Pacto para a saúde

porPedro Filipe Soares

22 de April 2018 - 12:16
PARTILHAR

A Lei de Bases da Saúde data de 1990. É um dos legados de Cavaco Silva que ainda assombra o nosso presente e que faz parte do maior ataque ao sonho de António Arnaut para um Serviço Nacional de Saúde (SNS) geral, universal e gratuito.

A caraterização que o próprio António Arnaut fez dessa lei de bases é demolidora. Em meados dos anos 1990, com uma enorme clarividência e antecipação, vaticinou: "A nova Lei de Bases da Saúde deve ser substituída, porque inverteu a filosofia constitucional da Lei n.º 56/79, ao prever que o direito à saúde é garantido pelo "sistema de saúde" e não pelo SNS, equiparando, para esse efeito, o setor público ao setor privado. Foram criadas condições "legais" para uma futura privatização do SNS através da "medicina convencionada", da possibilidade da "gestão empresarial" e de incentivos aos "seguros de saúde". Foram também estabelecidos preçários para os utentes do SNS, conforme a sua situação económica."

O que aconteceu nas décadas seguintes mostra o mal que a atual lei de bases faz à nossa saúde. A saúde foi transformada num negócio, com o SNS parasitado pelos privados e fragilizado nos seus objetivos. Alguns poderiam dizer que foi um erro, mas a realidade é bem diferente: foi o plano traçado desde o início.

O texto da lei de bases em vigor atribui ao Estado a obrigação do "desenvolvimento do setor privado de prestação de cuidados de saúde (...) em concorrência com o setor público". Para além disso, diz que "o apoio pode traduzir-se, nomeadamente, na facilitação da mobilidade do pessoal do Serviço Nacional de Saúde que deseje trabalhar no setor privado, na criação de incentivos à criação de unidades privadas e na reserva de quotas de leitos de internamento em cada região de saúde".

A atual lei de bases é a fonte dos problemas do SNS. Força o SNS a cavar a sua própria sepultura, esvaindo recursos humanos e financeiros para os privados. Dá cobertura legal para o orçamento do SNS alimentar o negócio privado da saúde, algo absolutamente inaceitável e que está a correr a qualidade da saúde pública. É estimado que, em 2018, quase quatro mil milhões de euros do orçamento do SNS sejam destinados ao pagamento de fornecimentos e serviços externos. É mais de 40% do orçamento que é desviado para os privados.

O modelo de gestão que a lei de bases prevê promove a empresarialização das unidades de saúde e abriu a porta que tornou possível a gestão privada de unidades do SNS. Dito de outra forma, é este o chapéu das parcerias público privadas (PPP) na saúde.

É esta lei que dá cobertura aos mais vorazes e desumanos comportamentos das empresas seguradoras, que interrompem tratamentos ou acompanhamento médico porque acabou o plafond do seguro, deixando as pessoas desamparadas. É o SNS o último reduto nestas situações que não deixa ninguém para trás.

Com este cenário de terror para o SNS e para as pessoas, a única conclusão para quem defende uma saúde pública de qualidade é a apresentação de uma nova Lei de Bases da Saúde. Foi isso que fizeram António Arnaut e João Semedo, num esforço meritório e que, agora, o Bloco de Esquerda levará a debate na Assembleia da República.

A proposta pode ser apresentada em três pilares: promoção da saúde e prevenção da doença, combate ao subfinanciamento e à suborçamentação, gestão pública de qualidade. Propõe o fim das taxas moderadoras para eliminar as barreiras aos cuidados de saúde, garante uma gestão centrada no utente e não nos indicadores financeiros e coloca o setor privado numa lógica de complementaridade com o SNS e não em concorrência.

A proposta lançou um debate generalizado no setor. O governo reagiu e, no imediato, criou uma comissão para rever a Lei de Bases da Saúde. Com a saúde pública em estado crítico, exige-se celeridade ao governo e que não use essa comissão para adiar a reforma que não pode esperar.

O PSD também já reagiu, mas em sentido oposto. O ministro-sombra de Rui Rio para a Saúde, Luís Filipe Pereira, afirmou que reservar aos privados "apenas um papel complementar na oferta do SNS, não podendo concorrer nem conflituar com os prestadores públicos, é uma opção de fundo errada".

Há uma questão que tem sido colocada várias vezes em momentos recentes: estará na calha mais um acordo de regime entre PS e PSD, agora no setor da saúde? Tendo a pergunta alguma atualidade política, a sua pertinência deve ser colocada noutros termos: irá o PS virar as costas a António Arnaut e firmar um pacto com quem quer manter o SNS nas garras dos privados? Essa é, verdadeiramente, a pergunta de fundo.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 19 de abril de 2018

Pedro Filipe Soares
Sobre o/a autor(a)

Pedro Filipe Soares

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
Termos relacionados: