Falta de professores: só um bug ou crash do sistema?

porJoana Mortágua

24 de October 2020 - 12:06
PARTILHAR

Há alunos que não têm professor a determinadas disciplinas logo no início do ano nem vão ter até ao final. Esses alunos serão cada vez mais, sobretudo na região de Lisboa, Alentejo e Algarve.

No início de outubro faltavam 851 professores nas escolas. Esta semana, a zona de Lisboa esgotou a bolsa de professores em 5 disciplinas e o Algarve em 31. O país precisa de discutir o que se passa e debater soluções antes que seja tarde demais, se é que vamos a tempo.

O regime de recrutamento e colocação de professores é complexo e aritmético mas não existe suspenso no ar, intangível. Como todos os outros sistemas, também depende de um programador que faz cálculos e dá comandos, testa falhas e instala firewalls. A nota informativa enviada esta semana às escolas pela Direção-Geral da Administração Escolar reconhecendo “alguns constrangimentos no preenchimento de horários” demonstra que o responsável pelo sistema está a tratar a falta de professores apenas como mais um bug, uma falha ocasional possível de contornar. E é isso que nos deve assustar.

Porque por muito que a máquina precise de afinação, e esta precisa, não vale pena atirar-lhe as culpas para cima. O software está desenhado para resolver a ausência episódica de um ou outro professor, tanto que até hoje fez muitas substituições e nunca crashou, mas nada pode contra a falta massiva de professores no sistema educativo.

Deixemos a informática de lado. Tal como o erro de considerá-lo um constrangimento, o problema é político.

Aqui devo fazer um aviso à navegação: para entender a falta de professores no sistema educativo português é preciso ter paciência para os números. É um exercício chato mas a consequência de não fazer tende para o zero.

Comecemos pelos problemas grandes e vamos depois às afinações possíveis.

Primeiro problema: envelhecimento. Dos 89 925 docentes vinculados em 2019, 51 983 (57,8%) poderão aposentar-se num prazo de 10 anos: 17 830, nos primeiros quatro anos, 24 343 nos quatro anos seguintes e 9810 entre 2029 e 2030. Por áreas, a distribuição é esta: 73% em educação de infância; 80% em Português/História, 67% em Português e Francês e 62% em Matemática e Ciências naturais de 2.º ciclo; 96% em Educação Tecnológica, 86% em Economia e Contabilidade, 71% em Filosofia, 68% em História e 66% em Geografia de 3.º ciclo e secundário. Professores abaixo de 30 anos? é fácil: valor residual2.

Segundo problema: precariedade. Em 2019, 8% dos educadores de infância, 17% dos professores de 1.º ciclo, 16,7% dos professores de 2.º ciclo e 24,4% dos professores de 3.º ciclo e secundário tinham contratos anuais precários3. Este ano, o Ministério da Educação vinculou 872 docentes, 9% em relação aos que tinham sido contratados através de mecanismos de renovação de contrato e contratação inicial do ano anterior, e menos de metade dos vinculados que se reformaram4.

Para os leitores que saltaram dos números diretamente para as conclusões, deixem-me tentar resumir: há alunos que não têm professor a determinadas disciplinas logo no início do ano nem vão ter até ao final. Esses alunos serão cada vez mais, sobretudo na região de Lisboa, Alentejo e Algarve.

Este problema não se resolve sem uma grande reforma do sistema educativo que tenha três eixos: reformar os professores mais antigos para abrir vagas; vincular todos os precários do sistema para garantir que não fogem para outras profissões; dignificar a carreira docente para atrair mais candidatos. Nenhum destes problemas está a ser tratado e a breve notícia de que haveria um programa de pré-reformas para docentes, além de pré-anunciar cortes valentes, não se deixa encontrar no Orçamento 2021.

Passemos às afinações possíveis, ao imediato. A maioria dos horários em falta são horários incompletos, os “párias” do sistema. Alguns dos docentes colocados nesses horários não têm acesso sequer aos descontos completos para a Segurança Social. Pelo menos 800 professores dos que ainda estão em falta recusaram a colocação numa escola porque iriam ganhar entre 555 e 750 euros líquidos para darem entre oito e 14 horas de aulas por semana, provavelmente deslocados do norte para Lisboa/Alentejo/Algarve.

Querem resolver os “constrangimentos”? Comecem por aqui, por estes professores que andam há anos a reclamar justiça. Mas sem ilusões, a médio prazo os números serão tão compreensivos.

Artigo publicado no jornal “I” a 22 de outubro de 2020


Notas:

2 Fonte: CNE

3 Fonte: DGEEC

4 Fonte: FENPROF

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
Termos relacionados: