Palestina: as máscaras caíram, a luta tem de continuar

04 de abril 2024 - 18:14

Ao início, explicar as origens do conflito era relativizar crimes, criticar o sionismo era ser antissemita, denunciar mortes de civis era justificar o Hamas. Seis meses depois, as máscaras do sionismo caíram mas a sua política assassina persiste. Sair à rua continua a ser urgente. Este domingo há manifestação em Lisboa.

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Seis meses depois, não há mais máscaras por cair. Perto de 35.000 pessoas foram assassinadas num massacre permanente que não poupa civis de todas as idades, nem infraestruturas críticas como hospitais e escolas. Entretanto, desafiando a banalização da morte e a influência da máquina de propaganda sionista, centenas de milhares de pessoas continuam a manifestar-se por todo o mundo num movimento internacionalista persistente de grande envergadura. Este domingo, às 15 horas, na Praça do Município em Lisboa, a manifestação Abril pela Palestina é mais um elo desse processo.

Só mais um dos exemplos desse processo de destruição em curso, esta semana completou-se a destruição do Hospital Al-Shifa, o maior de Gaza. Hanan Balkhy, diretora regional da Organização Mundial de Saúde, sublinha que este era a “pedra basilar do sistema de saúde de Gaza” e que nas passadas duas semanas, cinco pedidos da Organização Mundial de Saúde para evacuar pacientes e pessoal de saúde “foram negados ou adiados”. Fala-se em mais de 400 civis assassinados aí, num local que tinha perto de 3.000 refugiados.

A negação sistemática da entrada de ajuda humanitária internacional por parte de Israel continua a não ter qualquer justificação plausível, acrescentando às outras vítimas do conflito quem vai morrendo de fome. A ONU estima que há agora um risco “iminente” de fome para as 2,2 milhões de pessoas de Gaza.

Com o desenrolar da matança, a “libertação dos reféns” ou a “segurança nacional”, avançadas como justificações primeiras da ofensiva, convencem cada vez menos pessoas, dentro e fora das fronteiras israelitas. Fica a punição coletiva e os planos de colonização dos ocupantes para o “depois”.

A estigmatização da contextualização

Ao início, imediatamente a seguir à operação Dilúvio de Al-Aqsa, que provocou mais de mil mortos e perto de 250 reféns israelitas, simplesmente referir a história do colonalismo sionista na Palestina, explicar como o Hamas surgiu ou como foi apoiado por Israel para dividir a causa palestiniana era arriscar ser tratado como criminoso, no mínimo por se estar a “relativizar” as mortes, no máximo por se ser conivente com o terrorismo.

A filósofa Judith Butler refletia então sobre esta estigmatização da contextualização do conflito e a limitação do enquadramento da discussão, defendendo que “aprender sobre a história da violência colonial e examinar a linguagem, as narrativas e os enquadramentos que atualmente funcionam para relatar e explicar (…) o que está a acontecer nesta região” é fundamental para “proporcionar uma compreensão mais verdadeira da situação do que aquela que um enquadramento incontestado do presente pode proporcionar por si só.”

O fogo cerrado propagandístico desse primeiro embate não logrou apagar a história. Os saberes sobre a história da Palestina não terão sido particularmente televisionados mas, enquanto ato de resistência e de pensamento crítico, conseguiram circular e disseminar-se para além do pseudo-maniqueísmo oficioso.

Da acusação de antissemitismo à contestação interna

A partir da comoção gerada pelos ataques do Hamas, Netanyahu ensaiou logo uma “unidade nacional”. Parecia normal que o primeiro-ministro israelita que está à frente de um governo de extrema-direita conseguisse juntar forças naquele que é um etno-Estado, construído à volta da exclusão e mesmo desumanização dos palestinianos, do colonialismo dos colonatos e com uma sociedade militarizada em que as Forças de Defesa de Israel são uma espécie de espinha dorsal da mitologia nacional.

Mas a contestação não tardou. Primeiro dos familiares dos sequestrados, desconfiados justamente de que as ações do primeiro-ministro israelita tinham prioridades bem diferentes das suas. Protestaram, marcharam, não se calaram. Em seguida, milhares de pessoas, muitas que já tinham participado nas vagas anteriores de contestação a Netanyahu, começaram a sair às ruas a contestar a guerra “até à vitória total” prometida pelo executivo.

Agora, estão juntos na reivindicação de demissão do governo e no fim de semana passado aconteceram os maiores protestos desde o início da guerra. A organização reivindica que estiveram 100.000 pessoas só na manifestação de Jerusalém.

