A guerra do PEC às políticas sociais públicas

porHelena Pinto

10 de August 2010 - 14:10
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Estas medidas significam uma espiral de baixa dos salários. Significam uma pressão brutal para baixar os salários no nosso país, que como sabemos já são dos mais baixos.

O Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC) continua a marcar as nossas vidas. O PEC é a matriz do próximo Orçamento de Estado (OE). Estão lá plasmadas as grandes opções do Governo, que mereceram o apoio directo e negociado do PSD. É  a posição liberal face à crise financeira, económica e social. Por isso recebeu os elogios ao ser depositado em Bruxelas. É um manual de como reduzir o défice, de forma repentina (até 2013) e de forma drástica (de 9,3% para 2% do PIB).

E faz uma opção – ataca as políticas sociais públicas.



Este Plano incluiu uma medida “inovadora”, que traduz um conceito perverso nas políticas sociais públicas –  um “tecto” para as despesas sociais do Estado. A partir de agora o Estado só gasta X ou Y com os apoios sociais. Estes não dependem da realidade concreta, das necessidades objectivas, das metas do combate à pobreza e à exclusão, dependem da verba global que o Estado tem para “gastar” nos apoios sociais.



Esta medida espantou e indignou muita gente, incluindo sectores do Partido Socialista que viram aqui, e muito bem, um retrocesso no papel do Estado Social e das políticas sociais. Não é só o intensificar da redução dos apoios é a mudança de paradigma. As prestações sociais deixarão de ser prestações de direito e passarão a funcionar para atender às situações mais graves. As pessoas têm “direito” ao RSI, mas este está dependente de um “tecto” global, por isso esse direito poderá ser posto em causa – basta o Estado alegar que não tem mais verba. Daqui até ao retorno à política assistencialista pura e dura vai um passo. O “direito” é substituído pelo critério arbitrário de quem decide que apoios “merecem” uma pessoa ou uma família.



É isto que se prepara. Um retrocesso civilizacional nas medidas de combate à pobreza. É o regresso às medidas assistencialistas tão queridas da Direita. É o retorno às concepções de Bagão Félix de que os pobres são pobres porque não trabalharam para não o ser, que os pobres não sabem gerir o dinheiro, daí necessitarem do apoio em “géneros” para não gastarem o dinheiro em “cerveja” e em “doces”. É a crueldade de uma classe abastada que olha para os de baixo com desprezo e como os culpados pela sua própria situação. E não hesita em propagar preconceitos, como aqueles a que temos assistido em relação aos beneficiários do RSI.



Mas desenganemo-nos, as medidas do PEC não são dirigidas apenas aos mais pobres dos pobres. Estas medidas vão atingir a maioria das famílias portuguesas. Não são as famílias que têm mais de 100 mil euros em património (coisa que também ainda não se entendeu muito bem…), são todas as famílias que recebem algum tipo de apoios sociais – abono de família, apoio social escolar, bolsas de estudo, comparticipação nos medicamentos, pensões de alimentos pagas pelo Estado, apoios na habitação, apoio judiciário, etc., etc..



Vejamos: a primeira medida do Governo foi revogar as medidas extraordinárias de apoio aos desempregados e desempregadas que ele próprio decidiu no âmbito do combate à crise – prorrogação por mais seis meses do subsídio social de desemprego inicial e subsequente; redução do prazo de garantia (número de dias de descontos para a segurança social) para se ter acesso ao subsídio de desemprego que era de 365 dias e agora ficou nos 450 dias e a eliminação da majoração de 10% do subsídio de desemprego para os desempregados com dependentes a seu cargo.



Por outras palavras: a crise ainda não acabou, o desemprego continua a subir, aumenta o número de famílias atingidas e o Governo revoga as tímidas medidas extraordinárias de apoio, cujo objectivo era vigorarem durante a crise.



Mas o Governo foi ainda mais longe e alterou a Lei do subsídio de desemprego com consequências devastadoras no valor do salário.



As normas agora em vigor determinam que o valor máximo do subsídio de desemprego passa a ser 75% do seu salário líquido, até agora era 65% do salário ilíquido, ou seja antes dos descontos para a Segurança Social (11%) e da retenção para o IRS. A consequência é que o valor do subsídio de desemprego diminui.



Mas mais, com as novas normas o desempregado(a) é obrigado(a) a aceitar um emprego cujo salário seja igual ou superior em 10% ao valor do subsídio durante os primeiros 12 meses. Após essa data é obrigado a aceitar pelo valor do subsídio, ou seja um salário que é 75% do valor líquido (antes dos descontos, repito) que recebia. Consequência: quando retorna ao mercado de trabalho vai receber um salário mais baixo.



