Quem vive e quem morre

porMiguel Guedes

02 de November 2019 - 23:06
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Vivemos tempos difíceis para a democracia e o momento é de exigência.

Pela primeira vez na nossa história democrática, a extrema-direita sente-se representada no Parlamento e parte da nossa Direita, ao invés de traçar firmemente os seus traços distintivos, prefere incomodar-se com a quantidade de vezes que terá que se levantar para permitir passagem e assento a um deputado. Há sinais de aproximação. A incomodidade é nossa.

É difícil conceber como deputados portugueses eleitos ao Parlamento Europeu conseguem votar negativamente ou abster-se, relativamente a uma matéria humanitária tão pungente quanto uma proposta que permitiria salvar pessoas através da criação de mecanismos europeus de protecção de vidas no Mediterrâneo. Abstenho-me de qualificar o que fica do sentido de voto dos deputados Nuno Melo, Álvaro Amaro e José Manuel Fernandes. No entanto, face às tentativas de desculpabilização, há algo mais a salientar, para além da extraordinária capacidade em conseguirem dormir descansados.

A proposta da Comissão tinha o apoio dos grupos parlamentares da Esquerda, Socialistas e Democratas, Verdes, Liberais, alguns dos não inscritos e delegações autónomas dos outros grupos. A denominada "proposta socialista" nada tem de socialista senão pelo relator. A proposta rejeitada é, nada mais nada menos, a proposta da Comissão de Especialidade, ou seja, a verdadeira proposta do Parlamento Europeu (após intenso debate e várias emendas terem ido a votos). Porém, sempre que há propostas conjuntas (dos grupos parlamentares unidos ou de comissões de especialidade), nada impede que grupos parlamentares isolados possam apresentar as suas propostas. Condenadas ao insucesso, uma espécie de marca-passo quando há propostas que vêm da Comissão de Especialidade. Neste caso, houve três: uma da extrema-direita, outra dos conservadores e reformistas, outra do PPE.

A proposta que os três deputados não votaram favoravelmente - a que foi enviada a plenário pela Comissão de Especialidade - era a única que teria alguma hipótese de passar, porque as restantes só seriam votadas favoravelmente pelos grupos parlamentares que as apresentam. É este o procedimento regular de todas as propostas votadas em Plenário. O CDS de Nuno Melo soube o que fez. A delegação do PSD reuniu antes da votação, como referiu Cláudia Monteiro de Aguiar ao "Expresso", para decidir como votariam a resolução conjunta e não como votariam a do PPE (que só obteria o voto do PPE, naturalmente). Tendo Paulo Rangel apoiado o voto favorável à proposta da Comissão (mas dando liberdade de voto), Álvaro Amaro e José Manuel Fernandes sabiam o que faziam. O PPE (de que fazem parte PSD e CDS) decidiu por conta e risco afastar-se da proposta comum de consenso e fazer o mesmo que fez a extrema-direita: apresentar a sua própria resolução para ser chumbada.

A proposta foi chumbada por dois votos, 290 contra 288, para regozijo bem sonoro da extrema-direita europeia. E foi assim, com esta candura, que deputados portugueses ajudaram a chumbar a única proposta que tinha hipóteses de ser bem-sucedida para salvar vidas humanas no Mediterrâneo.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 1 de novembro de 2019

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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