Teletrabalho: é preciso mudar a lei

porJosé Soeiro

15 de March 2021 - 22:04
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O sinal forte que a lei deve dar é estabelecer um “dever de desconexão profissional” por parte dos empregadores, durante o tempo de descanso do trabalhador, para contrariar uma prática generalizada de abuso.

O Governo fez bem em decidir abrir na próxima segunda-feira as creches, o pré-escolar e as escolas do primeiro-ciclo, e providenciar testes generalizados e prioridade de vacinação para docentes e não-docentes. A notícia é muito bem-vinda: trata-se de um compromisso de responsabilidade para com as crianças e de um alívio para milhares de famílias em sobrecarga.

Na realidade, a exaustão de muitas crianças e o sobrepeso das famílias deve-se não apenas à suspensão das aulas presenciais, mas à ideia estapafúrdia de que era possível acumular saudavelmente teletrabalho com o acompanhamento de crianças menores. Para o aumento da agitação, da irritação e do stress nas crianças contribui também a ausência de condições físicas, nomeadamente habitacionais, para que diferentes elementos da família possam desenvolver o seu trabalho num espaço comum. A multiplicação de tarefas da empresa realizadas fora de horas e o facto de os horários trabalhados em casa, em teletrabalho, tenderem a extravasar largamente o período normal definido pela lei também ajudaram ao caos criado na gestão dos tempos. No caso das mulheres, este processo foi particularmente duro. O tempo diurno de cuidado dos filhos teve como contrapartida, frequentemente, a “invasão” do tempo noturno pelo trabalho, para aproveitar o sono das crianças. O lastro das consequências de tudo isto para crianças e adultos é provavelmente mais pesado do que o que, a quente, conseguimos perceber.

A transição para o teletrabalho por imposição da legislação de emergência sanitária operou-se de forma abrupta e improvisada, sem mecanismos de preparação e de negociação coletiva. O processo seria sempre atribulado, é certo, mas hoje as ambivalências desta experiência, as lacunas da lei e as estratégias de abuso já estão suficientemente identificadas e não temos desculpas para não agir sobre o que sabemos que é urgente.

A ideia de que, em teletrabalho, as pessoas têm menos despesas ou de que, em nome de uma suposta (e perversa!) justiça social, quem passou para teletrabalho deve ser punido com uma taxa extra pela sua situação de alegado privilégio, é um enorme equívoco. O teletrabalho, que no segundo semestre de 2020 abrangia cerca de um milhão de portugueses (os dados são do INE), tem inúmeros custos para quem trabalha. Custos pessoais e familiares, custos em termos de saúde física e mental, mas também custos propriamente económicos. Em meados de fevereiro, a Direção-Geral de Energia revelou, por exemplo, que entre março e dezembro de 2020 o consumo de eletricidade aumentou 14,9% no setor doméstico, ao mesmo tempo que desceu 18,3% no setor dos serviços e 5,6% na indústria. E no início deste ano, para alguns contratos, o preço da eletricidade sofreu aumentos até aos 7,2%. Também o consumo de internet aumento cerca de 60%. Quem paga?

Muitas empresas aproveitaram o recurso ao teletrabalho para pouparem custos fixos, imputando-os aos trabalhadores. Despesas com a manutenção dos locais de trabalho e dos equipamentos, custos com eletricidade, água e ligação à internet, que correm por conta do empregador quando o trabalho é feito na empresa, foram transferidos para os trabalhadores sem qualquer compensação. Mesmo depois de o Governo ter dito, apenas em relação à internet, que entendia que esta devia ser paga pelos empregadores, não faltam empresas que continuam a dizer que a sua interpretação da lei não é essa – e por isso não pagam. No estado espanhol, desde setembro, a nova lei do teletrabalho determina que os teletrabalhadores têm de ser compensados pelo acréscimo deste conjunto de despesas. Esta compensação tem, pelo decreto espanhol, de constar obrigatoriamente nos acordos escritos de que depende a passagem ao teletrabalho. Não devíamos garantir o mesmo em Portugal? Se não o fizermos, a imputação destes custos aos trabalhadores significa, na prática, a retirada de uma parte do seu salário – e é isso que está a acontecer.

É certo que, em defesa do teletrabalho, costumam ser invocados os benefícios que este pode ter na redução das despesas de deslocação para a empresa, na possibilidade de um maior equilíbrio territorial e ambiental, ou no aproveitamento melhor do tempo. Mas há anos que o outro lado da moeda está identificado: isolamento, perda dos momentos formais e espontâneos de partilha de experiência e de conhecimento com os colegas, diluição das fronteiras entre a vida profissional e a vida familiar e pessoal, erosão das fronteiras entre tempo para si e tempo para a empresa, com a colonização laboral dos períodos de descanso, violações de direitos de privacidade e do espaço de intimidade. E, não esqueçamos, a desarticulação das formas de representação coletiva e de socialização dos trabalhadores: neste momento, com o pretexto da “proteção de dados”, as empresas estão a negar a sindicatos e a comissões de trabalhadores a possibilidade de contacto com os trabalhadores que estão em casa, o que põe em causa uma condição elementar de democracia laboral.

Mesmo quando a lei parece ser clara, têm surgido problemas. Por exemplo, com a instalação de programas informáticos que violam flagrantemente as normas sobre privacidade, ou empresas de seguros que se recusam a cobrir como acidentes de trabalho aqueles que ocorrem no espaço doméstico, mesmo em período laboral. Tudo isto merece intervenção e, em muitos casos, é a lei que tem de criar um enquadramento mais protetor e adaptado aos tempos que estamos a viver. Mesmo em relação a matérias que se imaginou serem já adquiridos de civilização.

Por exemplo: mais de um século depois da Convenção da Organização Internacional do Trabalho que estabelecia o máximo das 8 horas diárias (na indústria, na altura), quantas pessoas trabalham, por dia, mais do que isso? O teletrabalho acentuou inquestionavelmente a diluição das fronteiras tradicionais entre vida profissional e pessoal, entre o espaço da empresa e o da casa, ao criar o ambiente propício a uma “conexão permanente”, através do qual se abre porta a uma espécie de escravização pela hiperdisponibilidade para responder às solicitações do empregador. A ideia de que, em teletrabalho, é “normal” haver uma “isenção de horário” está de tal modo enraizada que, no artigo do Código que regula a figura da “isenção de horário” (art. 218º), apareça lá, como que não carecendo de outra justificação, a referência ao “teletrabalho”. Ora, um vínculo destes é perigoso e deve ser eliminado. O sinal forte que a lei deve dar é em sentido contrário: estabelecer um “dever de desconexão profissional” por parte dos empregadores, durante o tempo de descanso do trabalhador, para contrariar uma prática generalizada de abuso.

À medida que a pandemia for sendo debelada, é possível que muitos dos que hoje se encontram em teletrabalho retomem um local de trabalho fora de casa. Mas mesmo que o teletrabalho esteja muito longe de ser o “o paradigma do futuro” que alguns procuram defender, ele não vai desparecer. Não nos cabe, pois, ficar apenas à espera que este tempo passe, mas intervir agora para proteger o futuro.


Artigo publicado no Expresso a 12 de março de 2021.

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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