Dentro dos campos de tortura de Israel para os detidos de Gaza

27 de fevereiro 2024 - 14:57

A revista +972 recolheu testemunhos de civis palestinianos que estiveram presos pelo exército israelita sem culpa formada ou possibilidade de defesa. São relatos de sistemáticos maus-tratos e tortura.

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Foto divulgada nas redes sociais e reproduzida pelo +972.
Foto divulgada nas redes sociais e reproduzida pelo +972.

No início de dezembro, circularam por todo o mundo imagens que mostravam dezenas de homens palestinianos na cidade de Beit Lahiya, no norte da Faixa de Gaza, despidos, só com roupa interior, ajoelhados ou sentados, curvados, e depois vendados e atirados como se fossem animais para camiões militares israelitas. A grande maioria destes detidos eram civis sem qualquer filiação ao Hamas, como confirmaram mais tarde os oficiais de segurança israelitas, mas foram raptados pelo exército sem este sequer notificar as famílias do paradeiro dos detidos. Alguns nunca regressaram.

A revista +972 e a Local Call falaram com quatro civis palestinianos que aparecem nestas fotografias, ou que foram detidos perto do local e levados para centros de detenção militar israelitas, onde foram mantidos durante vários dias, ou até semanas, antes de serem libertados de volta para Gaza. Os seus testemunhos, juntamente com 49 testemunhos em vídeo publicados por vários meios de comunicação social árabes de palestinianos detidos em circunstâncias semelhantes nos distritos setentrionais de Zeitoun, Jabalia e Shuja'iya, indicam abusos e torturas sistemáticos por parte dos soldados israelitas contra todos os detidos, tanto civis como combatentes.

De acordo com estes testemunhos, os soldados israelitas submeteram os detidos palestinianos a choques elétricos, queimaram-lhes a pele com isqueiros, cuspiram-lhes para a boca e privaram-nos de sono, comida e acesso a casas de banho ao ponto de os detidos defecarem sobre si mesmos. Muitos foram presos a uma vedação durante horas, algemados e vendados durante a maior parte do dia. Outros testemunharam terem sido espancados pelo corpo todo e de terem-lhes apagado cigarros no pescoço ou nas costas. Sabe-se que várias pessoas morreram em consequência de terem sido detidas nestas condições.

Os palestinianos com quem falámos disseram que na manhã de 7 de dezembro, quando as fotografias de Beit Lahiya foram tiradas, os soldados israelitas entraram no bairro e ordenaram a todos os civis que abandonassem as suas casas. "Gritavam: 'Todos os civis têm de sair e render-se'", disse Ayman Lubad, investigador jurídico do Centro Palestiniano para os Direitos Humanos, à +972 e à Local Call, tendo sido detido juntamente com o seu irmão mais novo.

De acordo com os testemunhos, os soldados ordenaram que todos os homens se despissem, reuniram-nos num espaço e tiraram fotografias que mais tarde seriam divulgadas nas redes sociais (oficiais israelitas repreenderam, entretanto, os soldados por terem partilhado as imagens). As mulheres e as crianças, entretanto, receberam ordens para se dirigirem para o Hospital Kamal Adwan.

Quatro testemunhas disseram separadamente à +972 e ao Local Call que, enquanto estavam algemados na rua, os soldados entraram nas casas daquele bairro e pegaram-lhes fogo; A +972 e o Local Call conseguiram fotografias de uma das casas queimadas. Os soldados disseram aos detidos que tinham sido presos porque "não tinham evacuado para o sul da Faixa de Gaza".

Um número desconhecido de civis palestinianos permanece na parte norte da Faixa, apesar das ordens de expulsão por parte dos israelitas desde o início da guerra que levaram centenas de milhares a fugir para sul. As pessoas com quem falámos enumeraram várias razões para não evacuar: medo de serem bombardeados pelo exército israelita na viagem para sul enquanto se abrigavam; medo de que os operacionais do Hamas os matassem; dificuldades de mobilidade ou deficiências entre os membros da família; e a incerteza da vida nos campos de deslocados do sul. A mulher de Lubad, por exemplo, tinha acabado de dar à luz, e estes temiam os perigos de sair de casa com um recém-nascido.

