Deixem os jovens em paz!

porPedro Filipe Soares

26 de June 2021 - 21:56
PARTILHAR

É injusto que a sociedade não lhes reconheça onde lhes falhou e, ainda por cima, os use para passar culpas do que não resolveu nem preparou.

Em Vinte Vinte ainda não se sabia o que a pandemia nos reservava. Branko juntou-se a Ana Moura e a Conan Osíris e lançaram a música em janeiro, no início do ano que ficou marcado pelo vírus que não pediu licença para nos interromper a vida. A arte antecipou a pandemia e o lamento murmurado com que a música se anuncia chama o sentimento que nos trouxe muito do que se seguiu. E as palavras, mesmo sem o saber, prenunciavam o desejo do que não pudemos escolher: “O 20 que eu quero / Não é o tempo que eu espero e (...) Não é a filha dum pai a / Pôr uma mãe a morrer.”

Foi assim que se pediu às novas gerações um esforço brutal: fiquem em casa, pelos vossos pais, pelos vossos avós – neguem os instintos, rejeitem essa avidez com que a vida vos pede para ser vivida, suspendam-se, guardem-se. Esta pressão, chantagem até, foi gigante “para achatar a curva” e “proteger os mais velhos”. E as novas gerações cumpriram, apesar de nunca lhes ter sido verdadeiramente reconhecido esse altruísmo e sacrifício. Uma sociedade que se organizou pelos mais velhos e olhou sempre para os jovens como uns privilegiados, a quem era pedido “apenas que ficassem no sofá”, não percebeu verdadeiramente o peso do isolamento social que caiu sobre crianças e jovens, nem releva o fardo que carregam para o futuro. E por isso mesmo continua irresponsavelmente a apontar-lhes o dedo.

As recentes notícias de infeções de covid-19 nas faixas etárias mais jovens vêm logo acompanhadas da censura social, do comentário reprovador, um apontar do dedo aos ajuntamentos e à vida social que é retomada – está novamente em risco o Serviço Nacional de Saúde (SNS), espreita logo uma lista negra para ensombrar a economia nacional. Ano e meio desde o início da pandemia e é aos jovens que continuam a pedir para serem um exemplo, a quem colocam toda a responsabilidade em cima dos ombros. Já não basta? Que legitimidade existe para se pedir novos sacrifícios aos mais jovens?

Em ano e meio poderíamos ter feito mais? A resposta é inequívoca: sim. No momento em que o responsável da task force da vacinação diz ter a organização pronta para ministrar 140 mil doses por dia e que o problema é a escassez da entrega das vacinas pelas multinacionais farmacêuticas, sabemos como falharam os que impediram o levantamento das patentes e colocaram os lucros das empresas à frente das nossas vidas, roubando tempo aos jovens. Quando vários especialistas se dizem preocupados com a situação do SNS, lembramos as saídas de profissionais devido à falta de vontade do Governo na garantia de carreiras atrativas e com perspetivas de futuro. São os jovens os culpados destas escolhas erradas? Por outro lado, o que dizer do paupérrimo plano de recuperação das aprendizagens que mostra a desistência do Governo em aplacar os efeitos pandémicos no conhecimento dos jovens?

E quando o Presidente da República diz que jamais voltará a confinar, se faz ver em esplanadas que só com muita criatividade respeitam as normas sanitárias, o que devemos pensar? De um lado, o Governo assegura que as campainhas de alarme estão a tocar, do lado da esplanada presidencial parecem soar ao anúncio da happy hour. E o que dizer do apelo do presidente da Assembleia da República à romagem futebolística “massiva” além fronteiras no momento em que o Governo anuncia novo cerco sanitário à região de Lisboa? Já agora, como perceber um Governo que dizia ter uma matriz que orientaria uma estratégia para o confinamento e desconfinamento e que dá saltos nas medidas sem qualquer plano compreensível ou com escolhas que parecem feitas em cima do joelho? Este desnorte é culpa dos jovens?

Acredito que os jovens tirarão a mais importante das lições: o futuro será conquistado por eles a um sistema que não lhes serve

As novas gerações já lidaram com uma crise sísmica do capitalismo financeiro, têm a medonha herança de uma crise climática sem precedentes e carregarão para sempre os efeitos da crise pandémica – é injusto que a sociedade não lhes reconheça onde lhes falhou e, ainda por cima, os use para passar culpas do que não resolveu nem preparou.

No entanto, não creio que tudo esteja perdido. Não por achar que o Governo vai corrigir os erros de forma mágica ou os velhos do Restelo deixarão de vaticinar amarguras às novas gerações – acredito que os jovens tirarão a mais importante das lições: o futuro será conquistado por eles a um sistema que não lhes serve.

Artigo publicado no jornal “Público” a 25 de junho de 2021

Pedro Filipe Soares
Sobre o/a autor(a)

Pedro Filipe Soares

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
Termos relacionados: