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A minha história de enfermeira na Bélgica

Ser independente, ter condições de trabalho vantajosas e possibilidade de progressão na carreira; estas foram as razões pelas quais emigrei para a Bélgica. Após nove anos, ainda cá estou, satisfeita. Esta é a minha história. Artigo de Maria Ribeiro.

“Meninos, vai ser muito difícil arranjar emprego quando terminarem o curso”; “terão de criar os vossos postos de trabalho”; “isto está muito difícil para os enfermeiros”; “os enfermeiros não são bem remunerados nem valorizados”. Estas foram algumas das frases que os meus professores disseram ao longo dos quatro anos do meu curso de Enfermagem. Elas tiveram um impacto tão grande em mim, que nem tentei procurar emprego em Portugal. Só tinha de decidir para onde emigrar. Reino Unido, Irlanda, Bélgica, França, Suíça, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Angola… havia muita escolha.

Terminei o meu curso em 2008. Antes disso, fui recrutada por uma agência belga para trabalhar na Bélgica. Com 22 anos, emigrei e comecei a trabalhar numa instituição que presta cuidados continuados e paliativos a idosos. Esta agência ajudou com a burocracia necessária para poder exercer a minha profissão na Bélgica, o arrendamento do apartamento para onde iria viver, o pedido do cartão de identidade belga, a abertura da minha conta bancária… Até foram comigo comprar a mobília necessária e ajudaram a montá-la. Era necessário saber falar neerlandês antes de poder exercer e eles ofereceram o curso do idioma. Sempre quis aprender línguas novas e vi aqui uma oportunidade para isso. Frequentei o curso ainda em Portugal. Deste modo, emigrei com o nível necessário para poder comunicar com os meus colegas e pacientes. Na Bélgica, continuei a estudar e a praticar o neerlandês. 

A despedida foi a parte que custou mais. Deixei a minha família e amigos em Portugal. Durante seis meses, chorava regularmente de tanta saudade. Mas nunca considerei voltar para Portugal. Desde o início, foi claro que a realidade belga da enfermagem era muito diferente da portuguesa. E que eu tinha muitos fatores a jogar a meu favor. Aqui, não é difícil arranjar emprego. Aliás, existem mais ofertas de trabalho do que enfermeiros. Vagas ficam abertas durante meses sem ninguém se candidatar. Eu tenho a possibilidade de escolher onde quero trabalhar. Hospitais, empresas de cuidados ao domicílio, centros de cuidados geriátricos, continuados e paliativos, empresas de material e dispositivos médicos, centros de estudos clínicos, instituições de cuidados paliativos ao domicílio, policlínicas, centros de medicina familiar são vários dos possíveis locais de trabalho para um enfermeiro. Na maioria, os contratos são por tempo indeterminado. É possível escolher quantas horas se quer trabalhar por semana, sendo que um trabalhador a tempo inteiro trabalha 38 horas. Para atrair enfermeiros, cada local de trabalho oferece regalias variáveis: subsídio de alimentação, seguro hospitalar, plano de pensão, prémios extra como vouchers anuais para gastar na cultura ou em produtos ecológicos, carro da empresa que pode ser usado na vida privada (todos os custos do carro suportados pela entidade empregadora), deslocação entre o domicílio e o local de trabalho paga (seja de viatura própria ou transportes públicos).

Eu trabalhei nove anos em instituições de prestação de cuidados geriátricos, dos quais dois como enfermeira e sete como enfermeira chefe. Em início de carreira, recebi uma proposta para começar como enfermeira chefe. Ao mesmo tempo que iniciei esta função, fiz a pós-graduação necessária para poder exercer o cargo de enfermeira chefe. Isto é uma prática comum na Bélgica. As entidades empregadoras convidam funcionários para exercer determinadas funções, mas com a condição de frequentar os cursos necessários. Algumas destas entidades pagam as propinas dos cursos que os enfermeiros querem frequentar/que devem frequentar, como por exemplo, pós-graduações, mestrados. Trabalhadores-estudantes também têm outros benefícios. Neste momento, estou a fazer mestrado em enfermagem. Dependendo do sítio onde trabalho, posso usufruir de dias de férias extra, chamadas “férias educacionais” ou reduzir a carga horária e receber um subsídio do Estado para compensar a perda do salário. Os trabalhadores também podem recorrer a estes benefícios em outros casos, por exemplo, como para tomar conta de filhos doentes, ou familiares que necessitam de cuidados de saúde ou cuidados paliativos. A partir dos 45 anos, os enfermeiros podem escolher entre uma folga paga por mês ou um prémio extra financeiro. Quem tem 50 anos pode escolher entre uma folga (acima de 50, duas folgas; acima de 55, três folgas) e o prémio. De acordo com os anos de experiência, também se pode receber dias extra de férias. Pessoas com filhos, além da licença de maternidade/paternidade, têm direito a reduzir a carga horária por um determinado período até a criança fazer doze anos. Estes são alguns dos benefícios que podem ajudar a ter um melhor equilíbrio entre a vida profissional e privada.

