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A crise do SNS não é um fenómeno estival
O encerramento de maternidades durante alguns dias no verão não é um problema só das maternidades, não é um problema só das urgências de obstetrícia e não é um problema só do verão. Na verdade, muitos serviços de urgência por todo o país trabalham com equipas extremamente desfalcadas em várias especialidades, quer seja em ginecologia/obstetrícia, em medicina interna, em pediatria, em cirurgia, em ortopedia, ou em imagiologia. Na falta de profissionais, sobra o tempo de espera dos utentes e diminui a qualidade do atendimento.
Mas as equipas não estão desfalcadas apenas nas urgências. O que acontece é que o serviço de urgência é sempre o local mais pressionado, onde entram as situações mais graves e que requerem prontidão imediata. A pressão das urgências leva a que muitas vezes sejam desviados profissionais dos internamentos, das consultas e das cirurgias para tapar buracos nas escalas de urgência. Quando a manta é curta, puxa-se de um lado e destapa-se do outro. E não tem havido vontade política para lhe tricotar acrescentos.
Uma boa parte desta pressão reside na falta de resposta a nível dos cuidados de saúde primários, onde mais de 1 milhão de cidadãos não têm acesso a médico de família nem a profissionais que assegurem os cuidados preventivos e a vigilância das doenças crónicas. Seria mais eficaz, e mais barato, prevenir as doenças do que atuar quando elas já estão instaladas e agravadas.
Mas o problema não é só do verão. A ex-ministra da Saúde, Marta Temido, foi lesta a lançar as férias e as épocas festivas como a semente da desconfiança sobre os profissionais que têm assegurado o combate à pandemia e que seguram há décadas um SNS que ela e outros não têm sabido, ou não têm querido, cuidar. É com o outono e inverno que agora se inicia, e que trará o pico das infeções respiratórias, que temos de nos preocupar. Esta é uma velha realidade, cujas imagens de macas apinhadas em corredores todos gostaríamos de um dia deixar de ver.
Este foi também o verão do tão ansiado novo estatuto do SNS. Um estatuto que traz alguns avanços interessantes, como a separação entre coordenação política e operacional e a maior autonomia dos hospitais para a contratação de trabalhadores, mas que não remove o espartilho das Finanças em matéria de investimentos na saúde e que corre o risco de centralizar demasiado a decisão num modelo de gestão bicéfalo em que Ministro da Saúde e Diretor Executivo se atropelem. Por outro lado, este é um estatuto curto, que não dá resposta a dois dos maiores problemas do SNS: a perda de profissionais de saúde e o escoamento de capacidades e de recursos para os interesses lucrativos. As negociações com os sindicatos da saúde foram este verão um marca-passo tímido, mantendo desigualdades entre enfermeiros e empatando os médicos durante sete horas simplesmente para incluir a revisão da grelha salarial no protocolo negocial. O regime de dedicação plena é um logro, desde logo na palavra, que não corresponde à necessidade de fixar profissionais exclusivamente dedicados ao SNS. E a externalização de serviços continua de portas abertas.
No meio de toda esta agitação, a demissão de Marta Temido acabou por ser uma lufada de ar fresco para o governo de António Costa. Foi o renovar de uma cara, mantendo a mesma política, como o próprio disse. E a oportunidade assentou que nem uma luva, permitindo alguma distensão num verão em ebulição, enquanto se empatavam notícias de encerramentos pouco favoráveis, mudanças estruturais essenciais que ficaram pelo caminho e processos negociais que o governo não tem interesse em avançar.
O fim do verão traz agora o Orçamento do Estado. Fernando Medina disse neste verão quente na saúde que o problema do SNS não é falta de dinheiro. Mas também é falta de dinheiro. Falta de dinheiro investido nas rubricas que fazem falta: salários dignos para os profissionais de saúde que não os empurrem para fora do SNS; consultas, cirurgias e exames complementares disponíveis a tempo e horas; equipas de saúde familiar que deem resposta aos mais de 1 milhão e 200 mil cidadãos sem acompanhamento; medidas de promoção e de educação para a saúde; cuidados continuados que respondam às necessidades de quem deles precisa. O reforço do orçamento da saúde para 2023 em 1.177 milhões de euros não traduz a política por trás do número, quando o aumento da despesa prevista com pessoal é de apenas 2,9%, enquanto o montante para aquisição de bens e serviços (que inclui a externalização de exames complementares e as despesas com parcerias público-privadas) cresce 3,7%. E também é falta de vontade para concretizar o SNS como um bem público, geral e universal, que garanta saúde para toda a gente e proteção da saúde pública em Portugal.
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