A coragem do bom senso

porJosé Manuel Pureza

12 de July 2014 - 10:03
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A reestruturação da dívida, sem ser uma panaceia, é um passo essencial para a retoma do desenvolvimento e para a abertura de caminhos de mobilização nacional.

A responsabilidade política exige que se reconheça, quanto antes, algo de essencial: mesmo que Portugal cumprisse, durante os próximos vinte anos, todas as exigências da troika, a dependência do País relativamente aos credores não se alteraria. Não vou cuidar sequer de entrar na polémica sobre quem é o principal responsável por esta espiral de dependência. Não tanto porque é uma polémica inútil e marcada pelas pré--compreensões ideológicas de cada um, mas sobretudo porque a responsabilidade política é também dar prioridade a uma solução e não à eternização do debate sobre quem fez o quê. É em nome dessa prioridade de uma solução que importa pôr no centro da reflexão nacional um facto muito concreto: até 2017, Portugal terá de amortizar dívida em cerca de cem mil milhões de euros e melhorar o saldo orçamental em cerca de sete mil milhões de euros. E é em nome da responsabilidade política que se impõe dizer com clareza: isso não será possível.

O manifesto dos 74 havia posto em evidência que a reestruturação da dívida portuguesa é acima de tudo uma questão de bom senso. O larguíssimo consenso que ele suscitou mostrou à evidência que só mesmo o radicalismo liberal - perfilhado pelo Governo e pelo seu universo próximo em que se situam o Presidente da República e o governador do Banco de Portugal - teima em não reconhecer os factos. A sua teimosia ideológica impõe-lhe um estado de negação. Tudo bem - dir-se-ia - não fosse a trágica consequência dessa cegueira abater-se sobre todo o País.

Agora, quatro economistas com pergaminhos académicos inegáveis vêm trazer ao debate um programa sustentável para a reestruturação da dívida portuguesa. Definitivamente, o discurso estafado do "pois, pá, criticar é fácil, mas qual é a alternativa?" fica sem chão. E esse é o primeiro grande mérito deste exercício. Ele vem mostrar não só que é a política que tem sido seguida que não é alternativa para o que gera endividamento da nossa economia mas também que a recusa da reestruturação da dívida pelo campo do Governo é um remake do "orgulhosamente sós" de má memória.

O segundo mérito do relatório ontem divulgado é o de fazer as contas. Doravante, discutir a reestruturação da dívida portuguesa passar-se-á a fazer num patamar diferente do das declarações de princípios. Agora é o tempo de discutir modalidades, instrumentos e objetivos intermédios e finais. O estudo apresentado assume como objetivo atingir uma redução de cerca de 149 mil milhões de euros na dívida pública e de 100,7 mil milhões de euros na dívida dos bancos portugueses. Para o efeito, os autores optam por uma proposta de negociação com os credores apontada à alteração de prazos e de juros que propicie uma amortização significativa do stock da dívida pública e por um processo de resolução bancária especial que, garantindo a solvabilidade e os rácios de capital dos bancos, conduza a uma redução da sua dívida estimada em cerca de 30% do PIB.

Mas o mérito essencial é provocar uma discussão política irrecusável: o que é preciso fazer para aproximar Portugal da autossustentabilidade financeira? É na resposta a esta pergunta fundamental que a austeridade mostrou ser um rotundo fracasso. A reestruturação da dívida, sem ser uma panaceia, é um passo essencial para a retoma do desenvolvimento e para a abertura de caminhos de mobilização nacional. Exige aos governantes a coragem de enfrentar as autoridades da União Europeia e o poder fáctico do sistema financeiro. Exige, por isso, uma viragem radical na política portuguesa.

Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” em 11 de julho de 2014

José Manuel Pureza
Sobre o/a autor(a)

José Manuel Pureza

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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