Num vídeo filmado em Beit Lahiya, um soldado israelita com um megafone coloca-se à frente dos detidos, que estavam sentados por filas, nus, de joelhos, com as mãos atrás da cabeça, e disse: "O exército israelita chegou. Destruímos Gaza [Cidade] e Jabalia. Ocupámos esta. Estamos a ocupar Gaza inteira. É isso que querem? Querem o Hamas do vosso lado?” Os palestinianos responderam que eram civis.

"A nossa casa ardeu mesmo à minha frente", disse Maher, um estudante da Universidade Al-Azhar, em Gaza, que aparece numa fotografia de detidos em Beit Lahiya, à +972 e ao Local Call (pediu para usar um pseudónimo por recear que o exército israelita retaliasse contra os membros da sua família, que continuam detidos num centro de detenção militar). Segundo testemunhas, o fogo alastrou-se de forma incontrolável, a rua encheu-se de fumo e os soldados tiveram de afastar os palestinianos amarrados algumas dezenas de metros.

“Eu disse ao soldado: ‘A minha casa ardeu. Porque está a fazer isto?’” “E ele respondeu: 'Esqueçam esta casa'", recordou Nidal, outro palestiniano que também aparece na fotografia de Beit Lahiya e que pediu para usar um pseudónimo pelas mesmas razões.

Ele perguntou-me onde me doía e depois bateu-me com força”

Atualmente, sabe-se que mais de 660 palestinianos de Gaza estão detidos em prisões israelitas, a maioria dos quais na prisão de Ketziot, no deserto de Naqab/Negev. Outros tantos, que o exército se recusa a revelar o número, mas que pode ascender a vários milhares, estão detidos em várias bases militares, incluindo a de Sde Teyman, perto de Be'er Sheva, onde alegadamente ocorrem muitos dos abusos contra os detidos.

De acordo com os testemunhos, os detidos palestinianos de Beit Lahiya foram carregados em camiões e levados para uma praia. Foram deixados amarrados durante horas e outra fotografia foi tirada e posta a circular nas redes sociais. Lubad contou que um dos soldados israelitas, uma mulher, pediu a vários detidos para dançarem e depois filmou-os.

Os detidos, ainda em roupa interior, foram depois levados para outra praia no interior de Israel, perto da base militar de Zikim, onde, de acordo com os seus testemunhos, os soldados os interrogaram e espancaram brutalmente. De acordo com os meios de comunicação social, os interrogatórios iniciais foram efetuados por membros da Unidade 504 das Forças de Defesa de Israel (IDF), uma unidade de espionagem militar.

Maher contou a sua experiência à +972 e ao Local Call: "Um soldado perguntou-me: ‘Como te chamas?’ e começou a dar-me murros no estômago e pontapés.” “Disse-me: 'Estás no Hamas há dois anos, diz-me como te recrutaram'. Eu disse-lhe que era estudante. Dois soldados abriram-me as pernas e deram-me um murro na cara. Comecei a tossir e apercebi-me de que não conseguia respirar.” “Disse-lhes: 'Sou um civil, sou um civil.”

"Lembro-me de passar a mão pelo corpo e de me sentir pesado", continuou Maher. "Não me apercebi de que era a minha perna. Deixei de sentir o corpo. Disse ao soldado que tinha dores, ele parou e perguntou-me onde; eu disse-lhe no estômago, e ele bateu-me com força nele. Disseram-me para me levantar. Não sentia as pernas e não conseguia andar. Sempre que caía, batiam-me outra vez. A minha boca e o meu nariz estavam a sangrar e desmaiei.”

Os soldados interrogaram alguns dos detidos da mesma forma, fotografaram-nos, verificaram os seus bilhetes de identidade e depois dividiram-nos em dois grupos. A maioria, incluindo Maher e o irmão mais novo de Lubad, foi enviada de volta para Gaza e chegou às suas casas nessa mesma noite. O próprio Lubad fazia parte de um segundo grupo de cerca de 100 detidos de Beit Lahiya que foram transferidos para um centro de detenção militar no interior de Israel.

Enquanto lá estavam, os detidos ouviam regularmente "aviões a descolar e a aterrar", pelo que é provável que tenham sido detidos na base de Sde Teyman, junto a Be'er Sheva, que inclui um aeródromo; segundo o exército israelita, é aqui que os detidos de Gaza são mantidos para processamento, ou seja, para decidir se devem ser classificados como civis ou "combatentes ilegais".

De acordo com o Gabinete do Porta-voz das IDF, as instalações de detenção militar destinam-se apenas ao interrogatório e à triagem inicial dos detidos, antes de serem transferidos para o Serviço Prisional de Israel ou até à sua libertação. No entanto, os testemunhos dos palestinianos que estiveram detidos nas instalações afirmam o contrário.

Fomos torturados o dia todo”

No interior da base militar, os palestinianos foram detidos em grupos de cerca de 100 pessoas. De acordo com os testemunhos, foram algemados e vendados durante esse tempo e só podiam descansar entre a meia-noite e as 5 da manhã.

Um dos detidos de cada grupo, que os soldados escolhiam por saber hebraico e a quem davam o título de "shawish" (termo da gíria que designa um criado ou subordinado), era o único que não tinha uma venda nos olhos. Os antigos detidos explicaram que os soldados que os guardavam tinham lanternas de laser verde que usavam para marcar qualquer pessoa que se mexesse, mudasse de posição por causa da dor ou fizesse um som. Os shawish levavam estes detidos até aos soldados que se encontravam do outro lado da vedação de arame farpado que rodeava as instalações, onde eram castigados.

De acordo com os testemunhos, o castigo mais comum era serem amarrados a uma vedação e terem de levantar os braços durante várias horas. Quem os baixasse era levado pelos soldados e espancado.

"Fomos torturados durante o dia todo", disse Nidal à +972 e ao Local Call. "Ajoelhamo-nos, de cabeça baixa. Os que não conseguiam eram amarrados à vedação, [durante] duas ou três horas, até o soldado decidir libertá-los. Estive amarrado durante meia hora. Todo o meu corpo estava coberto de suor; as minhas mãos ficaram dormentes.”

"Não te podes mexer", recordou Lubad em relação às regras. "Se nos mexermos, o soldado aponta-nos um laser e diz ao shawish: 'Tira-o daqui, levanta-lhe as mãos'. Se baixar as mãos, o shawish leva-o para fora e os soldados batem-lhe. Fui amarrado à vedação duas vezes. E fiquei com as mãos no ar porque havia pessoas à minha volta que estavam a sofrer muito. Uma pessoa voltou com uma perna partida. Ouvimos os espancamentos e os gritos do outro lado da vedação. Temos medo de olhar ou de espreitar através da venda. Se te virem a olhar, é um castigo. Levam-te para fora ou amarram-te também à vedação".

Outro jovem libertado da detenção disse aos meios de comunicação social, depois de regressar a Gaza, que "as pessoas eram torturadas a toda a hora. Ouvíamos gritos. Eles [soldados] diziam-nos: 'Porque é que ficaram em Gaza, porque é que não foram para sul? E eu disse-lhes: 'Porque havemos de ir para sul? As nossas casas continuam de pé e não estamos filiados no Hamas". Eles responderam: 'Vão para sul, vocês celebraram o 7 de outubro' [o dia do ataque liderado pelo Hamas]".

Num caso, disse Lubad, um detido que se recusou a ajoelhar e baixou as mãos em vez de as manter levantadas foi levado para trás da vedação de arame farpado com as mãos algemadas. Os detidos ouviram espancamentos, depois ouviram-no insultar um soldado e, de seguida, um tiro. Não sabem se o detido foi de facto alvejado, se está vivo ou morto; De qualquer forma, não regressou durante o resto do tempo em que as pessoas que com quem falámos estiveram lá detidas.

