O combate à corrupção é uma questão de classe

porJoão Moniz

13 de April 2021 - 20:53
PARTILHAR

No caso português, a corrupção é a inevitável conclusão de um sistema de acumulação que tem como um dos seus principais vetores de acumulação as obras públicas, as concessões de serviços públicos, empreendimentos imobiliários, etc.

As novidades da operação Marquês reacenderam o debate sobre a corrupção no país. A corrupção é uma doença endémica e perigosa para a Democracia. Mas, circunscrever a análise a um discurso moralista, apenas tapa o assunto com a peneira. Existirá a tentativa da direita e da sua extrema utilizarem o ultraje moral para alimentar os seus projetos de poder. A realidade mostra que só a esquerda socialista tem as ferramentas adequadas para enfrentar o fenómeno.

Como socialistas, temos que analisar os fenómenos de um ponto de vista estrutural, contextualizando-os dentro de sistemas mais vastos. Nessa perspetiva, a corrupção não acontece simplesmente porque as penas são leves ou porque a 'justiça não funciona'. A corrupção acontece sim, porque está diretamente relacionada com o modo de acumulação de riqueza de algumas sociedades.

Deste ponto de vista, o conceito de sistemas de acumulação, desenvolvido pelo economista Saad-Filho1, é útil e enriquece o debate. O capitalismo, enquanto modelo socioeconómico, tem como principal motor a acumulação de capital. Toda a atividade económica da sociedade é subordinada a esse imperativo. Os sistemas de acumulação são as expressões concretas desses processos de acumulação numa dada sociedade e num dado período.

temos que reconhecer que a melhor política de combate à corrupção é a redistribuição de riqueza e a desestabilização, de cima para baixo, da balança de poder na sociedade

Estes sistemas são determinados por um conjunto alargado de fatores, como os processos estruturais e institucionais que reproduzem a acumulação e distribuição de riqueza. Os sistemas de acumulação envolvem, portanto, as formas de organização do estado, regimes de propriedade, regimes jurídicos e de regulação de mercados e da atividade económica, etc. Segundo o conceito, a acumulação de capital opera, é constrangida e é inibida por estes sistemas de acumulação.

Quando olhamos para o capitalismo português, rapidamente concluímos que não só estamos perante um capitalismo onde o rentismo é um dos principais vetores de acumulação de lucros, como existe também uma continuidade forte da elite económica do país.

Como ficou empiricamente demonstrado na obra de investigação Os Burgueses (2014), o núcleo de detentores de poder económico em Portugal é marcadamente diminuto e concentrado num punhado de famílias. Grande parte deste poder económico nasce no contexto da política económica do Estado Novo. Ao mesmo tempo que o regime distribuía rendas fixas e monopólios naturais, a máquina repressiva do Estado Novo assegurava não só as condições para a exploração máxima dos trabalhadores, como também proteção contra competidores estrangeiros.

Apesar do interregno no período imediato ao 25 de Abril, esta relação umbilical com o estado perdura até aos dias de hoje, embora em moldes distintos. As privatizações dos anos oitenta e noventa, levadas a cabo pelos governos de Cavaco e Guterres, restituíram muito do poderio económico acumulado no passado e as portas giratórias entre ex-governantes do centrão político e as principais empresas do país, asseguram as condições para a reprodução dessa relação umbilical.

Este é, no concreto, o sistema de acumulação vigente em Portugal.

À luz dos sistemas de acumulação, a corrupção não é nenhuma subversão do sistema. Pelo contrário, em muitos casos é um vetor relevante nos processos de acumulação de riqueza. No caso português, a corrupção é a inevitável conclusão de um sistema de acumulação que tem como um dos seus principais vetores de acumulação as obras públicas, as concessões de serviços públicos, empreendimentos imobiliários, etc., onde a proximidade e o compadrio com poder político são fundamentais para assegurar contratos.

O combate à corrupção é de facto urgente. Mas esse combate tem que estar alicerçado numa visão estrutural que reconhece o papel da corrupção na reprodução do equilíbrio de forças e poder na sociedade. O combate à corrupção é, portanto, uma questão de classe. Para além das alterações profundas no que toca aos prazos de prescrição de crimes de corrupção e enriquecimento injustificado, temos que reconhecer que a melhor política de combate à corrupção é a redistribuição de riqueza e a desestabilização, de cima para baixo, da balança de poder na sociedade.

Nota:

1 Ver Brazil: Neoliberalism versus Democracy (2018), de Alfredo Saad-Filho e Lecio Morais, para uma exploração do conceito no caso brasileiro.

João Moniz
Sobre o/a autor(a)

João Moniz

Bolseiro de doutoramento, dirigente distrital de Aveiro do Bloco de Esquerda
Termos relacionados: