Aceite-se – eu aceito – o princípio de que as minorias nacionais dentro de Estados assimetricamente multiétnicos têm o direito à autodeterminação. Por exemplo, a secessão de croatas e kosovares em relação à Jugoslávia, a dos escoceses no Reino Unido, a dos georgianos na União Soviética, etc., etc. Surgem então três perguntas incómodas para os liberais ocidentais.
Primeira questão incómoda: Uma vez que Croácia, Kosovo, Escócia e Geórgia conseguiram, que princípio permite negar o mesmo direito aos sérvios de Krajina, aos sérvios de Mitrovica, aos habitantes das ilhas Shetland e aos abecazes - o direito de instituírem, se assim o desejarem, os seus próprios Estados nacionais nas zonas em que constituem uma clara maioria, e somar esses Estados à lista dos novos Estados nacionais independentes?
Segunda questão incómoda: Que princípio permite aos liberais ocidentais negar o direito da Chechénia à independência da Rússia, ao mesmo tempo que defendem sem reservas o direito dos georgianos ou dos ucranianos à autodeterminação?
Terceira questão incómoda: Com que princípio se justifica que o Ocidente aceite totalmente a demolição de Grozny –a capital da Chechénia—, para não falar das dezenas de milhares de civis que ali morreram, mas responda ferozmente, ameace com sanções globais e agite o fantasma de um grande conflito reminiscente da Guerra Fria por conta da (até agora) implantação sem derramamento de sangue das tropas russas (camufladas) na Crimeia?
Coloco estas três questões, não porque ponha em dúvida a opinião de que o senhor Putin é um déspota perigoso. Não tenho a menor dúvida disso. Tenho honra em ter ficado em minoria numa reunião da direção da minha Faculdade em 2003, em que votei contra a concessão de um doutoramento honoris causa ao senhor Putin: tirei à Universidade de Atenas a oportunidade de dizer que o tinha concedido por unanimidade, o que atraiu sobre mim a ira de muitos colegas a quem o ministro grego dos Negócios Estrangeiros tinha “pedido” cortesmente que se honrasse assim o senhor Putin durante a sua visita a Atenas.
As minhas três perguntas incómodas têm dois propósitos. Recordam aos leitores a atitude do Ocidente, carente de qualquer princípio, perante as lutas e as tragédias de outros povos. E explica, em parte, por que esse comportamento sem princípios, por parte dos pretendidos campeões dos princípios democráticos, leva não só à degradação desses mesmos princípios, mas também ao reforço do poder e da influência dos Putins do mundo.
Europa e Ucrânia
Os ucranianos travaram árduas batalhas contra as forças de segurança na praça principal de Kiev para protestar contra a decisão do antigo presidente Ianukovich de desistir de um acordo de associação com a União Europeia. Porquê? Será que estão cegos e não veem as incongruências da União Europeia?
Não; não estão cegos. Os ucranianos enfrentam um tipo de problemas diferentes dos problemas com que lidam os europeus. Por muitas e duras críticas que nós possamos – com fundamento — fazer a Bruxelas, ao BCE, etc., a verdade é que os ucranianos têm outras prioridades. Por exemplo, a de se livrarem de umas forças de segurança que não respeitam os seus direitos ao ponto de torturarem e assassinarem; ou o direito de poderem viajar livremente; ou o de poderem viver num país em que os tribunais de justiça não estejam completamente à mercê da mesma máfia que impera no aparelho estatal. Para eles, o facto da democracia se encontrar em grave retrocesso na zona euro significa pouco, e para eles também pouco importa que os princípios da Europa se tornem cada vez mais num arrazoado inútil: aos olhos de muitos ucranianos, a União Europeia, por acelerada que seja a sua queda no abismo da ilegitimidade democrática, continua a parecer o paraíso.
Dito isto, a maior tragédia dos ucranianos é que as suas melhores esperanças estão assentes em ombros fracos: a União Europeia!