Estou satisfeita com as condições de trabalho na Bélgica, mas nem tudo é perfeito. Existe muita falta de pessoal, o que torna o dia a dia para as/os enfermeira(o)s e cuidadores muito difícil. Enfermeiros são responsáveis por muitos pacientes e a organização da prestação dos cuidados de saúde fica comprometida, sendo necessário estabelecer prioridades. Esta situação verifica-se em todos os campos, sendo principalmente grave nas instituições de cuidados continuados. No meu anterior local de trabalho, onde exercia a função de enfermeira chefe, as vagas não eram preenchidas, o que sobrecarregava os funcionários, resultando em baixas médicas, muitas devidas a burnout. Isto tornava-se um ciclo vicioso. Quanto mais falta de mãos no serviço, mais os colegas ficavam sobrecarregados. Durante a pandemia, estes problemas só se intensificaram.  Devido a tanta oferta de emprego, os colegas também mudam de emprego regularmente, de modo a experimentar novos contextos e a tentar encontrar locais de trabalho mais saudáveis. Mais uma vez, contribuindo para a falta de pessoal. É fundamental criar condições de trabalho saudáveis e ter à frente dos serviços, gestores com as devidas capacidades de liderança para melhorar as condições de trabalho. É necessário proporcionar um equilíbrio entre a vida profissional e privada. É fulcral proporcionar oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento, para ter um staff motivado, satisfeito. Deste modo, reduz-se a rotação do pessoal. Eu fui um dos casos que mudou de área, após nove anos de experiência.

Como enfermeira chefe, era responsável por um serviço com trinta residentes e por uma equipa multidisciplinar de vinte pessoas (enfermeiros, cuidadores, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, animadora, equipa de limpeza e logística, voluntários, trabalhadores-estudantes). Coordenação do serviço, coaching e orientação dos membros da equipa, qualidade da prestação dos cuidados, criação de um ambiente familiar e acolhedor, eram algumas das minhas tarefas. Devido à falta de pessoal, enorme sobrecarga, muitas vezes tinha de prestar cuidados diretos aos pacientes, o que não me permitia exercer a minha função devidamente. Para compensar fazia muitas horas extras e estava sob muito stress para atingir os meus objectivos e concretizar a visão que tinha para o meu serviço, o que colocou em risco a minha saúde mental e física. Tal como me recusei a exercer Enfermagem em Portugal devido às pobres condições de trabalho e ser impossível ter uma vida independente com o salário de uma enfermeira, fui novamente à procura de algo melhor. Neste momento, sou coordenadora de estudos clínicos num centro de farmacologia clínica do Hospital Universitário de Leuven. Consigo ter um bom equilíbrio entre a minha vida profissional, académica e pessoal, o ritmo de trabalho é mais calmo, existe um bom espírito de equipa e há bastantes oportunidades de desenvolvimento profissional. E é a este tipo de ambiente de trabalho que acho que todos nós devíamos ter acesso.