Há uma tenda de protesto à frente do Knesset e uma “Praça dos Reféns” em frente ao Museu de Arte de Tel Aviv, perto do quartel general das Forças de Defesa Israelitas. Esta quarta-feira, familiares dos sequestrados protestaram no interior do Knesset, erguendo as mãos pintadas de amarelo.

Também fora de Israel, diversas organizações judaicas, incluindo descendentes de sobreviventes do Holocausto trataram de dizer publicamente “não em nosso nome…”.

Em muitos contextos, o caminho para quem enfrentou o sionismo não foi fácil. Tivemos perseguições políticas em universidades norte-americanas contra quem ousasse desafiar aquilo que se pretendia instalar como consenso pró-Israel. Peter Hudis, por exemplo, viu na instrumentalização das acusações de antissemitismo indícios de um “novo McCarthismo” que terá produzido, segundo ele, “um nível sem precedentes de supressão da liberdade de expressão – tanto dentro como fora da academia.”

Claro que o caminho para isto tem vindo a ser aberto há anos. Assente na tentativa de redefinição do termo antissemitismo para o fazer igualar a antissionismo, uma ofensiva ideológica e campanha de difamação de ampla envergadura contra quem apoie a causa palestiniana tem vindo a ser promovida. Esta utiliza como arma a definição do termo adotada pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto em 2016. Por isso, um grupo de académicos da área tratou de criar uma Declaração conjunta sobre Antissemitismo para a contrariar.

A direção trabalhista britânica de Corbyn foi uma das vítimas de uma destas campanhas sistemáticas de ataques. Mas os principais alvos costumam ser as Organizações Não Governamentais pró-Palestina. Em novembro de 2021, a plataforma de organizações francesas a favor da Palestina publicava um relatório no qual detalhava as “estratégias sofisticadas” usadas para as minar desde a difamação à pressão financeira, desde procedimentos legais a acusações de antissemitismo.

Só que com o terror da matança a continuar, os judeus que assumiram oposição ao massacre cometido em seu nome, organizados ou não, dentro ou fora de Israel, foram tornando cada vez mais insustentável um dos principais pilares da política internacional sionista dos últimos tempos.

A negação da “guerra cirúrgica” e os civis que contam como “terroristas”

Outra das narrativas que já não é mais possível sustentar é a da guerra de precisão “cirúrgico-tecnológica” quase sem vítimas civis associadas. Se muitos de nós seremos ainda do tempo dos ataques “cirúrgicos” reivindicados pela Nato, todos somos contemporâneos daquela ideia inicial, hoje tão distante, de que Israel só estava a eliminar o Hamas com poucos “danos colaterais”.

A história era a de que os palestinianos seriam avisados previamente de qualquer ataque com mísseis nos seus prédios, que havia “zonas seguras” nas quais não seriam bombardeados, de que se se deslocassem do norte para o sul estariam em segurança, de que, afinal, só morreriam se “teimassem” em morrer.

Os bombardeamentos massivos, o grau de destruição e os números de vítimas, confirmados internacionalmente, iriam cedo desmentir inequivocamente esta narrativa. Esta quinta-feira, a Human Rights Watch, sublinha outro dos casos que negam a tese dos ataques limitados. A 31 de outubro, as forças israelitas bombardearam um edifício residencial de seis andares em Gaza, matando pelo menos 106 civis, incluindo 54 crianças, o que considera um “possível crime de guerra”. Na sua análise, a associação de defesa dos direitos humanos “não encontrou quaisquer provas de um alvo militar na vizinhança do prédio na altura do ataque israelita” e lembra que os militares “não providenciaram justificação para o ataque”.

Mas há mais. Esta semana, o Haaretz mostrava, através de testemunhos de soldados e oficiais do exército sionista, como muitas das pessoas identificadas como “terroristas” na contabilidade oficial israelita, os famosos 9.000, seriam afinal apenas civis que ultrapassaram as linhas arbitrárias estabelecidas pelos militares. As FDI estabelecem perímetros a que chamam “zonas de matança” e quem os ultrapassar será morto e considerado terrorista.

Isto já para não falar nos mitos do Estado de Direito que respeitaria regras jurídicas, desmentidos não só mas também pelo tratamento dado aos detidos, presos sem culpa formada ou possibilidade de defesa, sujeitos a maus-tratos e a tortura como uma reportagem do +972 ilustrou.

Evangelho, alfazema, os nomes dos algoritmos da morte: entre a inteligência artificial e as bombas burras

Este mesmo órgão de comunicação social, junto com o Local Call, publicou esta quarta-feira uma investigação que revela um lado (mais ou menos) escondido da mais alta tecnologia colocada ao serviço da guerra, o papel da inteligência artificial.

