Está aqui

A crise do SNS não é um fenómeno estival

Foi badalado até à exaustão o fecho de maternidades, as transferências de grávidas, as mortes de mães e de bebés, que produziram suculentas manchetes. Poucas vezes se foi ao fundo da questão e se expôs a verdadeira razão e dimensão dos problemas. Artigo de Tânia Russo.

O encerramento de maternidades durante alguns dias no verão não é um problema só das maternidades, não é um problema só das urgências de obstetrícia e não é um problema só do verão. Na verdade, muitos serviços de urgência por todo o país trabalham com equipas extremamente desfalcadas em várias especialidades, quer seja em ginecologia/obstetrícia, em medicina interna, em pediatria, em cirurgia, em ortopedia, ou em imagiologia. Na falta de profissionais, sobra o tempo de espera dos utentes e diminui a qualidade do atendimento.

Mas as equipas não estão desfalcadas apenas nas urgências. O que acontece é que o serviço de urgência é sempre o local mais pressionado, onde entram as situações mais graves e que requerem prontidão imediata. A pressão das urgências leva a que muitas vezes sejam desviados profissionais dos internamentos, das consultas e das cirurgias para tapar buracos nas escalas de urgência. Quando a manta é curta, puxa-se de um lado e destapa-se do outro. E não tem havido vontade política para lhe tricotar acrescentos.

Uma boa parte desta pressão reside na falta de resposta a nível dos cuidados de saúde primários, onde mais de 1 milhão de cidadãos não têm acesso a médico de família nem a profissionais que assegurem os cuidados preventivos e a vigilância das doenças crónicas. Seria mais eficaz, e mais barato, prevenir as doenças do que atuar quando elas já estão instaladas e agravadas.

Mas o problema não é só do verão. A ex-ministra da Saúde, Marta Temido, foi lesta a lançar as férias e as épocas festivas como a semente da desconfiança sobre os profissionais que têm assegurado o combate à pandemia e que seguram há décadas um SNS que ela e outros não têm sabido, ou não têm querido, cuidar. É com o outono e inverno que agora se inicia, e que trará o pico das infeções respiratórias, que temos de nos preocupar. Esta é uma velha realidade, cujas imagens de macas apinhadas em corredores todos gostaríamos de um dia deixar de ver.

Este foi também o verão do tão ansiado novo estatuto do SNS. Um estatuto que traz alguns avanços interessantes, como a separação entre coordenação política e operacional e a maior autonomia dos hospitais para a contratação de trabalhadores, mas que não remove o espartilho das Finanças em matéria de investimentos na saúde e que corre o risco de centralizar demasiado a decisão num modelo de gestão bicéfalo em que Ministro da Saúde e Diretor Executivo se atropelem. Por outro lado, este é um estatuto curto, que não dá resposta a dois dos maiores problemas do SNS: a perda de profissionais de saúde e o escoamento de capacidades e de recursos para os interesses lucrativos. As negociações com os sindicatos da saúde foram este verão um marca-passo tímido, mantendo desigualdades entre enfermeiros e empatando os médicos durante sete horas simplesmente para incluir a revisão da grelha salarial no protocolo negocial. O regime de dedicação plena é um logro, desde logo na palavra, que não corresponde à necessidade de fixar profissionais exclusivamente dedicados ao SNS. E a externalização de serviços continua de portas abertas.

No meio de toda esta agitação, a demissão de Marta Temido acabou por ser uma lufada de ar fresco para o governo de António Costa. Foi o renovar de uma cara, mantendo a mesma política, como o próprio disse. E a oportunidade assentou que nem uma luva, permitindo alguma distensão num verão em ebulição, enquanto se empatavam notícias de encerramentos pouco favoráveis, mudanças estruturais essenciais que ficaram pelo caminho e processos negociais que o governo não tem interesse em avançar.

O fim do verão traz agora o Orçamento do Estado. Fernando Medina disse neste verão quente na saúde que o problema do SNS não é falta de dinheiro. Mas também é falta de dinheiro. Falta de dinheiro investido nas rubricas que fazem falta: salários dignos para os profissionais de saúde que não os empurrem para fora do SNS; consultas, cirurgias e exames complementares disponíveis a tempo e horas; equipas de saúde familiar que deem resposta aos mais de 1 milhão e 200 mil cidadãos sem acompanhamento; medidas de promoção e de educação para a saúde; cuidados continuados que respondam às necessidades de quem deles precisa. O reforço do orçamento da saúde para 2023 em 1.177 milhões de euros não traduz a política por trás do número, quando o aumento da despesa prevista com pessoal é de apenas 2,9%, enquanto o montante para aquisição de bens e serviços (que inclui a externalização de exames complementares e as despesas com parcerias público-privadas) cresce 3,7%. E também é falta de vontade para concretizar o SNS como um bem público, geral e universal, que garanta saúde para toda a gente e proteção da saúde pública em Portugal.

Sobre o/a autor(a)

Médica e dirigente do Sindicato dos Médicos da Zona Sul
(...)

Esquerda Saúde 3

Já saiu a revista Esquerda Saúde nº 3

17 de Novembro 2023

A edição de novembro de 2022 já está disponível online. Em destaque, a crise do SNS e a falta de respostas do Governo. Leia aqui a revista em formato pdf.

Editorial: Verão quente na Saúde

17 de Novembro 2022

Mudarão as políticas de saúde em Portugal? Não tenhamos grandes ilusões, mais do que mudanças de personalidades, o que conta são as opções políticas. E essas, infelizmente, continuarão idênticas. Editorial de Mário André Macedo.

Negociações sindicais no congelador, enfermagem fora do Orçamento

17 de Novembro 2022

O OE 23 pretende remunerar as primeiras 150 horas extras ao valor atual, apenas majorando após atingir esta marca. Ou seja, os enfermeiros terão de trabalhar 1 mês extra, antes de serem devidamente pagos pelo valor do seu trabalho. Artigo de Luís Mós.

 

A crise do SNS não é um fenómeno estival

17 de Novembro 2022

Foi badalado até à exaustão o fecho de maternidades, as transferências de grávidas, as mortes de mães e de bebés, que produziram suculentas manchetes. Poucas vezes se foi ao fundo da questão e se expôs a verdadeira razão e dimensão dos problemas. Artigo de Tânia Russo.

A minha história de enfermeira na Bélgica

17 de Novembro 2022

Ser independente, ter condições de trabalho vantajosas e possibilidade de progressão na carreira; estas foram as razões pelas quais emigrei para a Bélgica. Após nove anos, ainda cá estou, satisfeita. Esta é a minha história. Artigo de Maria Ribeiro.

Os TSDT e a eterna injustiça na saúde

17 de Novembro 2022

O nosso trabalho vale pouco para quem manda. Quem se senta durante o dia em frente ao Excel, não percebe o valor de trabalhar noite dentro a semear hemoculturas, efetuar uma TAC a um doente com AVC ou realizar um ECG numa sala de reanimação. Artigo de Eloísa Gonçalves Macedo

 

O SNS e os TSDT: o que aconteceu?

17 de Novembro 2022

O valor das profissões que a carreira de Técnico Superior de Diagnóstico e Terapêutica abrange é incalculável para a qualidade de vida dos utentes do Serviço Nacional de Saúde. Artigo de Nuno Malafaia.

Ensino médico: da academia à enfermaria

17 de Novembro 2022

Embora nos encontremos num período de inovação e experimentação alargada no ensino médico, onde a voz estudantil parece contar um pouco mais do que há alguns anos, os métodos de avaliação continuam a insistir de modo arcaico no exame de escolha múltipla ou no conjunto de frequências compostas por questões da mesma tipologia. Artigo de Pedro Vilão Silva.

 

Valorização da enfermagem é mais eficiência no SNS

17 de Novembro 2022

A situação global dos Enfermeiros/as é o espelho que reflete o estado da Saúde no nosso país: desinvestida, desmembrada e desmotivada. Artigo de Fernanda Lopes.

 

Desafios para a Gestão do Serviço Nacional de Saúde

17 de Novembro 2022

Os contratos programa devem ser divulgados por todos os profissionais da unidade de saúde para que se sintam envolvidos, para que saibam quais as metas a atingir, quais as estratégias a adoptar e que variáveis- métricas devem ser elencadas para avaliar a qualidade de cuidados prestados. Artigo de Gisela Almeida.

 

Saúde nos Açores, para além do limite

17 de Novembro 2022

Só em maio deste ano, a afluência ao Hospital de Ponta Delgada bateu recordes, com 1.300 pessoas a recorrerem àquela valência em três dias. Artigo de Jessica Pacheco.

O que se passa com os serviços de urgência

4 de Setembro 2022

Não há praticamente nenhum programa de governo para a saúde que não reconheça que há um problema nas urgências. No entanto, aqui estamos, com problemas semelhantes nos serviços de urgência ao longo dos últimos 40 anos. Artigo de Mário André Macedo.