E o banco público, para quê?!

porMariana Mortágua

16 de October 2012 - 1:09
PARTILHAR

Vender a Caixa é perder um poderoso instrumento de política económica. O único capaz de criar e injetar moeda na economia em períodos de crise, como o que vivemos, e de direcioná-la para o investimento produtivo e a criação de emprego.

Não é a primeira vez que ouvimos falar da hipótese de privatizar a Caixa Geral de Depósitos (CGD). Ciclicamente o assunto é trazido a público, fazendo-se normalmente acompanhar de um vasto conjunto de notícias que, de forma mais ou menos descarada, alertam para a fraca eficiência do banco público. Paradoxalmente, a tão criticada propriedade pública não impede a Caixa de ser o mais sólido banco português (dada a sua dimensão) e também por isso o alvo do interesse privado.

Apesar do fanatismo neoliberal deste Governo, não deixa de ser interessante que a ideia de privatizar a CGD, até agora formulada com certa timidez, ganhe protagonismo e conteúdo neste preciso momento.

É sabido que, na história, ideologia, teoria e prática movem-se a compassos diferentes, raramente de forma coordenada ou previsível. Se assim não fosse, todo o edifício teórico-ideológico do capitalismo neoliberal teria ruído com a crise financeira e a Grande Recessão que se lhe seguiu. Ainda assim, há consensos que se quebraram e mitos que perderam todo o seu encanto, nomeadamente o da liberalização do sector financeiro.

Em 2010, a revista The Economist, que pode ser acusada de tudo, menos de fazer favores à esquerda, tecia elogios à expansão da propriedade pública na banca, enquanto declarava que a "atitude em relação aos bancos estatais mudou para sempre".

Não é de estranhar. A crise deixou bem claro que 1) a gestão privada do sector financeiro não é mais eficiente ou responsável, pelo contrário; e 2) quando a má gestão privada se torna fatal, é ao sector público que cabe a nacionalização das perdas e a gestão dos destroços bancários. Assim foi nos EUA, na Islândia ou na Irlanda, e assim foi em Portugal. Já o era antes da crise.

Se mais argumentos não houvesse, bastaria dizer que a banca privada em Portugal pariu o escândalo do BPN. Até poderia ser a exceção, mas isso seria se não existisse também a falência do BPP, os escandalosos offshoresdo BCP ou os clientes duvidosos do BES, entre eles o General Pinochet.

Se mais argumentos não houvesse, a experiência da banca portuguesa bastaria para concluir que entregar mais um banco aos privados é uma infeliz ideia. Mas até os há.

Em primeiro lugar, e acima de tudo, vender a Caixa é perder um poderoso instrumento de política económica. O único capaz de criar e injetar moeda na economia em períodos de crise, como o que vivemos, e de direcioná-la para o investimento produtivo e a criação de emprego. A CGD foi o único banco a aumentar os níveis de crédito nos primeiros anos da crise, quando todos os outros cortaram o financiamento da economia. Isto acontece porque, tal como acontece em muitas outras áreas - saúde ou educação - a estrutura de incentivos de um banco público não está orientada unicamente para o lucro, mas para o que pode ser considerado "socialmente desejável". Não é de esperar que uma entidade privada financie um projeto pouco lucrativo, independentemente dos méritos que este possa ter em termos de criação de emprego, coesão social, territorial, etc. Estes são fatores que, ao contrário da especulação financeira de curto prazo, não integram a sua estrutura de incentivos.

Em segundo lugar, porque a existência de bancos que obedecem a critérios e objetivos politicamente determinados, e não apenas à "racionalidade" dos mercados, pode fazer a diferença em períodos de instabilidade financeira. A crise de 2007 não teria tido o mesmo impacto na "economia real" se os bancos não tivessem parado de emprestar uns aos outros nos mercados interbancários. A crise de liquidez dos mercados, mais do que um problema de falta de dinheiro, é um problema de confiança, de coordenação.

Em terceiro lugar, porque a Caixa entrega ao Estado importantes dividendos. Quando a alternativa é a venda ao desbarato em altura de aperto, este é um argumento importante. Parte das causas do endividamento português encontram-se nas privatizações ruinosas que foram sendo feitas pelos Governos PS e PSD ao longo dos anos.

Em quarto lugar, porque a venda de um banco com a dimensão da Caixa coloca graves problemas ao nível da concentração do mercado bancário em Portugal. A estrutura da economia portuguesa leva a que assim seja. A não ser que seja entregue a estrangeiros, irá certamente reforçar o peso dos bancos privados já existentes. Nenhuma das opções é benéfica, já que está estudado e provado que os bancos não nacionais têm "estruturas de incentivos" menos permeáveis aos interesses do país onde se instalam.

Em quinto e último lugar porque a propriedade pública ainda é a forma mais democrática de controlar o sistema bancário. Àquilo que é público é possível exigir satisfações e transparência, mesmo que com deficiências. O mesmo não se pode dizer do sector privado. É verdade que a Caixa, tal como qualquer outro organismo público, está sujeita a pressões partidárias que pouco têm a ver com o interesse do país, mas essa realidade não vai mudar ou tornar-se menos frequente com a sua privatização. O BPN era privado e nem por isso deixou de ser o braço financeiro de uma elite do PSD, e o mesmo podemos afirmar em relação a muitas outras empresas privadas.

Acrescentar, por fim, que a percentagem da CGD sujeita a privatização é irrelevante neste contexto. A privatização parcial não anula nenhum dos argumentos acima mencionados, e acrescenta dois: 1) esquizofrenia na forma como a Caixa é gerida, para quem e com que objetivos; 2) se há invenção que consegue ser tão má ou pior que a privatização é a da parceria público-privado.

A Caixa Geral de Depósitos é e deve continuar a ser um banco público. A forma como este instrumento pode ou não ser utilizado depende, obviamente, de escolhas políticas. Mas isso não invalida em nada as razões da sua existência. Se há lição que é preciso tirar desta crise é que não existe democracia completa sem o controlo social do sistema financeiro.

Mariana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Mariana Mortágua

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
Termos relacionados: