como a vacinação em massa contra a febre tifóide, a desobstrução de casas e ruas e a instrução sanitária das populações. A dimensão real do desastre e das condições de vida de uma vasta camada da sociedade portuguesa não ultrapassou a espessa cortina da censura, mas muitos estudantes universitários, que agiram de forma imediata para prestar ajuda, tiveram a possibilidade de entrar em contacto com a situação verdadeira. 

A participação de quase seis mil estudantes nas atividades de socorro não agradou às autoridades, que intervieram procurando dificultar e desacreditar este trabalho, também através da intervenção da Polícia de Segurança Pública. A participação de estudantes, apesar do sentimento de impotência face à dimensão da tragédia para a qual não estavam preparados, permitiu criticar as deficiências dos serviços sanitários e sociais do Governo, revelar a eficácia de organismos democraticamente organizados (como a rede de apoio estudantil) e denunciar as miseráveis condições de vida em várias zonas do país (Duarte 1997; Cardina 2008; Accornero 2009). 

Em Lisboa, a planificação das ações de socorro encontrou-se a cargo de uma Comissão Coordenadora Central, instalada na associação de estudantes do Instituto Superior Técnico, da qual fazem parte a Juventude Universitária Católica e várias associações de estudantes. Tendo durado cerca de duas semanas, abrangeram centenas de estudantes. Em cada jornada, divulgavam o sucedido à população que pouco sabia da dimensão da catástrofe, dada a ação da censura. Merece especial realce nesta divulgação o periódico Solidariedade Estudantil, que chegou a ter uma tiragem de 10 mil exemplares e se esgotou numa manhã (Oliveira 2013). Este Boletim foi distribuído pelo «Secretariado Coordenador da Informação e Propaganda» das Associações de Estudantes de Lisboa e publicado a propósito da ação, procurando relatar o trabalho efetuado pelos estudantes e apresentar um conjunto de comentários críticos ao acontecido, equacionando-o em termos de uma análise das causas (e das consequências) sociais da tragédia (Ferreira 1969). 

No Porto, grupos estudantis organizam uma recolha de donativos a favor dos atingidos. De Coimbra partem alguns estudantes, sobretudo de Medicina, que integram brigadas de auxílio aos sinistrados. Chegados ao local, o voluntarismo terá sido matizado por certa impotência em fazer face à dimensão da tragédia, para a qual não estavam preparados a nível técnico. O jornal Comércio do Funchal elenca as tarefas desenvolvidas por estes estudantes no dia 17 de Dezembro de 1967: “...vacinação em massa contra a febre tifóide; instalação de postos clínicos; informações sanitárias à população, separação das populações em maior risco de contraírem febre tifóide; inquérito profilático às populações, ideia que também teve a aprovação da DGS; velas noturnas para casos urgentes; organização de creches com os devidos cuidados médicos e de puericultura… Apesar disso, a participação dos estudantes nestas ações possibilitou, num mesmo lance, criticar a impreparação e desorganização dos organismos sociais e sanitários do Governo, enaltecer a capacidade realizadora de Organizações Democráticas e Livres e, ainda, denunciar a existência de condições de vida miseráveis em várias localidades do país (Comércio do Funchal, 17/12/1967, nº 1964). 

Os testemunhos dos estudantes relatados pelo Comércio do Funchal revelam esta mesma denúncia: “A nossa participação carateriza-se, ao contrário da oferecida por outras entidades, pelo conhecimento exato e desmistificado da extensão do desastre, que não atribuímos à imprevisibilidade das chuvas, à conformação do terreno ou quaisquer condições naturais inimputáveis e de acaso, mas sim a condições sociais, económicas e administrativas bem concretas. Como pode isso acontecer, sem sequer se tenha verificado o rebentamento de diques ou barragens, ventos ciclónicos, desmoronamentos em série…? A resposta apresenta-nos agora, na sua realidade indesmentível: acentuadas condições de desenvolvimento em que viviam as populações atingidas sem os mais elementares requisitos de sanidade e segurança; ausência quase total de sistemas de segurança e socorro, prevenção de epidemias, redes de escoamento de águas, condições de estabilidade de terrenos, defesa contra aluimentos de terrenos, inundações; previdência social precariamente montada, quase inexistente, de tal forma que não foi possível organizar desde a primeira hora o serviço complexo do auxílio às vítimas, deixando ao sabor da iniciativa individual ou de organizações, mais ou menos oficiais…” (Ibidem). (...) 

Esta campanha marcou, para muitos estudantes, a rutura definitiva com o Estado Novo. Rita Veiga, evocando em 1997 a sua participação nesta jornada, fala da lama como uma força maligna que deixava atrás de si um cheiro ácido a humores orgânicos como se tivesse conservado em si a miséria das barracas que destruíra. A lógica corporativa do regime não podia tolerar que organizações não enquadradas oficialmente e com laivos de hostilidade relativamente ao regime, aparecessem como mais empenhadas do que o governo na assistência ao desastre. Ao mesmo tempo, a intervenção estudantil no auxílio à catástrofe serviu, assim, como um importante motor de politização das jovens gerações que, a partir das universidades, vinham ensaiando modos de contestação menos elitistas e mais aguerridos. Longe das preocupações elitistas de outrora, os estudantes ensaiavam já uma efetiva abertura à sociedade, efetuada num liame de contornos marxizantes, através do encontro com as faixas mais pauperizadas da população. De qualquer forma, o aspecto mais importante com respeito a estes episódios, foi a difusão e extensão da iniciativa e do estímulo à participação (Cardina 2008b: 65-66). 

A ação da censura 

Apesar de num primeiro momento se permitirem notícias sobre o assunto, a ação censória agiu para evitar leituras políticas da catástrofe e evitar que a comoção geral instalada adquirisse laivos críticos, como é possível perceber em alguns exemplos referidos por César Príncipe. No dia 27 de Novembro, um telegrama da Direcção da Censura enviou a seguinte informação às delegações locais: “Gravuras da tragédia: é conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos”. Dois dias depois, a 29 de Novembro, determinava-se: “Inundações: os títulos não podem exceder a largura de 1/2 página e vão à censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres. Atividades beneméritas de estudantes – Cortar”. Dias mais tarde eram emitidas novas orientações pelo mesmo órgão como mostram os seguintes exemplos: “Deliberação do Senado universitário de Coimbra acerca do auxílio a prestar às vítimas das enxurradas. Cortar. A notícia só pode sair nos Jornais de Coimbra” (Príncipe 1979). 

Bibliografia

ACCORNERO, GUYA, 2009. Efervescência Estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo político no final do Estado Novo (1956-1974). Dissertação de Doutoramento em Ciências Sociais, Especialidade de Sociologia Histórica, Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 350 p.
CARDINA, MIGUEL, 2008b. A Tradição da Contestação. Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo. Coimbra: Angelus Novus.
COSTA, F. S., M. CARDINA & A. A. B. VIEIRA, 2014. Inundações na região de Lisboa (1967). Um olhar sobre o impacto político e social. Actas do VIII SLAGF Simposio Latinoamericano de Geografia Física, IV SIAGF Simposio Iberoamericano de Geografía Física, Facultad de Arquitectura y Urbanismo, Universidad de Chile, Santiago, Chile: 1263-1271.
DUARTE, M. B., 1997. Foi apenas um começo. A crise académica de 1969 na história do movimento estudantil dos anos Sessenta e da luta contra o Estado Novo. Tese de mestrado, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
FERREIRA, V., 1969. Inventário analítico da imprensa estudantil portuguesa em 1945- 1967. Análise Social, 7 (25-26): 223-281. 
OLIVEIRA, L. T., 2013. O ativismo estudantil no IST (1945-80). In Branco, Jorge Freitas, ed. - Visões do Técnico, no Centenário 1911-2011, Lisboa, ISCTE-IUL: 307-370.
PAVIANI, A., 1968. Alenquer, Aspectos Geográficos de uma Vila Portuguesa. Finisterra, 5: 32-78.
PRÍNCIPE, CÉSAR, 1979. Os Segredos da Censura. Lisboa Caminho (Ed).


Os depoimentos que se seguem foram recolhidos pela jornalista Joana Pereira Bastos e publicados pelo Expresso em 2017:

Depoimento de João Semedo, estudante de Medicina em 1967

Passaram cinquenta anos sobre a tragédia. Sabemos como o tempo embacia as nossas memórias e rouba nitidez aos factos que vivemos. Contudo, por mais anos que passem sobre as cheias de 1967, julgo que nunca se apagará em mim o choque brutal que senti ao mergulhar naquele cenário de morte, destruição e pobreza extrema, que atingia milhares de pessoas a viverem em condições absolutamente degradantes e desumanas.

Aos dezasseis anos, para um estudante do Liceu Camões, miséria e desigualdades existiam sem as vermos, como dois mundos separados. Esse submundo, escondido e ignorado, fazia parte das conversas que escutava lá em casa e o que dele sabia era o que me contavam os livros de Steinbeck, Ferreira de Castro, Manuel da Fonseca ou Jorge Amado, que os meus pais me davam para ler, escritores inspirados nos dramas sociais provocados pela exploração de vidas humanas.

Miséria e desigualdades que, no primeiro confronto, nos revoltam pela sua imoralidade e injustiça, até a nossa consciência amadurecer e nos revelar a engrenagem social que as constrói e mantém.

Desde então, sempre me senti convocado para o combate à pobreza, à exploração e às injustiças

Não sei se teria sido outra pessoa ou se a minha vida teria sido diferente se não tivesse estado naqueles dias, primeiro às Portas de Benfica e depois em Loures, com muitos outros estudantes mobilizados pelo padre Mário.

Dois ou três dias enterrado na lama até aos joelhos, entre destroços e barracas destruídas, vendo, impotente, a dor e o sofrimento dos que tudo perderam, protestando contra a avareza e o atraso do apoio dispensado pelas autoridades salazaristas, revoltado sempre que algum governante garantia que a tragédia se devia às chuvas torrenciais e não à miséria que habitava aquelas barracas.

Sei que, desde então e ao longo destes cinquenta anos, nunca fiquei indiferente perante qualquer desigualdade ou discriminação e sempre me senti – e sinto – convocado para o combate à pobreza, à exploração e às injustiças que, em grande medida, foi o que deu corpo e sentido à minha vida.

E sei, também, que esse combate valeu e vale a pena. Basta pensar como a democracia, entretanto, mudou o país, mesmo sabendo-se que a pobreza não acabou…

 
Depoimento de Francisco George, estudante de Medicina em 1967

No seio do movimento estudantil discutiu-se da oportunidade dos estudantes universitários apoiarem os bombeiros nos trabalhos de remoção de lamas. Seria aceitável apoiar o Governo nestas iniciativas? Não seria preferível ir às próprias localidades observar a verdadeira dimensão da catástrofe e depois denunciar? Foi esta a linha seguida.

Na Faculdade de Medicina as brigadas organizaram-se para trabalhos de proximidade, a fim de promoverem mais higiene e imunização da população. Lá fui para Odivelas na companhia de algumas dezenas de colegas. Uns limpavam casas, outros removiam lamas, outros ainda acompanhavam professores primários em atividades de sensibilização para a saúde. Muitos de nós identificaram corpos escondidos entre os escombros: crianças, pais, mães, avós. Um sem número.

 
Depoimento de Diana Andringa, estudante de Medicina em 1967

Domingo fomos sabendo as más notícias e creio que foi logo na segunda que, na Faculdade, fui mobilizada para o auxílio às vítimas. Pedi por telefone à minha mãe roupas, agasalhos, biberões, leite em pó e, pouco depois, um motorista requisitado pelo meu pai foi levar-nos a Santa Maria.

Penso que foi ainda nesse dia que partimos, em carros identificados como “Associações de Estudantes de Lisboa” – a que os sinaleiros abriam, estranhamente, caminho –, rumo às zonas de catástrofe. Sendo de Medicina, integrei uma Brigada de Vacinação, chefiada pelo então (penso) quintanista Pio de Abreu, destinada a Frielas e Póvoa de Santo Adrião.

Tratava-se de vacinar em massa contra o tifo – e venci a minha fobia de agulhas para dar quase centena e meia de vacinas nesse dia. Venci-a, também, para acompanhar no hospital a pequena cirurgia feita a um menino que encontráramos a vaguear, sozinho, com um corte profundo no pé – e que se agarrava com força à minha mão.

Dias depois, integrei – com o Alexandre Oliveira, o João Bernardo, o João Crisóstomo, o Jorge Simões e o José Brazão – o grupo do Secretariado Coordenador de Imprensa e Propaganda (SCIP), que publicou o “Solidariedade Estudantil”, com as notícias (livres de cortes de Censura) sobre as consequências das cheias – e que muitas pessoas, vencendo o medo, vinham pedir-nos à porta do Técnico, onde o imprimíamos. E foi depois desses dias, em que vencera alguns dos meus maiores temores em relação à Medicina, que tomei finalmente coragem para deixar o curso e optar pelo Jornalismo.

 
44 mil horas a ajudar as vítimas das cheias

Trecho de reportagem das jornalistas Dina Soares e Joana Bourgard, da Rádio Renascença, emitida em novembro de 2017:


Jorge Simões e José Brazão vinham de Coimbra com o cantor José Afonso quando começaram a ouvir na rádio que estava a acontecer uma catástrofe em Lisboa. Danilo Matos vivia num quarto na Alameda e passou a noite a ouvir a chuva cair. No dia seguinte era domingo, mas foram todos para o Instituto Superior Técnico, onde estudavam, para tentarem perceber o que se estava a passar.

António Alves Redol já tinha acabado o curso, mas continuava muito ligado à associação de estudantes. Foi um dos principais organizadores da ajuda estudantil às vítimas das cheias, uma ajuda proposta pela Juventude Universitária Católica, que conhecia o terreno, mas não tinha meios.

