Ensino médico: da academia à enfermaria

Vivenciamos tempos interessantes no mundo do ensino médico. Currículos brotam da terra como flores com nomenclaturas estrangeiras, estágios médicos e rácios tutor-estudante são ardentemente discutidos pelos candidatos às diversas escolas do país, metodologias híbridas e inovadoras de ensino são adotadas por alguns docentes que aproveitaram a boleia da desmaterialização do ensino para operar a sua própria revoluçãozinha pedagógica.

A geração que entra agora para as faculdades médicas tem exigências que antes não existiam. Facilidade de acesso a materiais de ensino, disponibilização adequada de materiais bibliográficos, articulação do horário de ensino teórico com o horário de ensino prático, equilíbrio entre a diversidade e a profundidade nos estágios clínicos e flexibilidade dos corpos docentes para responder a feedback construtivo estudantil - são questões que não se interpunham nas épocas em que as direções das faculdades nem sequer reconheciam as associações de estudantes.

Se continuamos muito longe de uma participação democrática dos e das estudantes na governação das faculdades médicas, com números miseráveis de alunos nos conselhos de faculdade e universidade, sabemos que também existem docentes que têm, individualmente e nas suas cadeiras, tentado fazer a diferença pela positiva, experimentando novas metodologias de ensino, procurando otimizar o rendimento com materiais e métodos de simulação e mais oportunidades de contactos práticos com situações do quotidiano da prática médica. Com efeito, estamos, a meu ver, num período de verdadeira transição entre dois métodos de ensino muito característicos, ecoando um pouco a transição epistémica da medicina centrada na doença para a medicina centrada no paciente.

O primeiro modelo, mais centrado no ensino expositivo-teórico, foca-se na transmissão vertical, através de aulas teóricas ou teórico-práticas, de conhecimentos por um docente a um conjunto alargado de alunos. É o mais económico na sua exequibilidade e, na falta de tecnologias de informação e comunicação que permitam armazenar esta informação, mesmo personalizada ao docente, para consulta livre a posteriori, foi o mais utilizado na história da academia. Anfiteatro cheio, o Professor Doutor expõe a temática da aula, dúvidas no final (algumas variações, como é natural!). A transmissão de conhecimentos “apenas” exige do estudante o compromisso de estar presente, com atenção e capacidade de interiorizar o que lhe é dito, ponto crucial.

O segundo modelo, mais centrado no ensino aplicativo-prático, foca-se em metodologias tendencialmente mais horizontais de ensino, empregando técnicas de ensino invertido – estudantes preparam os conteúdos a abordar e resolvem problemas entre si, docentes facilitam a discussão e a aprendizagem, esclarecem questões – e de ensino dialético, estimulando um diálogo informado entre um docente e um grupo de alunos sobre uma determinada temática, balizado pelos objetivos da discussão, modelo mais próximo do geralmente proposto para reuniões clínicas e outros tipos de jornadas de discussão em contexto da prática clínica. A transmissão de conhecimentos exige estudo e preparação prévia, bem como docentes com suficiente preparação para esclarecer diversas dúvidas e preparar atividades mais complexas que meras aulas expositivas.

Neste momento, a meu ver, o ensino médico tenta encontrar um equilíbrio entre estas temáticas. A pandemia e a consequente desmaterialização de aulas obrigou a adaptações que foram muito bem-vindas para a comunidade estudantil, como a gravação prévia de aulas para acesso livre e a disponibilização online mais generalizada de materiais de estudo e guias de estudo. Contudo, nem sempre isto significou menos trabalho ou menos dispêndio de tempo para o estudo – afinal, conhecer, interiorizar e aprender são processos necessariamente prolongados e que exigem um investimento intelectual significativo da parte do aprendiz –, pese embora o feedback maioritariamente positivo dos alunos a estas medidas.

Bem entendido, o problema não reside (exclusivamente) no método escolhido para lecionar aulas – os conteúdos programáticos são semelhantes e praticamente transversais a todas as escolas médicas de Portugal e, como tal, a uma pletora de métodos de ensino –, ou nos programas per se, mas sim, em parte, nos métodos de avaliação dos conhecimentos.

Embora nos encontremos num período de inovação e experimentação alargada no ensino médico, onde a voz estudantil parece contar um pouco mais do que há alguns anos, os métodos de avaliação continuam a insistir de modo arcaico no exame de escolha múltipla ou no conjunto de frequências compostas por questões da mesma tipologia.

Compreendo: para facilidade e automatização de correção, é muito mais simples e exequível a realização de exames de escolha múltipla. Para turmas semestrais cada vez maiores (muitas vezes sem grande esperança de uma formação e carreira médicas dignificadas), os métodos que permitem poupança de tempo são frequentemente os mais adequados. Há mais justiça na avaliação estandardizada que na avaliação oral, argumentam os seus defensores, por menor dependência dos vieses do avaliador e garantias de que as perguntas têm o mesmo critério para todos os examinandos.

No entanto, estas avaliações tendem para a arbitrariedade e para a falta de critério quando não são bem aplicadas e constituem grande parte, se não a totalidade, das classificações das unidades curriculares. A aplicação de um exame de escolha múltipla exige, em nome da justeza de critério, uma discriminação clara e prévia da totalidade dos objetivos de aprendizagem em teste, garantias de qualidade na elaboração de perguntas e uma correspondência entre o tempo disponibilizado e o número de perguntas ponderado à dificuldade relativa de cada uma. Há métodos claros de elaboração deste tipo de exames – os redatores da Prova Nacional de Acesso, um exame de escolha múltipla que foi recebido positivamente pela comunidade estudantil médica portuguesa pelo seu foco no raciocínio clínico e maior correlação com a prática real quando comparado com o antigo “Harrison” (Prova Nacional de Seriação), recebem formações dedicadas ao assunto –, mas nem todos os docentes são formados ou treinados na elaboração destas questões, levando a frequentes erros na formulação de questões, perguntas não relacionadas com conteúdos programáticos ou frustrantes subestimações do tempo necessário para a realização de exames.

Assim, alguns docentes optam por outros métodos de avaliação, de entre os quais se destacam as avaliações escritas e as avaliações orais, estas últimas o “terror” dos alunos que não estão habituados a realizá-las. Sim, há um maior grau de arbitrariedade na interpretação de respostas e atribuição de classificações. A meu ver, todavia, também existe uma maior naturalidade na avaliação com estes métodos, permitindo que os docentes avaliem o grau de domínio e familiaridade dos estudantes com um tema de forma mais direta.

Com efeito, a atribuição de classificações entre 0 e 20 para efeitos de seriação, atribuição de bolsas, entre outros aspetos do foro jurídico e administrativo é uma imposição legal. Este facto condiciona a capacidade de aferição de conhecimentos até certo ponto. Se uma classificação de 10 (ou 9,5, dependendo da cadeira em questão) condiciona a conclusão satisfatória da cadeira, para todos os efeitos práticos um aluno de 10 sabe tanto como um aluno de 18. Há muitas cadeiras para as quais estas diferenças são francamente irrelevantes se os critérios forem bem construídos, a conclusão satisfatória de conteúdos esteja ao nível do 10 e os conteúdos em si não forem críticos às melhores práticas clínicas (toda outra questão!). Então, nesses casos, para que serve a distinção? Para premiar quem sabe melhor, diriam os defensores deste sistema.

Em aplicações reais, de que serve “saber melhor” conhecimentos generalistas? Os estudantes de Medicina podem ter mais simpatia por uma ou outra área do conhecimento, mas o curso fundamentalmente forma médicos competentes, capazes de raciocínio clínico e prontos para ingressar no Internato de Formação Geral e realizar a Prova Nacional de Acesso com sucesso. Pode não ser a intenção explícita, mas a conotação da formação médica, mais evidente nos anos clínicos, é a de que o papel da faculdade é iniciar o estudante num percurso prolongado de aprendizagem e formação que se estende à aprendizagem ao longo da vida (lifelong learning) que é o pilar da prática médica baseada na evidência contemporânea. O conhecimento médico é volátil, evolui, anula-se, supera-se e multiplica-se. Ora, o conhecimento estático de algumas áreas (não de todas, porque assumimos que a anatomia das artérias coronárias, por exemplo, não se vá alterar radicalmente em 1-2 anos), especialmente de guidelines, NOCs, “best practice guides” e outro tipo de “nivelamentos por baixo”, parafraseando um professor, de nada serve se não forem dadas armas para o renovar periódica e frequentemente; isto é: saber como se trata a asma brônquica agora é importante, mas é mais importante detetar se o tratamento está otimizado quando estiver com um paciente asmático após uma crise à frente.

“O que avaliar, então?”, seria a questão que se colocaria ao lado de “Como ensinar, então?” no topo da lista de problemas do ensino médico atual. Temos de dominar as bases da ciência médica, mas também de reconhecer criticamente os locais onde ainda faltam respostas e onde a evidência ainda não é forte o suficiente para dar seguranças. A prática clínica baseada na evidência sustenta-se nos pilares da experiência do paciente, da experiência do clínico e da evidência científica ponderada criticamente e no seu todo. Se o primeiro será diferente em todos os casos e o segundo apenas se criará com a inevitável passagem do tempo, será o terceiro o nosso foco? Será que teremos de formar médicos capazes de interpretar a literatura, destruir certezas prévias e aprender para sempre? Que competências queremos garantir aos médicos de amanhã?

Eis a relação dialética fundamental no coração do ensino médico: a oposição e complementaridade entre conhecimentos académicos, conhecimentos práticos e um misto dos dois. Entre exames orais e OSCEs – que pecam pela ausência em algumas escolas médicas – todas as competências necessárias a um jovem médico podem ser avaliadas. Onde é que nos temos de focar? Talvez os estudantes, os jovens médicos recém-formados em IFG e os internos de formação específica possam começar a ter mais palavra nessa questão, identificando lacunas, dificuldades e potenciais problemas nos primeiros anos da profissão. A medicina é uma ars, mas também é uma praxis. O ensino também sofre dos problemas médicos de abarcar a totalidade da dolência da Humanidade sob a sua envergadura.

Costuma dizer-se nas aulas que “não há nada puramente académico em Medicina”. As faculdades não servem para formação específica especializada, nem são centros de formação técnica generalista, mas a definição do papel do médico recém-formado – e da Medicina no geral – além de frases-feitas em inglês para agradar a investidores de regimes fundacionais serviria para avançar em muito a qualidade do ensino médico em Portugal.


Pedro Vilão Silva é estudante de 5.º ano na FCM-UNL