Trocando sapatos. Três gerações de bloco central

“O PS e o PSD, tendo em consideração a grave crise política, financeira e económica do país, deliberam estabelecer o presente acordo com a finalidade de obter uma maioria parlamentar estável e de constituir um Governo de centro-esquerda norteado pelos princípios do reformismo político, da modernização económica e da justiça social que caracterizam o ideário do socialismo democrático e da social-democracia na Europa dos nossos dias”.
É o primeiro parágrafo do “Acordo político, parlamentar e de governo” assinado a 4 de junho de 1983, formando o primeiro governo do Bloco Central, com Mário Soares a primeiro-ministro e Mota Pinto a vice-primeiro-ministro.

Portugal está sob intervenção do FMI, mas a linguagem não reflete o momento de dramática crise social nem o programa do governo, que Soares sintetizará depois: “Os problemas económicos em Portugal são fáceis de explicar e a única coisa a fazer é apertar o cinto”. Em dezembro de 1983, o governo aplica um imposto extraordinário retroativo de 28% do subsídio de Natal, sobe as taxas de juro e reduz o défice orçamental enquanto o desemprego oficial aumenta de 5,6% para 8,5% em 1985.
À porta do Conselho de Ministros, havia manifestações diárias contra a austeridade, cortes salariais e desemprego crescente. Lá dentro, Mário Soares e Mota Pinto trocavam de sapatos, literalmente, como relembra o próprio Mário Soares: “Durante esse tempo nunca tivemos uma discussão. A única questão que tínhamos é que ele tinha o hábito de descalçar os sapatos nos conselhos de ministros e eu também. E às vezes trocávamos de sapatos. Ele calçava os meus e eu os dele”.
Mário Soares fecha o acordo depois de ganhar as legislativas de 1983. O Partido Socialista está profundamente dividido, deixando de fora das listas boa parte dos dirigentes, nomeadamente Salgado Zenha, Jorge Sampaio ou António Guterres.
Por seu lado, Mota Pinto tem de lidar com Marcelo Rebelo de Sousa, que mobiliza dentro do PSD contra o governo. No final de 1983, publica o livro Contra o Bloco Central, escrito com Santana Lopes, José Miguel Júdice e Conceição Monteiro, a futura fação Nova Esperança, que aposta num posicionamento à direita e que irá estruturar a futura ascensão de Marcelo à liderança do PSD. Pelo meio, haveria ainda que atravessar a longa década cavaquista.
Uma década depois, o bloco central de Guterres com Marcelo já não é uma coligação de governo, mas sim uma nova tradução da convergência de interesses de classe (“o bloco central dos interesses”, como se dizia então) que marca todo o período que vai da reforma constitucional de 1989 (que abre o capítulo das privatizações) até à união monetária em 2001.
Eleito em outubro de 1995 com 44% dos votos (o PSD era liderado por Fernando Nogueira), António Guterres aprova o Orçamento do Estado para 1996. O diploma é viabilizado pela abstenção do CDS de Manuel Monteiro e mais cinco deputados do PSD eleitos pelas regiões autónomas. O acordo assenta em aumento de verbas para Madeira e Açores e pela aprovação da proposta apresentada pelo então deputado Lobo Xavier que introduziu um regime fiscal para novos instrumentos financeiros, como swaps e derivados.
Mas a atenção do CDS recaía sobretudo sobre património imóvel, num conjunto de propostas subscritas por Lobo Xavier e o socialista Hasse Ferreira. O deputado do PS normalizava a aliança flutuante do PS com a direita, alicerçada numa revisão do imposto sucessório e transmissão de imóveis (à altura denominado Sisa, hoje IMT) que terminou com a eliminação do imposto sucessório, um importante fator de concentração de riqueza e perpetuação de desigualdades em Portugal até hoje.

[António Guterres com Manuel Monteiro no debate sobre o referendo para a adesão à moeda única, foto de Manuel de Almeida via Lusa]
Guterres tinha como horizonte político a adesão ao Euro, que considerava inegociável e que o obrigava à aprovação de todos os quatro Orçamentos do Estado até 1999 (e ainda de uma revisão constitucional, que viria a acontecer em 1997). Marcelo temia um reforço eleitoral do PS em caso de queda do governo e garantiu a aprovação do Orçamento para 1997 ainda antes de este ser apresentado no parlamento, sob condição de que a revisão constitucional permitisse um referendo à regionalização.
A estratégia de Marcelo surte efeitos. Durante a legislatura, o Partido Socialista perde os dois referendos - o da regionalização e o do aborto (com o contributo da “neutralidade” do católico Guterres) - e as exigências orçamentais de Marcelo desgastam as relações internas do governo. Em 1999, Guterres volta a falhar a maioria absoluta. Vai instalar-se “o pântano”.

[António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa com o primeiro-ministro do Luxemburgo, Claude Junker, 1996, foto de Manuel Moura, Lusa]
Ao invocar o bíblico “bezerro de ouro”, o então ministro das Finanças, Sousa Franco, não se referia aos fundos europeus, mas sim à adesão à moeda única que, logo em 1996, obrigou a uma revisão em baixa do défice para 4% (seria 3% em 1997). O Orçamento para 1997 é aprovado com os votos do CDS e a abstenção do PSD.
Segundo o discurso de Sousa Franco na abertura do debate orçamental, o desígnio do país “não é a moeda única, qual «bezerro de ouro», como um fim em si, mas o acesso a uma posição nova na Europa e no mundo, uma perspetiva de desenvolvimento justo e sem exclusão social, que faz parte da nossa opção, da nossa visão de um trajeto de convergência estrutural, aproximando-nos dos padrões mais desenvolvidos das economias europeias, não apenas num sentido materialista (...) mas como forma de realizar um ideal de civilização de mais justiça, solidariedade, coesão e bem-estar”.
Sousa Franco indica o preço do bilhete para essa nova posição na Europa, realçando o contraste com os orçamentos do cavaquismo, bastante mais expansionistas: “a política de rigor económico necessária para preparar Portugal para a competitividade que a economia global nos impõe um défice inferior a 3% do PIB, o mais baixo de sempre desde o 25 de abril de 1974”. Já com uma abstenção anunciada, o líder-parlamentar do PSD, Rui Rio, alinhava-se: “nós concordamos com o valor do défice”.
Começa a longa estagnação: “os salários reais sobem, embora pouco, as pensões sobem todas elas, embora pouco. Isto é o que é possível!”. Vinte anos depois da adoção da moeda única, está demonstrada a devastadora divergência entre as economias que adotaram o Euro e a inversão da trajetória de aproximação verificada nas duas décadas anteriores.

[Marcelo Rebelo de Sousa e António Guterres com Marques Mendes e Jorge Lacão na assinatura do acordo de revisão constitucional que se viria a confirmar em 1997, foto de João Trindade, Lusa]
Em 1989, Manuel Violas tinha adquirido a Central de Cervejas (hoje, grupo Super Bock) no processo de reprivatização da empresa. Seguiu-se o Banco Totta & Açores, que acabará nas mãos de António Champalimaud, recém-indemnizado pelo Estado, em nome da manutenção dos “centro de decisão nacionais em mãos portuguesas” (pouco depois, o Totta será vendido ao Santander). Simultaneamente, os jornais nacionalizados, como A Capital, o Diário Popular, o Jornal de Notícias, Comércio do Porto, Record e Diário de Notícias, tinham passado para mãos privadas. Cavaco adota o que descreveu na sua autobiografia como uma “solução habilidosa para ultrapassar o obstáculo constitucional”: transformavam-se as empresas em sociedades anónimas e, posteriormente, 49% do capital era privatizado.
É também em 1989 que o PSD se junta a PS, PRD e CDS para a terceira revisão constitucional, que revoga a irreversibilidade das nacionalizações e retira da Constituição o conceito de “reforma agrária”, ainda que mantendo - até hoje - o objetivo da “eliminação dos latifúndios”...
Em 1996, Sousa Franco recupera o argumento cavaquista: “A redução da dívida pública é objetivo principal das privatizações”, mesmo se há “fatores mais importantes” no plano económico, desde logo “a criação de condições de capitalização e dinamização dos mercados financeiros, em particular da Bolsa” que, explica com entusiasmo, “já cresceram, nos primeiros dez meses, cerca de 60%”. Nunca tinha havido em Portugal uma vaga de privatizações, ainda que parciais, como a do programa estabelecido pelo PS para os anos de 1996-98: no setor financeiro (Banco de Fomento e Exterior, Banco Borges e Irmão, Banco Totta & Açores); aeroportos, CIMPOR, EDP, REN, Estaleiros de Viana, Galp, Portucel, Quimigal, setenave, Tabaqueira.
A modernização e internacionalização da economia operada pelo Partido Socialista é assim uma gigantesca operação de transferência do Estado para o setor privado e de financeirização (processo com grande envolvimento do CDS, através de Lobo Xavier), uma política iniciada por Cavaco e prosseguida com fervor pelo PS.
Nas duas décadas seguintes, todas sofreram reconfigurações acionistas e concentração de propriedade, além de novas fases de privatização. Mesmo privatizadas a 100% sob a troika, gozarão até hoje de proteção direta do Estado e rendas garantidas, num sistema de transferência de riqueza bem espelhado nos dividendos recorde que são entregues aos acionistas.