“Era no Técnico que recebíamos as inscrições dos estudantes, formávamos as equipas e distribuíamo-las pelo terreno depois de devidamente equipadas. Houve dias em que chegaram a estar mil estudantes a trabalhar ao mesmo tempo. Na altura, fizeram-se as contas e concluiu-se que os estudantes executaram, no total, 44 mil horas de trabalho”, recorda Alves Redol, filho do escritor com o mesmo nome.

António nunca saiu do Técnico, mas Jorge e José estiveram na Vala do Carregado. Danilo Matos também. “A causa de tanta desgraça não foi a chuva, foi a miséria. Foram postas a nu as condições sociais em que muitas pessoas viviam nesta cidade, mas também a inoperância do governo”, afirma Danilo Matos. “O governo atrasou-se, paralisou, só conseguiu mandar para o terreno o Movimento Nacional Feminino, que só ia atrapalhar, e a GNR, que era uma polícia preparada para reprimir e não para salvar gente. Essa inoperância gerou uma enorme revolta na população.''

Diana Andringa estava no segundo ano de Medicina e pertencia à pró-associação de estudantes. Por isso, quando se começaram a organizar as brigadas de vacinação, foi imediatamente incluída. “Dei, de repente, por mim – eu que tenho horror a agulhas – a dar vacinas a pessoas, muitas vacinas a muitas pessoas, em Frielas, na zona de Loures.”

Para Diana Andringa, a vacinação só durou um dia. A seguir, passou de médica a jornalista, uma mudança que ficaria para a vida. Tornou-se uma das redatoras do “Solidariedade Estudantil”, o jornal onde os estudantes relatavam o que encontravam no terreno. O Solidariedade Estudantil era o único jornal que escapava à censura. “Foi o meu único êxito editorial”, ironiza a jornalista. Um dos números do “Solidariedade Estudantil” chegou a tirar 10 mil exemplares e muitas pessoas nem esperavam que fosse distribuído na rua: subiam as escadas do Técnico e iam buscar o seu jornal.

“A partir de certa altura, a GNR começou a perseguir os estudantes. O regime reagiu muito mal e a censura começou a cortar as notícias e mesmo a falseá-las”, recorda Diana Andringa. “Foi aí que desisti de ser médica e resolvi ser jornalista.”

O auxílio dos estudantes não se ficou pelas universidades. Em muitos liceus de Lisboa, os alunos foram também mobilizados. Jorge Wemans tinha 14 anos e andava no Liceu Padre António Vieira. “O professor de Religião e Moral, que era padre, já organizava várias ações na escola e foi através desse grupo que tomámos conhecimento das proporções da tragédia e de que era possível fazer alguma coisa. A organização cruzava pessoas envolvidas no movimento associativo universitário com algumas estruturas da Igreja, nomeadamente os movimentos de acção católica. Foi assim que fui para Odivelas e para Benfica com um conjunto de amigos do liceu.”

Wemans não se lembra de quantos dias andou no auxílio às vítimas, mas recorda-se que o ponto de encontro era o centro da Rua Martens Ferrão, em Lisboa, onde vivia um grupo de padres, e que viajavam numa carrinha Peugeot até ao local onde ficavam a trabalhar.

“A recordação mais forte que tenho é de lama, lama muito pesada que tínhamos muito dificuldade em remover. Havia muitos animais mortos, mas nunca vi cadáveres humanos. Lembro-me do peso, das pessoas muito silenciosas, de um ambiente tão pesado como a lama. As pessoas sentiam-se tão abandonadas que agradeciam imenso a presença de miúdos de 14 anos.”

"Vínhamos quase todos de casas atapetadas"

O confronto com a tragédia mudou consciências. “A ideia de que as pessoas estavam a morrer debaixo de lama sem ninguém para as socorrer. A ideia de que às portas de Lisboa estava a morrer gente porque chovia marcou profundamente todos os estudantes envolvidos”, garante Diana Andringa.

Danilo Matos não tem dúvidas de que “as inundações de 67 foram um marco quer na história política do país quer na história política do movimento estudantil. Houve uma politização muito grande tanto do movimento dos estudantes como da sociedade em geral. O fascismo estava a dar o seu estertor e as cheias foram um marco da luta contra o fascismo.” (...)

“Para muitos estudantes, as cheias de 67 foram um momento marcante de tomada de consciência das desigualdades e da injustiça social, de afastamento do ideário do regime e de politização muito rápida”, afirma o historiador Miguel Cardina. “Já não se tratava apenas de reivindicar mais autonomia para os movimentos estudantis, tratava-se de entender o estudante como alguém socialmente comprometido.”

“O mais importante foi que, pela primeira vez, fora das organizações clandestinas de oposição ao regime, conseguimos organizar algo importante, que envolveu muita gente”, constata Jorge Wemans.

 

(...)