Com base em seis testemunhos anónimos de agentes dos serviços de inteligência israelitas, estes órgãos de comunicação social explicam que uma base de dados construída por inteligência artificial, chamada Lavander, Alfazema ou Lavanda em português, da responsabilidade da Unidade 8200, foi a base da definição de 37.000 alvos humanos para ataques aéreos em Gaza.

Segundo eles, a taxa de erro da identificação é de, pelo menos 10%, o que, nesta escala de bombardeamentos, terá levado à morte de milhares de civis. Indicam ainda que aos humanos cabe a tarefa de confirmar os alvos mas que os militares que o fazem dedicam apenas segundos a essa função antes de se decidirem pelos ataques. Um deles disse que investia 20 segundos por alvo a uma razão de dezenas deles escolhidos por dia, considerava-se um mero “selo de aprovação” e diz que assim se “poupava muito tempo”.

Acrescentam que se considera aceitável matar cem civis para atingir um oficial de topo do Hamas e entre cinco a dez civis para cada combatente de baixo escalão que seja identificado como alvo. Mas o número de assassinatos de civis visto como admissível tem sido variável. Ao início terão sido entre 15 a 20. Para além disso, os ataques a estas patentes baixas são levados a cabo com “bombas burras”, ou seja não guiadas e que arrasam casas inteiras e os seus ocupantes porque “não se quer gastar bombas caras em pessoas que não são importantes”, diz outro.

Eles dizem ainda que “não estamos interessados em matar operacionais apenas quando estão num edifício militar ou envolvidos em atividade militar. É muito mais fácil bombardear a casa de família. O sistema está construído para procurá-los nestas situações.”

A mesma ideia de facilidade volta à baila com se fala noutra das “vantagens” da inteligência artificial: “a máquina fá-lo [a seleção de pessoas a matar] friamente e isso tornou-o mais fácil”.

A base de dados Lavander identificou milhares de indivíduos, sobretudo supostos membros do Hamas de baixa patente. Antes, já tinha sido revelado a existência do Habsora, o Evangelho, outro sistema de inteligência artificial. Este desenvolvido para identificar edifícios e infraestruturas e que foi descrito por fontes militares sionistas como uma “máquina de assassinato em massa” com “ênfase na quantidade não na qualidade”. Também aqui se confirmava o mesmo modo de operação: há uma intervenção humana “antes de cada ataque mas não precisa de gastar muito tempo nisso”. “Trabalha-se rapidamente e sem tempo para aprofundar sobre o alvo. A visão é que somos julgados de acordo com quantos alvos conseguimos gerar”.

Da “guerra humana” à guerra contra os trabalhadores humanitários e à fome como arma de guerra

As Forças de Defesa de Israel têm atacado pessoas que apenas estão à espera de comida e de ajuda. O caso mais famoso causou a morte de 112 pessoas numa fila de espera para alimentos e ficou conhecido como o “massacre da farinha”. Depois deles, foram assassinadas outras centenas nas mesmas circunstâncias.

E também os trabalhadores humanitários têm sido especialmente visados. Segundo Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU, o número de trabalhadores humanitários mortos desde o início do conflito ascende a, pelo menos e até ao momento em que este artigo foi redigido, 196.

O mais recente caso foi a morte de sete colaboradores da World Central Kitchen, uma organização não governamental dos Estados Unidos liderada por um cozinheiro e empresário espanhol, José Andrés. Estes tinham ido descarregar cem toneladas de alimentos num armazém, uma operação que tinha sido coordenada com as forças sionistas, quando os seus veículos, identificados claramente com o logótipo da organização, foram destruídos sucessivamente por três mísseis em Deir al Balah.

Israel diz que foi “um erro” e prometeu uma investigação “exaustiva” “independente”. A investigação preliminar da Al Jazeera, que reconstruiu os eventos a partir de informação de fonte aberta, testemunhas e imagens do local, concluiu desde já que o ataque foi “deliberado” e “intencional”.

Francesca Albanese, relatora da ONU para Palestina, escreveu sobre isto claramente: “conhecendo como opera Israel, a minha avaliação é que as forças israelitas mataram intencionalmente os trabalhadores da WCK”.

E Jamie McGoldrick, coordenador da ONU para os assuntos humanitários nos Territórios Palestinianos Ocupados, sublinha que o número que trabalhadores humanitários mortos desde outubro é “quase três vezes mais do que o registado em qualquer outro conflito num ano”.

