O preconceito antifeminista também anda pela esquerda?

porJoana Mortágua

14 de October 2018 - 10:05
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Negar a autonomia da luta das mulheres é negar o feminismo, seja qual for o álibi para o fazer. O campo conservador naturaliza a subalternização das mulheres em nome da família, da moral ou da igreja.

Nos últimos tempos, um pouco por todo o mundo, as mulheres têm sido protagonistas de mobilizações ruidosas contra o retrocesso social e a galopada de governos de extrema-direita e de candidatos ultraconservadores.

É isso que tem unido as manifestações feministas contra Trump, pelo direito ao aborto na Polónia e na Argentina, a greve de mulheres no Estado espanhol, o #EleNão contra Bolsonaro no Brasil ou contra decisões machistas dos tribunais em Portugal. É uma resposta em nome próprio à perceção de que o mundo se está a tornar um lugar mais perigoso para as mulheres.

A reação não se fez esperar. À direita não faltaram os ataques costumeiros de quem sempre negou a agenda dos direitos das mulheres. Mas também houve mulheres, supostamente em nome do progresso, a fazer coro com a propaganda antifeminista.

O texto publicado por Raquel Varela e Teresa Rita Lopes esta semana no “Público” é exemplo disso. Reconhecem a discriminação histórica das mulheres e saúdam as suas mobilizações, ma non troppo. Há causas sérias, as que são deles e delas, como salário. Tudo o resto é classificado como “feminismo desenfreado”.

Num diálogo barroco, dizem tudo e o seu contrário. Recordam as mulheres assassinadas, mas não se reconhecem na “bandeirola” feminista. A violação é comparável ao homicídio, porque destrói vidas, mas pela mesma razão são ridículas as queixas por esse crime. Não têm problemas em falar das denúncias do #MeToo como entrave à sedução, “um puritanismo norte-americano”. Não hesitam em tecer considerações de caráter sobre Kathryn Mayorga, sublinhando que isso “naturalmente não autoriza violação, se existiu”, embora a condenação pública motivada pela sua denúncia surja por “pré-conceitos vigentes”. A reivindicação das mulheres por lugares de chefia é “deprimente”, uma cedência ao capitalismo.

A ideia que está na base do diálogo entre TRL e RV é que há um “novo feminismo” que é nocivo, que substituiu a luta de classes pela guerra de sexos ao centrar-se em reivindicações próprias das mulheres.

Mas negar a autonomia da luta das mulheres é negar o feminismo, seja qual for o álibi para o fazer. O campo conservador naturaliza a subalternização das mulheres em nome da família, da moral ou da igreja. À esquerda, apesar da igualdade entre homens e mulheres e de várias causas feministas terem feito historicamente parte da agenda do movimento socialista e comunista, nunca faltou quem usasse a luta de classes como pretexto para negar o feminismo.

Contra esta ideia, amplos movimentos de esquerda aprenderam pelo mundo fora, e por isso são amplos, que as lutas feministas se cruzam com outras lutas sociais mas gozam de autonomia, que não se reduz tudo à mão dada entre o operário e a camponesa. As mulheres não podem ser reduzidas a uma essência, são de várias classes, grupos étnicos, orientações sexuais. E daí surgem correntes feministas que procuram representar todas as desigualdades e explorações.

Nada disto é novidade. Como também sabemos que a política não é mais feminista por haver mais mulheres no poder, nem o capitalismo fica menos selvagem por haver quotas de género nos cargos de chefia. A representação das mulheres é uma questão de igualdade e, portanto, de democracia. Não ganhamos todas com o avanço da democracia?

As mulheres lutam em causa própria quando combatem a discriminação que partilham pela sua condição de género, independentemente de todas as outras. A subalternização das mulheres pode ter muitas camadas, mas expressa-se com brutalidade na violência de género, seja em feminicídios, violações ou assédio sexual.

Raquel Varela e Teresa Rita Lopes preferiram não ver nada disso, preferiram atacar o feminismo. Tiros nos pés da emancipação das mulheres e da luta pela igualdade.

Artigo publicado no jornal “I” em 11 de outubro de 2018

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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