O açougue PANóptico

porMaria Manuel Rola

28 de March 2018 - 10:09
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É curioso, para além de errado, que recentemente o PAN tenha avançado com um projeto legislativo que prevê a instalação de circuitos fechados de vídeo nos matadouros nacionais. Para o Bloco de Esquerda, esta é uma proposta profundamente errada.

Ultimamente temos discutido a necessidade da extensão da lei dos maus tratos a animais aos animais de produção e temos avançado no sentido de alertar que a violência, até há pouco aceite, é agora condenada pelos avanços sociais e da ciência. As práticas que tínhamos há poucas décadas não são mais passíveis de serem mantidas, e esta discussão envolve todos os animais. Se existem produções pecuárias e matadouros para a occisão ou abate, estas têm também de garantir bem–estar durante a vida e durante a morte. Para isto existem diversos métodos e técnicas, longamente estudados e ainda não aplicados. Umas vezes por falta de vontade política; na maior parte por pressão de lóbis da indústria alimentar. E isto porque falamos de um negócio, e muito lucrativo. Quando lidamos com propostas para avanços no tratamento dos animais, não podemos ceder nas condições laborais de quem trabalha com eles e não decide sobre erros e acertos.

Ainda na semana que passou, num Encontro Regional do Bloco de Esquerda abordámos as condições de bem-estar animal (ou falta deste), laborais e de fiscalização na produção e transporte de animais, abrangendo também a discussão sobre os matadouros. Concluímos que nenhuma destas é garantida e que muito trabalho há a fazer para que se garanta a legislação em todas as vertentes. Os fiscalizadores são poucos para fazer face à quantidade de animais que são abatidos, os trabalhadores são também poucos para a quantidade de animais com que diariamente lidam (um interveniente referiu que só numa manhã se teria procedido ao abate de 800 suínos) e os animais são tratados “a pontapé, bastonada e choques”. Temos sim um problema de cumprimento legal nestes espaços, de cumprimento de condições de fiscalização públicas, de garantia de direitos laborais e de recursos e investimento em bem-estar animal e saúde pública.

E isto não é novo, quando discutimos os espaços onde assistimos a situações de maus tratos animais, frequentemente encontramos questões de pobreza, assédio laboral, exploração e falta de cumprimento de regras laborais básicas. Mas também de saúde pública e problemas ambientais. Não será coincidência que as suiniculturas em Leiria sejam das maiores poluidoras dos recursos hídricos daquela região, ou que muitas contaminações por bactérias multirresistentes estejam associadas a produções industriais de carne. Os cientistas muitas vezes têm focado os antibióticos inseridos nas águas e solos por estas indústrias milionárias. Tudo isto tem que ter resposta e esta será tanto melhor quanto se compreenda o caráter da sociedade capitalista que impulsiona essas indústrias e o tratamento global de desprezo e coação contra qualquer empecilho ao lucro, seja o ambiente, os trabalhadores ou os animais.

É por isto curioso, para além de errado, que recentemente o PAN, partido Pessoas Animais e Natureza, tenha avançado com um projeto legislativo que prevê a instalação de circuitos fechados de vídeo nos matadouros nacionais. Para o Bloco de Esquerda, esta é uma proposta profundamente errada. Não só não garante o bem-estar animal - está provado que as câmaras de vigilância não inibem os crimes, nem protegem as vítimas - como pressiona e oprime os mais frágeis da relação laboral e entrega o açougue à vontade do açougueiro que, com a sua câmara em riste, manda e desmanda no matadouro.

Quando poderia ter aproveitado este momento para propor mais fiscalização, contratação de pessoas, investimento para que os matadouros se atualizem, canais para que os trabalhadores possam denunciar as condições em que são obrigados a tratar os animais e o que se passa nos matadouros, ou para que os ativistas e associações possam ter acesso ao que se passa no interior de um matadouro, o PAN coloca a discussão do bem-estar animal isolada da sociedade em que se insere e abre portas à resposta securitária e de vigilância constante a todas as esferas da nossa vida. E isto sem qualquer garantia de transparência ou abertura dos processos: a câmara será controlada por quem já detém o poder e é no mínimo ingénuo pensar que essa relação mudará num circuito fechado de vídeo. É um erro político e funciona dentro do mesmo sistema de opressão das pessoas, dos animais e da natureza que procuramos combater. Trabalha pela lógica da intimidação e de vigilância total - o modelo panóptico - e não pela alteração sistémica que permite o envolvimento e sensibilização de todos. Garantir o bem-estar animal é garantir o investimento público para a prática mais avançada; a fiscalização pública apertada e consoante as normas europeias; a possibilidade de denúncia por parte dos trabalhadores das suas condições e das condições em que se tratam os animais.

Esta medida ameaça direitos de trabalhadores e não garante os de animais, dá instrumentos para desresponsabilizar quem deveria garantir as normas de bem-estar animal nos matadouros, sejam entidades públicas ou gestões privadas. Só se garantirá melhor bem-estar animal se os responsáveis pelas indústrias alimentares forem fiscalizados de forma pública e coerente.

Maria Manuel Rola
Sobre o/a autor(a)

Maria Manuel Rola

Designer gráfica e ativista contra a precariedade. Dirigente nacional do Bloco de Esquerda
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