Recentemente e pela primeira vez, senti vontade de voltar a Portugal. Estando fora, perco muitos marcos importantes da vida da minha família e amigos. Também sinto falta do país, da nossa cultura, do tempo... E assim fico dividida. Não me vejo no mercado de trabalho português, pois para mim é muito importante ter um ambiente laboral onde sou valorizada, posso crescer profissionalmente, ser bem remunerada e ter determinados benefícios, permitindo-me ter a qualidade de vida que tenho.  Gosto de pensar que um dia conseguirei voltar para os meus, para a minha terra. Não só gostava que a situação mudasse para poder voltar, mas principalmente, para os meus colegas de profissão que todos os dias lutam pelos seus direitos e por melhores condições de trabalho sem as terem e, mesmo assim, continuam a prestar cuidados de saúde de qualidade à população portuguesa, a trabalhar por turnos e a fazer horas extra sem receberem a devida compensação, a não serem devidamente remunerados pelos anos de experiência que têm, e por aí em diante.

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Esquerda Saúde 3

Já saiu a revista Esquerda Saúde nº 3

17 de Novembro 2023

A edição de novembro de 2022 já está disponível online. Em destaque, a crise do SNS e a falta de respostas do Governo. Leia aqui a revista em formato pdf.

Editorial: Verão quente na Saúde

17 de Novembro 2022

Mudarão as políticas de saúde em Portugal? Não tenhamos grandes ilusões, mais do que mudanças de personalidades, o que conta são as opções políticas. E essas, infelizmente, continuarão idênticas. Editorial de Mário André Macedo.

Negociações sindicais no congelador, enfermagem fora do Orçamento

17 de Novembro 2022

O OE 23 pretende remunerar as primeiras 150 horas extras ao valor atual, apenas majorando após atingir esta marca. Ou seja, os enfermeiros terão de trabalhar 1 mês extra, antes de serem devidamente pagos pelo valor do seu trabalho. Artigo de Luís Mós.

 

A crise do SNS não é um fenómeno estival

17 de Novembro 2022

Foi badalado até à exaustão o fecho de maternidades, as transferências de grávidas, as mortes de mães e de bebés, que produziram suculentas manchetes. Poucas vezes se foi ao fundo da questão e se expôs a verdadeira razão e dimensão dos problemas. Artigo de Tânia Russo.

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Os TSDT e a eterna injustiça na saúde

17 de Novembro 2022

O nosso trabalho vale pouco para quem manda. Quem se senta durante o dia em frente ao Excel, não percebe o valor de trabalhar noite dentro a semear hemoculturas, efetuar uma TAC a um doente com AVC ou realizar um ECG numa sala de reanimação. Artigo de Eloísa Gonçalves Macedo

 

O SNS e os TSDT: o que aconteceu?

17 de Novembro 2022

O valor das profissões que a carreira de Técnico Superior de Diagnóstico e Terapêutica abrange é incalculável para a qualidade de vida dos utentes do Serviço Nacional de Saúde. Artigo de Nuno Malafaia.

Ensino médico: da academia à enfermaria

17 de Novembro 2022

Embora nos encontremos num período de inovação e experimentação alargada no ensino médico, onde a voz estudantil parece contar um pouco mais do que há alguns anos, os métodos de avaliação continuam a insistir de modo arcaico no exame de escolha múltipla ou no conjunto de frequências compostas por questões da mesma tipologia. Artigo de Pedro Vilão Silva.

 

Valorização da enfermagem é mais eficiência no SNS

17 de Novembro 2022

A situação global dos Enfermeiros/as é o espelho que reflete o estado da Saúde no nosso país: desinvestida, desmembrada e desmotivada. Artigo de Fernanda Lopes.

 

Desafios para a Gestão do Serviço Nacional de Saúde

17 de Novembro 2022

Os contratos programa devem ser divulgados por todos os profissionais da unidade de saúde para que se sintam envolvidos, para que saibam quais as metas a atingir, quais as estratégias a adoptar e que variáveis- métricas devem ser elencadas para avaliar a qualidade de cuidados prestados. Artigo de Gisela Almeida.

 

Saúde nos Açores, para além do limite

17 de Novembro 2022

Só em maio deste ano, a afluência ao Hospital de Ponta Delgada bateu recordes, com 1.300 pessoas a recorrerem àquela valência em três dias. Artigo de Jessica Pacheco.

O que se passa com os serviços de urgência

4 de Setembro 2022

Não há praticamente nenhum programa de governo para a saúde que não reconheça que há um problema nas urgências. No entanto, aqui estamos, com problemas semelhantes nos serviços de urgência ao longo dos últimos 40 anos. Artigo de Mário André Macedo.