“Política externa europeia”: basta pronunciar estas três palavras juntas para provocar a hilaridade.
Não há tal coisa, essa é a verdade. Até o eixo franco-alemão se desfez em relação à Líbia, e muito menos podemos falar da ambiciosa ideia de uma política externa comum para a União Europeia, que pudesse atuar como um baluarte útil para a Ucrânia.
Quanto à Líbia, apesar de ser de crucial importância para os líbios, tinha uma relevância mínima para a segurança europeia, a Ucrânia é crucial, e a Europa deveria atuar com superlativa diligência. O que mais me inquieta é que a gravidade da crise ucraniana é inversamente proporcional à competência da Europa em matéria de política externa. Bruxelas estará muito entusiasmada com a expansão da sua “autoridade” para o Leste, mas está a entrar em território perigoso pessimamente equipada para lidar com as consequências.
Os EUA, o FMI, a Alemanha e a Ucrânia
A Ucrânia é – sempre foi — um terreno de batalha entre o neofeudalismo industrial da Rússia, as ambições do Departamento de Estado norte-americano e as políticas neo-Lebensraum1 da Alemanha. Vários “eurasiólogos” veem a crise em Kiev como uma grande oportunidade para promover um programa de confrontação plena com a Rússia, um programa reminiscente da estratégia anti-soviética concebida nos anos 70 por Z. Brzezinski. Veem a Ucrânia – importa ter em conta — como uma excelente desculpa para torpedear o papel dos EUA na normalização das relações com o Irão e na minimização dos custos humanos na Síria.
Ao mesmo tempo, o FMI está impaciente por entrar lá, pela parte mais vulnerável da Rússia, e impor outro “programa-estrutural-de ajustamento-e-estabilização”, o que poria sob a sua tutela toda essa zona da antiga União Soviética. A Alemanha tem a sua própria agenda, que aponta em duas direções ao mesmo tempo: assegurar, como parte da sua estratégia neo-Lebensraum, tantas zonas da antiga União Soviética quanto seja possível para a expansão para o Leste do seu espaço de mercado e industrial; e ao mesmo tempo, preservar o seu acesso privilegiado aos fornecimentos de gás da Gazprom.
Quanto à Casa Branca, é indubitável que o presidente Obama e o secretário de Estado Kerry entendem perfeitamente os limites do poder ocidental e o risco de uma atuação do tipo “falcões” nos acontecimentos da Ucrânia puder desbaratar as suas iniciativas na Síria e no Irão, num momento em que o Iraque está em plena desestabilização.
Epílogo: a União Europeia deveria deixar de imiscuir-se nos assuntos da Ucrânia
Neste contexto geopolítico, as ambições de Bruxelas deveriam cessar. A Comissão Europeia está desnorteada em relação ao desenvolvimento dos acontecimentos na Ucrânia. Quanto menos se intrometer, melhor para todos. Na realidade, os apparatchiki da UE parecem os últimos imperadores romanos, que estupidamente pensavam que o alargamento das fronteiras imperiais era tudo o que importava, quando na realidade era o próprio centro do Império que estava podre.
Artigo de Yanis Varoufakis*, publicado em yanisvaroufakis.eu a 9 de março de 2014. Tradução para espanhol por Mínima Estrella para sinpermiso.info e para português por Carlos Santos para esquerda.net
1 “Espaço vital”. Lebensraum foi um importante componente da ideologia nazi. (consultar: en.wikipedia.org/wiki/Lebensraum)
* Yanis Varoufakis é um economista greco-australiano de reputação científica internacional. É professor de política económica na Universidade de Atenas e conselheiro do programa económico do Syriza da Grécia. Atualmente é professor da Universidade de Texas, EUA. O seu último livro, O Minotauro Global, é para muitos críticos a melhor explicação teórico-económica da evolução do capitalismo nas últimas seis décadas.