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Pedro Morgado: "A precariedade no trabalho é um catalisador de problemas de saúde mental"

Nesta entrevista, o médico psiquiatra Pedro Morgado fala sobre as dificuldades de se fazer investigação em Portugal e na implementação do Plano Nacional de Saúde Mental, do impacto da pandemia em diferentes populações vulneráveis ou das novas formas de organização do trabalho e a sua relação com a saúde mental. Entrevista conduzida por Bruno Maia.

Pedro Morgado foi galardoado com o prémio “FLAD Science Award Mental Health”, o maior prémio de investigação em saúde mental em Portugal, atribuído pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. O prémio vai ser aplicado no seu projeto de investigação que procura estudar a doença obsessivo-compulsiva e a resposta ao tratamento com recurso a imagens de ressonância magnética funcional e avaliar a eficácia de um fármaco utilizado no tratamento da doença de Parkinson nesta patologia.

Pedro Morgado é médico, psiquiatra no Hospital de Braga, professor de Psiquiatria, Neuroanatomia e Comunicação Médica na Escola de Medicina da Universidade do Minho, da qual é Vice-Presidente, e investigador do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde.

Para além de tudo isto, foi fundador e presidente do Núcleo de Estudantes de Medicina da Universidade do Minho e tem escrito profusamente sobre o Serviço Nacional de Saúde, a ameaça da desinformação e do populismo nos nossos dias, os combates pela igualdade, a discriminação das pessoas com doença mental, entre muitos outros temas.

Em Portugal, o número de ensaios clínicos com autoria de investigador é muito baixo, comparativamente com os restantes países europeus. Porque é que é tão difícil fazer investigação clínica em Portugal, de autoria do investigador? O que falta no SNS e nas Universidades para estimular a investigação clínica?

Há vários fatores que contribuem para essa baixa taxa de ensaios clínicos da iniciativa do investigador em Portugal.

Em primeiro, existem poucos centros que promovam a investigação integrada desde a bancada do laboratório até à cabeceira do doente como acontece no cluster da Escola de Medicina da Universidade do Minho. Esta integração é fundamental e o convívio entre investigadores das áreas mais fundamentais e das áreas mais clínicas é decisivo para se encontrarem as melhores soluções para os doentes.

Em segundo, a investigação clínica não é considerada no trabalho dos médicos e outros profissionais do SNS. Isto significa que temos que investigar fora do nosso horário hospitalar e em prejuízo da vida pessoal. Quando estive em estágio em Barcelona há 8 anos, os médicos que se dedicavam à investigação já dispunham de tempo protegido no seu horário. É um caminho que ainda temos que percorrer em Portugal.

Em terceiro, existem por vezes barreiras institucionais, nos próprios serviços ou hospitais, que dificultam a investigação. Eu tenho a felicidade de trabalhar no Hospital de Braga que não tem colocado quaisquer barreiras ao desenvolvimento destes projetos de investigação mas sei que isso não sucede em todos os serviços ou hospitais do SNS.
Em quarto, faltam linhas de financiamento específicas para este sector. A recente criação de vários centros académicos clínicos é importante para a melhoria dos cuidados de saúde e para estimular esse trabalho mas ainda lhes faltam ferramentas úteis para a dinamização dessa investigação. Uma dessas ferramentas é a possibilidade de se atribuírem bolsas de doutoramento a gerir pelos próprios centros que garantam uma conjugação de interesses entre os investigadores, as instituições prestadoras de cuidados de saúde e as universidades.

Criaste uma aplicação para ajudar médicos de família e psiquiatras a receitar antidepressivos. Quais achas que são os limites da inteligência artificial na medicina? Corremos o risco de substituirmos, parcial e totalmente, o médico pelo computador?

Não acredito que o ser humano possa ser substituído por computadores na Medicina. Mas acredito que temos obrigação de aproveitar tudo quanto a tecnologia nos pode oferecer para servir melhor as pessoas que atendemos nos hospitais e centros de saúde. Estas aplicações que temos desenvolvido são ferramentas que simplificam o acesso a informação que se encontra dispersa por várias fontes e que, como tal, facilita a vida aos clínicos. Em várias áreas da Medicina estão a surgir ferramentas que complementam o trabalho dos médicos e que, no caso de algumas especialidades mais técnicas, poderão substituir algumas das suas tarefas. Contudo, o papel dos médicos enquanto comunicadores e curadores da relação entre o paciente e os serviços de saúde é insubstituível.

Portugal vai usar 85 milhões do Plano de Recuperação e Resiliência para fazer a reforma da saúde mental, entre as quais estão anunciadas 40 equipas comunitárias e programas de intervenção não farmacológica nos centros de saúde. São estas a prioridades certas para a saúde mental? E o financiamento é o adequado?

Acreditamos que é um apoio muito importante para melhorar os cuidados de saúde mental em Portugal. Durante muitos anos não vimos a saúde mental aparecer no centro dos investimentos públicos e por isso devemos olhar para este investimento significativo com uma grande esperança. Contudo, tão importante como a criação das equipas é a definição dos modelos de trabalho e a interligação entre as diferentes unidades do SNS. Não podemos criar equipas que sejam ilhas em que os profissionais não colaboram e em que não existe a noção de rede. Essa gestão integrada de cuidados será fundamental para o sucesso do investimento.

Porque é que existe este atraso crónico na implementação do Plano Nacional de Saúde Mental? É escassez de vontade política? São problemas de financiamento?

O atraso é evidente e penso que se deve à conjugação de múltiplos fatores. Por um lado, o Plano Nacional de Saúde Mental nunca foi dotado dos recursos necessários para a sua implementação e, por outro, não existiu a força política necessária para fazer as mudanças estruturais que se impõem. O Plano Nacional de Saúde Mental é uma revolução na forma como são conceptualizados os cuidados que acompanha a evolução extraordinária dos métodos de tratamento. Hoje em dia, todos concordam que o tratamento e acompanhamento na comunidade serve melhor quase todas as pessoas com doença psiquiátrica do que a simples institucionalização. Esta é uma mudança que teve muitas resistências durante muito tempo mas acabámos por ficar quase todos de acordo.

A pandemia parece, segundo alguns estudos que têm aparecido, ter agravado os problemas de saúde mental e que os jovens serão os mais afetados. Quais são as razões que encontras para isto? As redes sociais terão algum papel?

A pandemia universalizou a experiência de ansiedade, stress, sintomas depressivos, sintomas obsessivo-compulsivos e dificuldades de sono. Estes sintomas foram muito intensos nos dois grandes confinamentos que tivemos em Portugal (segundo trimestre de 2020 e primeiro de 2021), permitindo depois que a maioria das pessoas se adaptasse à situação e reduzisse o sofrimento psicológico para valores normais. Os jovens e as mulheres pareceram especialmente afetados pela pandemia, embora a maioria dos estudos se realize online e não capte bem os efeitos na população mais idosa que não utiliza a internet. Em relação aos jovens, as hipóteses mais consistentes relacionam-se com o impacto da pandemia no ciclo de vida – de repente, uma geração viu os seus planos abortados ou adiados, viu a sua capacidade de estabelecer relações limitada e viu os seus projetos de emprego restringidos.

Verificámos também que algumas pessoas mais vulneráveis não se adaptaram tão bem e mantiveram níveis elevados de sintomas, encontrando-se em maior risco de adoecer. Estas pessoas incluem os desempregados, os reformados, as pessoas com dificuldades económicas, as pessoas que consomem demasiadas notícias sobre a pandemia, as pessoas que não praticam exercício físico e aquelas que já estavam doentes antes da pandemia (com doenças físicas ou psiquiátricas). Estes grupos são aqueles para quem devemos dirigir a nossa atenção, estimulando o diagnóstico precoce e a intervenção terapêutica atempada.

Existem dados (estudos) que relacionem a saúde mental com as novas formas de organização do trabalho? A “uberização” do mercado de trabalho, com a atomização e a fragmentação das relações laborais pode ter algum papel no aparecimento e agravamento de problemas de saúde mental?

O trabalho é um elemento fundamental para a nossa saúde que facilmente se pode converter num catalisador de problemas de saúde, sobretudo saúde mental. De facto, há vários fatores que têm sido apontados para o aumento de problemas de saúde mental relacionados com o trabalho. Incluem-se não só a “uberização” do mercado de trabalho com a total desproteção dos trabalhadores mas também o estímulo à competição entre os próprios trabalhadores, a fragmentação das estruturas de solidariedade e de luta laboral, as narrativas do empreendedorismo e do (in)sucesso como produto exclusivo do (de)mérito individual, o desrespeito pela compatibilização entre vida pessoal e vida laboral, a desorganização dos horários de trabalho, a falta de autonomia dos trabalhadores e as baixa remunerações. Todos estes fatores suscitam grande preocupação entre os profissionais de saúde mental e devem ser encarados como questões de saúde pública. Como a OMS nos recorda, não há saúde sem saúde mental e, por isso, precisamos que a saúde mental esteja em todas as políticas do país.

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Esquerda Saúde 1

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Leia aqui em formato pdf o primeiro número da revista online "Esquerda Saúde". Todos os artigos e outros conteúdos sobre o tema estão disponíveis na página Esquerda Saúde.

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24 de Março 2022

A revista “Esquerda Saúde” é um espaço amplo de reflexão sobre a saúde, o Serviço Nacional de Saúde, os seus profissionais, a sua organização. Por Mário André Macedo e Bruno Maia.

Pedro Morgado

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