A crise climática é liberal

porJoão Garcia Rodrigues

23 de June 2022 - 21:35
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O poder da indústria fóssil impõe uma nova dinâmica extrativista. Só a mobilização social pode travar a barbárie. O petróleo e gás fóssil extraídos nas novas explorações provocarão a emissão de pelo menos mil milhões de toneladas de CO2 para a atmosfera.

Chamam-lhe “bombas de carbono”. São 195 novos projetos dos gigantes do capitalismo fóssil para o aumento da extração de petróleo e gás, planeados para serem lançados nos próximos sete anos, segundo uma investigação do jornal britânico The Guardian. Perante a perspetiva de obtenção de lucros astronómicos através dos preços exorbitantes dos combustíveis, agora potenciados pela guerra, não há mecanismo de mercado que impeça a ExxonMobil, a Total, a Qatar Energy, a Saudi Aramco, a Gazprom, a Chevron, a Shell, a BP e outras grandes petrolíferas de engordar a sua produção. O poder da indústria fóssil impõe uma nova dinâmica extrativista. Só a mobilização social pode travar a barbárie.

O petróleo e gás fóssil extraídos nas novas explorações provocarão a emissão de pelo menos mil milhões de toneladas de CO2 para a atmosfera, o equivalente a 18 anos de emissões globais ao nível atual, tornando inviável o cumprimento de qualquer meta razoável de redução de emissões de gases com efeito de estufa. Além disso, um terço dos novos projetos depende de técnicas e fontes “não convencionais”, mais arriscadas, como o fraturamento hidráulico e a extração no mar a grandes profundidades, o que aumenta os riscos de explosão e de derramamento. A perspetiva de um planeta habitável não entra nas contas do capitalismo fóssil.

Por cá, os efeitos da crise climática são nefastos. Um estudo recente da Agência Europeia do Ambiente colocou Portugal entre os países europeus com mais mortes prematuras e mais perdas económicas devido a eventos climáticos extremos nos últimos 40 anos. Sem políticas justas de adaptação às alterações climáticas, a tendência é piorar.

Perante o agravamento da crise e a crescente contestação nas ruas protagonizada pelo movimento por justiça climática, o Parlamento aprovou, em 2021, a Lei de Bases do Clima. Apesar das limitações do diploma, a política climática evoluiu. Entre as normas mais importantes consta a proibição de novas concessões de prospeção ou exploração de hidrocarbonetos. É uma vitória dos movimentos pelo clima, de Peniche ao Algarve, que lutaram durante anos contra a tentativa de extração de petróleo e gás promovida pelo governo liberal de Passos Coelho e de Jorge Moreira da Silva. À data, era dirigente da Partex — uma das concessionárias da extração de gás fóssil no Algarve — António Costa Silva, o atual ministro da Economia e do Mar. Em maio deste ano, o governante admitiu a possibilidade de haver furos na costa algarvia se as empresas apresentarem projetos. O convite é insólito por incorrer em ilegalidade, mas é também elucidativo da pulsão extrativista do novo ministério.

A negação da emergência

A votação da Lei de Bases do Clima foi reveladora. Seria razoável admitir a unanimidade das diferentes forças políticas em torno da aprovação do diploma. Afinal, são tempos de crise climática os que vivemos e qualquer avanço é bem-vindo. Se a abstenção do PCP causou surpresa, mais surpreendente foi o voto contra da Iniciativa Liberal. Foi o único partido a fazê-lo. Não se conheceram as razões liberais para a rejeição da lei do clima porque imperou o silêncio: não houve declaração de voto, nem foi apresentada qualquer proposta alternativa pelo partido.

Meses depois, João Cotrim de Figueiredo acabou com as suspeitas de negacionismo que pairavam sobre a IL, esclarecendo, durante um debate eleitoral, que o partido não nega as alterações climáticas, apenas recusa que elas sejam uma emergência. Claro que milhares de cientistas, cujo trabalho informa o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), têm provado, estudo após estudo, relatório após relatório, o contrário. Mas o líder liberal discorda e, no mesmo debate, disparou: “a emergência climática faz parte de uma agenda”. Percebe-se a fuga para a frente. A crise climática agrava-se de ano para ano, revelando o falhanço da receita liberal. As correções das ‘falhas de mercado’ tardam em erradicar a poluição. A tecnologia salvífica nunca mais chega e por isso não salva. As emissões continuam a aumentar. Perante a ineficácia do mercado, a resposta liberal é a desvalorização do problema e a suspeição. Talvez a tática funcione entre prosélitos, mas evidencia desconforto com o tema e dificuldade na proposta.

São disso exemplo algumas das medidas para o clima do programa eleitoral da IL. O partido quer um “SNS verde”, com “alteração gradual da iluminação dos hospitais para LED”; reivindica “rentabilização patrimonial” com as medidas de eficiência energética para proprietários de edifícios; e ambiciona mais postos de carregamento para carros elétricos. O arrojo aumenta quando se fala em ferrovia. A IL propõe que o Estado invista 20 mil milhões de euros num Plano Ferroviário Nacional para aumentar a rede de comboios em 700 quilómetros. Parece ser uma proposta importante para o transporte público e para retirar carros das estradas, reduzir emissões e melhorar a mobilidade no país. Mas depois percebe-se o objetivo: o investimento só se justifica se existir “uma separação entre a componente de infraestrutura versus a exploração, que deverá ser feita por modelos de concessão e em concorrência”, defende a IL. Ou seja, o investimento é público, mas os ganhos são privados; socializam-se os custos e privatizam-se os benefícios. A IL vê no clima e na mobilidade mais uma oportunidade para pôr o Estado a subsidiar o negócio.

Um ano decisivo que não o foi

Em 1988, o cientista James Hansen, então diretor do Instituto da NASA para os Estudos Espaciais, assegurou, perante o Congresso norte-americano, ter “99% de confiança” que a atividade humana estava a aquecer o planeta e que isso levaria a alterações drásticas no clima. Nesse ano, e após o anúncio de Hansen, reuniam-se na Conferência de Toronto sobre a Atmosfera em Mudança centenas de cientistas e representantes de governos que discutiram, pela primeira vez, metas para a redução de emissões de gases com efeito de estufa. No final do ano, as Nações Unidas inauguravam o IPCC, organizando a primeira sessão para aconselhar governos sobre as medidas a tomar. Havia consenso científico sobre a gravidade do problema e os governos ouviam. A ação climática estava prestes a arrancar.

Tudo mudou, pouco depois, quando os EUA abandonaram as negociações internacionais e os restantes governos assinaram acordos não vinculativos assentes em mecanismos de mercado, como o comércio de licenças e a compensação de emissões. A necessidade de regular a indústria fóssil e de planear a transição energética chocou com a explosão do neoliberalismo no mundo. As emissões de CO2 aumentaram 64 por cento desde então.

Texto publicado originalmente na edição de junho de 2022 da Revista Anticapitalista

João Garcia Rodrigues
Sobre o/a autor(a)

João Garcia Rodrigues

Investigador em sistemas socioecológicos. Ativista do Bloco de Esquerda
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