Poupem-nos!

porPedro Rodrigues

26 de November 2013 - 0:01
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Os portugueses não só são dos europeus que menos participam em atividades culturais como o fazem hoje menos do que há seis anos. O “Público” foi ouvir antigos e atuais responsáveis pelas políticas culturais. O resultado é um descarado e coletivo exercício de auto-desresponsabilização.

Um relatório do eurobarómetro veio mostrar que os portugueses não só são dos europeus que menos participam em atividades culturais como o fazem hoje menos do que há seis anos, quando o anterior relatório foi publicado.

Muito justificadamente, o “Público” foi ouvir antigos e atuais responsáveis pelas políticas culturais – ministros, secretários de estado, diretores-gerais das artes, vereadores da cultura das duas principais cidades do país. O resultado é um descarado e coletivo exercício de auto-desresponsabilização e uma confrangedora montra de vacuidades. Impressiona a forma ligeira como todos disparam lugares comuns e sacodem a água do capote.

Para quem tenta todos os dias manter o trabalho em cultura como uma profissão viável, o discurso mais chocante é o de Gabriela Canavilhas: “a deputada socialista e antiga ministra da cultura responsabiliza o discurso político atual que remete para segundo plano as atividades culturais. 'A falta de importância que é dada à cultura hoje é terrível. O discurso político que passa para os cidadãos é o de que não nos podemos preocupar com a cultura quando há gente a passar fome, e esta é a mensagem que todos os dias se transmite para a opinião pública'”. Acontece que foi ela, enquanto ministra, que abriu o precedente de rasgar contratos assinados entre o Estado e os agentes culturais, reduzindo as verbas atribuídas a meio do ano, quando as estruturas de criação e produção artística já estavam com as atividades em curso e compromissos assumidos. Defendeu então que isso era inevitável, devido à difícil situação do país e ao facto de haver outras prioridades. Acabaria desautorizada pelo então primeiro-ministro José Sócrates mas nem essa suprema humilhação a impede de perorar sobre “o discurso político atual”.

Ao nível do caricato está a reação da vereadora da cultura da Câmara de Lisboa, que lamenta o facto de os dados não virem desagregados por cidade. Ela acredita que os resultados da capital serão melhores do que no resto do país. Sim, senhora vereadora, se isso a deixa mais descansada, é muito provável que sejam... Analisamos também a distribuição de equipamentos e do investimento público ou não vale a pena?

Vou ficando amargo, é certo. Mas já me falta a paciência para ouvir – sobretudo àqueles que governaram a cultura em Portugal nos últimos dez ou quinze anos – que a solução está na articulação entre educação e cultura. No caso pouco provável de eles serem sequer arquivados, haverá uma larga estante no Palácio da Ajuda com os relatórios que sucessivas comissões e grupos de trabalho e plataformas interdisciplinares foram produzindo sobre o assunto desde, pelo menos, o 25 de Abril. Muitos dos governantes que agora falam foram mesmo responsáveis pela encomenda desses trabalhos. É uma pena que nunca ninguém lhes tenha pedido resultados e que retirassem consequências das conclusões a que se chegou.

O próprio artigo do Público, provavelmente sem o querer, denuncia mais um absurdo: enquanto o atual secretário de estado da cultura anuncia mais uma “Plataforma Educação-Cultura”, o Ministério da Educação confia que, “com base no desenvolvimento dos currículos em vigor no sistema educativo, poderemos vir a testemunhar uma inversão desta tendência” nos próximos anos. Promete, ainda assim, “continuar a reforçar, a incentivar e a apoiar programas de carácter cultural e sobretudo a valorizar os conteúdos de temática cultural nos programas, metas e orientações curriculares”. Sublinhados meus – é possível ser mais oco?

O cenário é de tal forma lamacento que até quem não tem responsabilidades na matéria resvala nele. É através do sociólogo Claudino Ferreira que as culpas acabam por chegar aos únicos que a reportagem não ouve: as escolas e os professores, que têm “muito a fazer”; e as estruturas culturais e artísticas, que têm de ter “uma maior pro-atividade”. Sendo certo que, em abstrato, estes postulados são inquestionáveis – há sempre mais e melhor a fazer – apetece perguntar: quem, senão as escolas e os agentes culturais, tem feito alguma coisa em Portugal para que haja esta articulação?

Um trabalho cada vez mais difícil, na verdade. Porque as estruturas de criação estão, como bem lembra o sociólogo, numa “situação dramática” (em resultado dos cortes que vêm sofrendo); porque os professores estão cada vez mais pressionados para cumprir o seu tempo letivo e se confrontam com dificuldades crescentes para tudo o que seja atividade “extra-curricular”; porque a generalidade das autarquias não garante sequer transporte para os alunos poderem ir assistir a um espetáculo ou visitar uma exposição; porque a educação artística, como as declarações do ministério citadas neste artigo comprovam, já não faz parte sequer do discurso de quem é responsável pela educação neste país.

Diz o atual secretário de estado que estes números “não nos ficam bem”. E promete, por isso, “trabalhar mais e melhor na defesa de um modelo de desenvolvimento que tenha a cultura no seu centro”. Eu ofereço-lhe quatro pequenos passos para esse modelo: 1) dotar as estruturas de criação artística de condições mínimas para poderem fazer o seu trabalho; 2) agilizar e facilitar o acesso dos públicos escolares às diferentes formas de expressão artística; 3) introduzir a educação artística como elemento fundamental dos programas curriculares em todos os estabelecimentos de ensino; 4) aproveitar os meios de comunicação social ao dispor das instituições públicas para divulgar e valorizar a criação artística. É provável que não cheguem, mas não se vislumbra qualquer “modelo de desenvolvimento” que possa dispensá-los.

Tudo isto são opções políticas, claro. E Gabriela Canavilhas, Barreto Xavier e Nuno Crato são livres de não as tomarem como suas. Mas poupem-nos, ao menos, aos discursos redondos e vazios. O cansaço às vezes torna-nos amargos mas ainda não nos estupidificou por completo.

26 de novembro de 2013.

Pedro Rodrigues
Sobre o/a autor(a)

Pedro Rodrigues

Produtor cultural, Cidadãos por Coimbra
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