Em entrevistas a meios de comunicação social árabes, os antigos detidos testemunharam que outros reclusos morreram ao seu lado. "Morreram pessoas lá dentro. Um deles tinha uma doença cardíaca. Mandaram-no sair, não quiseram cuidar dele", disse uma pessoa à Al Jazeera.

Vários detidos que estavam com Lubad também lhe falaram dessa morte. Disseram que, antes da sua chegada, um homem idoso do campo de refugiados de Al-Shati, que estava doente, morreu nas instalações como consequência das condições de detenção. Os detidos decidiram entrar em greve de fome para protestar contra a sua morte e devolveram aos soldados os pedaços de queijo e pão que lhes tinham sido racionados. Estes contaram a Lubad que, à noite, os soldados entravam e batiam-lhes severamente enquanto estavam algemados, e depois atiravam-lhes com botijas de gás lacrimogéneo. Os detidos deixaram de fazer greve.

O exército israelita confirmou à +972 e ao Local Call que os detidos de Gaza morreram nas instalações. "Há casos conhecidos de mortes de detidos no centro de detenção", disse o porta-voz das IDF. "De acordo com os procedimentos, cada morte de um detido é objeto de um exame, incluindo uma análise sobre as circunstâncias da morte. Os corpos dos detidos estão a ser conservados de acordo com as ordens militares".

Em testemunhos vídeo, os palestinianos que foram libertados e puderam regressar a Gaza descrevem casos em que os soldados apagaram cigarros nos corpos dos detidos e até lhes deram choques elétricos. "Estive detido durante 18 dias", contou um jovem à Al Jazeera. "O soldado vê-nos a adormecer, pega num isqueiro e queima-nos as costas. Apagaram cigarros nas minhas costas algumas vezes. Um dos rapazes [que tinha os olhos vendados] disse [ao soldado]: 'Quero beber água', e o soldado disse-lhe para abrir a boca e cuspiu-lhe para dentro."

Outro detido disse que foi torturado durante cinco ou seis dias. "'Queres ir à casa de banho? É proibido", contou que lhe disseram. "O soldado bate-me, mas eu não sou do Hamas, de que é que tenho culpa? Mas ele continua a dizer: 'És do Hamas, toda a gente que fica em Gaza [Cidade] é do Hamas. Se não fosses do Hamas, terias ido para sul. Nós dissemos-vos para irem para sul.’”

Shadi al-Adawiya, outro detido que foi libertado, disse ao TRT num testemunho gravado em vídeo: "Eles apagam cigarros nos nossos pescoços, mãos e costas. Dão-nos pontapés nas mãos e na cabeça. E dão-nos choques elétricos.”

"Não se pode pedir nada", disse outro detido libertado à Al Jazeera, depois de chegar a um hospital em Rafah. "Se disseres: 'Quero beber', batem-te no corpo todo. Não há diferença entre velhos e novos. Eu tenho 62 anos. Bateram-me nas costelas e, desde então, tenho dificuldade em respirar."

Tentei tirar a venda e um soldado deu-me uma joelhada na testa”

Os palestinianos que Israel detém em Gaza, quer sejam militantes ou civis, estão a ser detidos ao abrigo da "Lei dos Combatentes Ilegais" de 2002. Esta lei israelita permite que o Estado detenha combatentes inimigos sem lhes conceder o estatuto de prisioneiro de guerra e que os detenha durante longos períodos sem procedimentos legais normais. Israel pode impedir os detidos de se encontrarem com um advogado e adiar a revisão judicial até 75 dias, ou, se um juiz a aprovar, até seis meses.

Após o início da atual guerra, em outubro, esta lei foi alterada: de acordo com a versão aprovada pelo Knesset em 18 de dezembro, Israel também pode manter estes detidos até 45 dias sem emitir uma ordem de detenção, que tem consequências preocupantes.