Face a isto, outra das associações humanitárias ainda no terreno, a Anera, American Near East Refugee Aid, que se apresenta como não tendo qualquer afiliação política ou religiosa, anunciou que iria parar com as atividades, depois de um dos seus membros também ter sido morto no mês passado.

Serão menos 150.000 refeições diárias que serão servidas num contexto em que, escreve a Agência da ONU para os Refugiados Palestinianos, “Israel continua a bloquear” as atividades de auxílio humanitário e em que apenas 161 camiões estão a conseguir em média chegar por dia ao enclave quando o objetivo era de 500.

Esta agência da ONU, a principal organização no terreno, há muito que tem vindo a ser atacada por Israel. Desde outubro, as acusações intensificaram-se, o estado sionista divulgou a nunca provada tese de que 12 funcionários teriam estado envolvidos nos ataques do Hamas e conseguiu que vários países retirassem o apoio financeiro à instituição levando-o à beira do colapso na altura em que mais era precisa.

Sintoma do retrocesso da hegemonia sionista neste contexto, são também os ataques constantes contra António Guterres, secretário-geral da ONU, que é acusado de ser cúmplice do terrorismo por ter sido um dos que “contextualizou” o ataque do Hamas e pelas suas denúncias da situação humanitária em que se encontra o povo palestiniano.

Os Estados Unidos continuam a fornecer armas enquanto juram que pressionam e que se zangam

Passados seis meses, o apoio direto dos EUA à ofensiva sionista continua. Gilbert Achcar sintetizou bem a situação ao chamar-lhe “a primeira guerra-conjunta EUA-Israel”. Ao contrário de nas anteriores guerras israelitas, desta feita, pela mão de Biden, o apoio norte-americano tem sido direto e maciço, traduzindo-se, para além dos vetos aos apelos de cessar-fogo na ONU e das pressões diplomáticas, no fornecimento das armas e munições a Israel que permitem o massacre.

Assim, enquanto ia fazendo apelos a ataques mais “humanitários”, à passagem de ajuda para Gaza ou manifestava discordância pública sobre os planos de ocupação pós-guerra, o fluxo que alimentava a guerra continuou.

Claro que o governo norte-americano acabou finalmente por “ceder” e permitir que uma resolução de apelo a um cessar-fogo durante o Ramadão fosse aprovada, a 25 de março no Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a sua abstenção. Também tem mostrado discordância sobre a ofensiva terrestre sobre a cidade de Rafah e o desagrado com o primeiro-ministro israelita tem crescido.

Só que esta “cedência” e as “zangas” com Netanyahu, que menospreza publicamente as mensagens e os emissários políticos de Washington, parecem ter pouco de motivações humanitárias. Acossado eleitoralmente pelos republicanos, para quem nenhum apoio a Israel é demasiado, e a perder terreno eleitoral para Trump, criticado à esquerda pela sua conivência com os cada vez mais evidentes, aos olhos de muitos norte-americanos, crimes do Estado sionista, Biden tenta o exercício de salvar a face com declarações ao mesmo tempo que sabe que não pode perder apoio do poderoso lóbi sionista interno, do seu país e do seu partido.

Assim, para além dos jogos de sombras das negociações e das movidas diplomáticas e mediáticas, o que é certo por estes dias é que as armas não pararão de chegar. O Washington Post, a 29 de março, anunciava que o governo do seu país tinha autorizado “discretamente a transferência de milhares de milhões de dólares em bombas e aviões de combate para Israel, apesar das preocupações de Washington sobre uma ofensiva militar prevista no sul de Gaza que poderia ameaçar as vidas de centenas de milhares de civis palestinianos”, incluindo “mais de 1.800 bombas MK84 de 2.000 libras e 500 bombas MK82 de 500 libras”. As primeiras têm sido identificadas em bombardeamentos massivos com vítimas civis.

Esta quinta-feira, o Politico acrescenta que, segundo as suas fontes, o governo dos EUA está a preparar “grandes vendas de novas armas a Israel, nomeadamente aviões de combate, mísseis ar-ar e kits de orientação”, podendo ser vendidos até "50 novos caças F-15, 30 mísseis ar-ar avançados de médio alcance AIM-120 e uma série de kits conjuntos de munições de ataque direto, que transformam as “bombas burras” em bombas guiadas com precisão".

A "pressão" e a "tensão" propaladas entre os dois governos valem assim bem pouco face à realidade do terreno.  Há muito que se sabe também que a máscara humanitária não serve a Joe Biden.