[Os Ministros Sousa Franco e João Cravinho (ao centro) com o Presidente da Portugal Telecom (esquerda) e o Secretário de Estado Teixeira dos Santos (direita) na Oferta Pública de Venda da terceira fase de privatização da Portugal Telecom, foto de Inácio Rosa via Lusa]
Paulo Portas chega à liderança do CDS em janeiro de 1999 e, durante esse ano, alimenta uma renovação da Aliança Democrática, um projeto acompanhado por Marcelo Rebelo de Sousa. Quando Portas abandona a ideia, Marcelo perde o chão e, em maio, é substituído por Durão Barroso. Nas legislativas de outubro, Guterres fica a apenas um deputado da maioria absoluta. O seu primeiro orçamento tem o voto contra do PSD mas é viabilizado pela abstenção do CDS.
Nos dois anos seguintes, a negociação passa a ser feita com Daniel Campelo, deputado do CDS que oferece o voto em troca de medidas de apoio aos produtores de queijo da sua região, Ponte de Lima. Os “orçamentos limianos” para 2001 e 2002 marcaram o segundo governo de Guterres, mas foram cinco os orçamentos do PS viabilizados pelo CDS, seja sob Monteiro ou Portas. Campelo não rompeu uma tradição.
A derrota do Partido Socialista nas eleições autárquicas a 16 de dezembro de 2001 confirma o desgaste e António Guterres apresenta a demissão. Duas semanas depois, a 1 de janeiro de 2002, as moedas e notas do Euro entram em circulação em Portugal. Fecha-se um ciclo.
Quando a crise financeira internacional de 2007-8 se transforma numa crise das dívidas dos Estados, Berlim e Bruxelas receitam o remédio austeritário. José Sócrates abre então negociações com o PSD para a viabilização dos Planos de Estabilidade e Crescimento (PEC).
O espartilho orçamental dos tempos de Guterres ganha um superlativo. Entre março e setembro de 2010, Sócrates e Passos Coelho negoceiam e aprovam três PEC, determinando cortes drásticos na despesa pública e aumentos do IVA. O quarto PEC é chumbado no parlamento já em 2011. Passos Coelho considera que é altura de “ir ao pote” e retira o seu apoio a Sócrates. O governo cai e entra a troika.
O memorando com a troika é assinado pelos partidos do bloco central. O representante do PSD nessas negociações, Eduardo Catroga, dá conta da sua felicidade, numa conferência de imprensa em que considera que “a negociação foi essencialmente influenciada” pelo PSD. Mais uma vez, o diferendo no Bloco Central não é quanto à realização de privatizações, mas como e para quem. Segundo Catroga, “nas medidas de austeridade do PS não se falava na necessidade de reduzir o Estado paralelo, não se falava na necessidade de racionalizar o Estado, falava-se em privatizações, mas que eram sempre adiadas. Portanto, nós temos agora uma oportunidade única. Portugal vai ter aqui uma oportunidade de fazer as reformas que se impõem, para dar esperança aos portugueses, para dar esperança à juventude". Na verdade, à brutalidade do PEC IV proposto por Sócrates, o memorando apenas expande o capítulo das privatizações, em particular quanto à explicitação da privatização da TAP.

[José Sócrates com Pedro Passos Coelho em 2011, foto de António Cotrim via Lusa]