Estas medidas significam uma espiral de baixa dos salários. Significam uma pressão brutal para baixar os salários no nosso país, que como sabemos já são dos mais baixos.



A juntar a estas medidas entrou também em vigor no dia 1 de Agosto um Decreto-Lei que altera as condições de recurso às prestações sociais. Há muito que os apoios sociais deixaram de ser universais. A ideia base do Estado Social é proporcionar um conjunto de apoios sociais universais e os cidadãos e cidadãs retribuíam ao Estado em impostos. Quem mais ganha, mais paga de impostos. Mas há  muito que não funciona assim e existe uma condição de recursos, que tem a ver com os rendimentos e com a composição do agregado familiar. Vem agora o Governo também alterar estes dois conceitos. Passam a ser contabilizados património mobiliário e imobiliário, independentemente da sua condição, passam a contar os rendimentos de familiares e o cálculo da capitação é diferente.



Por exemplo: um casal de idosos que tenha uma pequena propriedade na sua terra natal, que não dá  lucro e que não consegue vender, pode ver a sua prestação alterada porque passa a ser considerado um valor por ter essa “propriedade”. Uma mulher, que tenha um filho, que esteja desempregada e que por esse motivo volte para casa dos pais temporariamente, passa a ter que incluir os rendimentos dos pais para ter acesso ao abono de família e ao apoio social escolar.



Até agora o cálculo da capitação era feito pela divisão do número de pessoas, adultos e crianças, que faziam parte do agregado familiar. Com as novas normas passa a ser da seguinte forma: tomemos o exemplo de uma família de 4 pessoas, dois adultos e duas crianças – o primeiro adulto vale 1, o segundo já vale 0,7 e cada criança 0,5. As consequências estão  à vista.



A somar a tudo isto é de sublinhar mais dois aspectos. O primeiro tem a ver com a forma como vão ser aplicadas estas medidas – de forma automática. Não serão avaliados os casos. Primeiro corta-se e só depois poderá haver lugar a uma reavaliação. Falamos de prestações pecuniárias que fazem a diferença para ter uma refeição ou não ter, em muitas famílias. Segundo aspecto, todos as pessoas que beneficiem de algum tipo de apoio social, vão ter de autorizar o levantamento do segredo fiscal e bancário, para que o Fisco e a Segurança Social possam fiscalizar tudo e evitar as fraudes. É caso para dizer que passaremos a viver num país onde só os ricos usufruem do segredo bancário.



Conclusão: as medidas do PEC vão ter efeitos muito negativos num grande número de famílias, efeitos directos pois as prestações sociais diminuem e vão exercer uma pressão, também ela directa, no sentido de baixar o valor do salário. Não se protege o desempregado(a), por um lado, e condiciona-se a sua reentrada no mercado de trabalho com um salário muito mais baixo.



Mas estas medidas, ultra-liberais, vão também ter consequências no nível da consciência de desempregados e trabalhadores. O “medo social” que hoje já existe e que se traduz em dificuldades em reagir perante os ataques aos direitos de trabalhadores e trabalhadoras pode aumentar com a pressão directa que é exercida sobre as condições de vida. Porque a vida vai piorar para muita gente.



O esclarecimento dos impactos das medidas do PEC continua a ser uma necessidade urgente, assim como a comparação com situações de autêntica “ganância legal” como é o caso dos prémios chorudos aos gestores. Já se fala de mais um prémio à administração da PT e sobretudo a Zeinal Bava, devido ao seu desempenho no negócio com a Telefónica. Insistir nesta diferenciação, que tem um cunho de classe bem marcado, entre o tratamento aos gestores de topo e o tratamento aos desempregados ajuda a clarificar posições e a tornar credível aos olhos das pessoas que o caminho que Governo segue não é inevitável. Não servem as juras à defesa do Estado Social que o Partido Socialista agora vem fazer a propósito da revisão da Constituição proposta pelo PSD. O Estado Social defende-se todos os dias, nas opções políticas que vão sendo tomadas, no que se decide taxar e no que se decide isentar, no apoio que é efectivo ou no apoio que é mitigado. Este Governo já mostrou de que lado está e até onde quer ir na defesa do Estado Social. Compete agora à esquerda, chamando a si todos os que defendem o Estado Social criar opinião, movimento e resistência para travar este processo.



A campanha para a presidência que se avizinha é um momento privilegiado para debater as políticas públicas. Manuel Alegre tem defendido com clareza os serviços públicos e as políticas públicas. O confronto com Cavaco Silva sobre estas matérias será clarificador e poderá contribuir para juntar à esquerda uma forte oposição à destruição do Estado Social.

Helena Pinto
Sobre o/a autor(a)

Helena Pinto

Dirigente do Bloco de Esquerda. Vereadora da Câmara de Torres Novas. Animadora social.
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