Já do lado do governo israelita, a aposta parece ser em manter o governo dos Estados Unidos atado através de uma intensificação da espiral de violência que aumente a dimensão regional do conflito. O ataque sionista ao consulado iraniano em Damasco, que matou seis sírios e sete militares iranianos, entre os quais três comandantes importantes da Guarda Revolucionária Islâmica, e destruiu a residência do embaixador, terá sido uma provocação feita para não passar sem resposta.

Netanyahu pode perder o seu jogo de guerra, ser afastado e substituído por um líder mais dócil face aos interesses atuais da Casa Branca ou ganhar, contra tudo, os objetivos irrealistas da guerra total que tornou impossível resgatar os reféns, e contra todos, a impopularidade interna e a pressão externa, acabando protegido nos braços de Trump. O que é certo é que para além do seu destino pessoal e da clique que o rodeia, a oposição continua a apoiar a guerra e sem uma visão substancialmente diferente do colonialismo sionista. Também é certo que a extrema-direita continua a fazer planos de colonização da Faixa de Gaza.

Genocídio, (até já) diz a ONU

Genocídio não podia deixar de ser uma palavra brutalmente pesada, marcada pela tragédia e pelo antissemitismo. Apesar de tudo, usá-la alguma vez contra Israel parecia impossível dada a memória do Holocausto. E, no entanto, o que seria impensável há bem pouco tempo é cada vez mais dito.

A África do Sul apresentou a 29 de dezembro uma queixa contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça por genocídio. Nela, pode ler-se que o estado sionista comete “atos genocidas contra a população palestiniana em Gaza”, que “incluem matanças, causar danos mentais e físicos graves e impor deliberadamente condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física como grupo”.

Para além dos atos cometido após 7 de outubro de 2023, também se pretende “os atos de genocídio no contexto mais amplo da conduta de Israel para com os palestinianos durante o seu longo apartheid de 75 anos, a sua longa ocupação beligerante de 56 anos do território palestiniano e o seu bloqueio de 16 anos sobre Gaza, incluindo graves violações do direito internacional”.

Para além disto, em vários países ocidentais correm casos judiciais contra a venda de armas a Israel e neles a palavra genocídio tem também sido utilizada. Na Dinamarca e nos Países Baixos, organizações não governamentais processaram os respetivos Estados por este motivo. No último destes países o tribunal ordenou a suspensão de vendas no âmbito do contrato dos caças de combate F-35. Na Alemanha, familiares de vítimas palestinianas processaram figuras de topo do Estado por “ajuda a crimes de guerra e a genocídio”.

Esta quarta-feira, no Reino Unido, 600 advogados, académicos e juízes reformados, incluindo três ex-juízes do Supremo, escreveram uma carta aberta de 17 páginas ao governo a alertar que este está a violar as leis internacionais ao continuar a vender armas a Israel.

Referem a situação “catastrófica” e aceitam os argumentos do TJI de que há o “sério risco de genocídio” de estar a ser cometido um genocídio em Gaza, sendo por isso necessárias “medidas imediatas” para parar o fluxo de armamento. Isto para além de pretenderem sanções a “indivíduos e entidades que fizeram declarações a incitar ao genocídio contra os palestinianos” e de apelarem ao regresso ao financiamento da agência da ONU para os refugiados palestinianos que também consideram necessário para a “prevenção do genocídio”.

E, agora, é a própria relatora especial da ONU para os Territórios Palestinianos Ocupados, Francesca Albanese, que num relatório explica que “o número angustiante de mortes, os danos irreparáveis causados aos que sobrevivem, a destruição sistemática de todos os aspetos necessários para sustentar a vida em Gaza – dos hospitais às escolas, das casas às terras aráveis – e os danos específicos a centenas de milhares de crianças, e para mães grávidas e jovens – isto só pode ser interpretado como constituindo evidência prima facie de uma intenção de destruir sistematicamente os palestinianos como um grupo”. Acrescenta-se que há “apelos à aniquilação violenta por parte de altos funcionários israelitas com autoridade de comando dirigidos aos soldados em serviço no terreno” que “servem como prova convincente de incentivo explícito e público ao cometimento de genocídio” e que a liderança do país distorce intencionalmente as regras fundamentais do direito humanitário internacional numa tentativa de legitimar a violência genocida contra o povo palestiniano.

Escreve-se ainda que “ao redefinir deliberadamente as categorias de escudos humanos, ordens de evacuação, zonas seguras, danos colaterais e protecção médica, Israel usou as suas funções protetoras como ‘camuflagem humanitária’ para esconder a sua campanha genocida”.