"Durante 45 dias não existem", disse Tal Steiner, diretor executivo do Comité Público Contra a Tortura em Israel, à +972 e ao Local Call. "As suas famílias não são notificadas. Durante este período, as pessoas podem morrer e ninguém sabe. É preciso provar que de facto aconteceu. Muitas pessoas podem simplesmente desaparecer".

A ONG israelita de defesa dos direitos humanos, HaMoked, recebeu telefonemas de pessoas em Gaza sobre 254 palestinianos que foram detidos pelo exército israelita e cujos familiares não fazem ideia de onde se encontram. A HaMoked apresentou uma petição ao Supremo Tribunal de Israel no final de dezembro, exigindo que o exército publicasse informações sobre os residentes de Gaza que detém.

Uma fonte do Serviço Prisional de Israel disse à +972 e ao Local Call que a maioria dos detidos em Gaza está a ser mantida pelo exército e não foi transferida para as prisões. É provável que o exército israelita esteja a tentar obter informações de civis, utilizando a Lei dos Combatentes Ilegais para os prender.

Os detidos que falaram com a +972 e o Local Call disseram que foram detidos nas instalações militares ao lado de pessoas que sabiam ser membros do Hamas ou da Jihad Islâmica. De acordo com os testemunhos, os soldados israelitas não fazem distinção entre os civis e os membros desses grupos e tratam todos da mesma maneira. Algumas das pessoas detidas no mesmo grupo em Beit Lahiya há quase um mês ainda não foram libertadas.

Nidal descreveu que, para além da violência de que foram alvo os detidos, as condições de detenção eram extremamente duras. "A casa de banho é uma abertura estreita entre dois pedaços de madeira", disse. "Puseram-nos lá dentro amarrados e com os olhos vendados. Entrávamos e urinávamos nas roupas. E era lá que bebíamos água também."

Os civis que foram libertados da base militar israelita disseram à +972 e ao Local Call que, alguns dias depois, foram levados de uma instalação para outra para serem interrogados. A maioria disse que foi espancada durante os interrogatórios. Foi-lhes perguntado se conheciam agentes do Hamas ou da Jihad Islâmica, o que pensavam sobre o que aconteceu a 7 de outubro, qual dos seus familiares era agente do Hamas, quem entrou em Israel a 7 de outubro e por que razão não evacuaram para sul como lhes foi "pedido".

Lubad foi levado para Jerusalém para ser interrogado três dias depois. "O interrogador deu-me um murro na cara e, no fim, levaram-me para fora e vendaram-me os olhos", disse. "Tentei tirar a venda, porque me doía, e um soldado deu-me uma joelhada na testa, por isso deixei-a ficar.

"Meia hora depois, trouxeram outro detido, um professor universitário", continuou Lubad. "Aparentemente, ele não cooperou com eles durante o interrogatório. Bateram-lhe muito ao meu lado. Disseram-lhe: 'Estás a defender o Hamas, não respondes às perguntas. Põe-te de joelhos, levanta as mãos". Senti duas pessoas a vir na minha direção. Pensei que era a minha vez de ser espancado e contraí o corpo para me preparar. Alguém me sussurrou ao ouvido: 'Diz escumalha'. Eu disse que não estava a perceber. Ele disse: 'Diz que esta escumalha toda há de pagar", o que implicava a morte ou um castigo.

Lubad foi então libertado e regressou à cela de detenção. Segundo ele, as condições em Jerusalém eram melhores do que nas instalações do sul. Pela primeira vez, não foi algemado nem vendado. "Estava com tantas dores e tão cansado que adormeci e pronto", disse.

Éramos tratados como galinhas ou ovelhas”

No dia 14 de dezembro, uma semana depois de ter sido levado da sua casa em Beit Lahiya, deixando para trás a mulher e os três filhos, Lubad foi colocado num autocarro de regresso ao cruzamento de Kerem Shalom, entre Israel e a Faixa de Gaza. Contou 14 autocarros e centenas de detidos. Ele e outra testemunha disseram à +972 e ao Local Call que os soldados lhes disseram para correrem e que quem olhasse para trás, seria alvejado.

De Kerem Shalom, os detidos caminharam até Rafah, uma cidade que se transformou num gigantesco campo de refugiados nas últimas semanas, albergando centenas de milhares de palestinianos deslocados. Os detidos libertados vestiam pijamas cinzentos e alguns mostraram aos jornalistas palestinianos ferimentos nos pulsos, nas costas e nos ombros, aparentemente em resultado da violência de que foram alvo durante a detenção. Usavam pulseiras numeradas que lhes tinham sido dadas quando chegaram ao centro de detenção.

A Euro-Med Monitor, uma organização de defesa dos direitos humanos sediada em Genebra, com vários investigadores no terreno em Rafah, disse à +972 e ao Local Call que calcula que pelo menos 500 habitantes de Gaza foram libertados na cidade nas últimas semanas, depois de terem estado detidos em Israel, relatando testemunhos de torturas e abusos severos.

Os detidos disseram aos jornalistas que não sabiam para onde ir em Rafah nem onde estavam as suas famílias. Muitos deles estavam descalços. "Estive de olhos vendados durante 17 dias", disse um deles. "Fomos tratados como galinhas ou ovelhas", disse outro.

Um dos detidos que chegou a Rafah disse à +972 e ao Local Call que, desde que foi libertado há duas semanas, vive numa tenda de nylon. "Só hoje comprei sapatos", disse. "Em Rafah, para onde quer que se olhe, veem-se tendas. Desde a minha libertação, tem sido muito difícil para mim, mentalmente. Há aqui um milhão de pessoas numa cidade de 200.000 [antes da guerra]."

Quando Lubad chegou a Rafah, telefonou imediatamente à sua mulher. Ficou contente por saber que ela e os seus filhos estavam vivos. "Na prisão, estava sempre a pensar neles, na minha mulher que está numa situação difícil, sozinha com o nosso bebé recém-nascido", explicou.

Mas, ao telefone, sentiu que a família não lhe estava a dizer alguma coisa. Por fim, Lubad descobriu que uma hora depois do seu irmão mais novo ter regressado da sua detenção na praia de Zikim, foi morto por um projétil israelita que atingiu a casa de um vizinho.

Recordando a última vez que viu o seu irmão, Lubad disse: "Estávamos sentados, só com roupa interior, e estava muito frio, e sussurrei-lhe: 'Está tudo bem, está tudo bem, vais voltar são e salvo'".

Durante a sua detenção, a mulher de Lubad disse aos filhos que ele tinha viajado para o estrangeiro; Lubad não tem a certeza se acreditaram. Nesse dia, o seu filho de três anos viu-o nu na rua. "O meu filho queria muito ir ao jardim zoológico, mas não há nenhum jardim zoológico em Gaza. Por isso, disse-lhe que na minha viagem tinha visto uma raposa em Jerusalém, e, de facto, quando fui interrogado, de manhã, passaram por lá algumas raposas. Prometi-lhe que, quando tudo acabasse, também o levaria a vê-las".

Em resposta às acusações feitas neste artigo de que soldados israelitas queimaram as casas de palestinianos detidos em Beit Lahiya, o porta-voz das IDF comentou que as acusações "serão analisadas", acrescentando que "foram encontrados documentos pertencentes ao Hamas nos apartamentos do edifício, bem como uma grande quantidade de armas" e que foram disparados tiros contra as forças israelitas a partir do edifício.

O porta-voz das IDF disse que os palestinianos em Gaza estavam a ser detidos "por envolvimento em atividades terroristas" e que "os detidos que se verificou não estarem envolvidos em atividades terroristas e cuja detenção continuada não se justifica são devolvidos à Faixa de Gaza logo que possível".

Relativamente às acusações de maus-tratos e tortura, o porta-voz das IDF afirmou que "todas as acusações de conduta imprópria no centro de detenção são cuidadosamente investigadas. Os detidos são algemados de acordo com o seu nível de risco e estado de saúde, de acordo com uma avaliação diária. Uma vez por dia, o centro de detenção militar realiza uma consulta médica para verificar o estado de saúde dos detidos que a necessitem".

Os detidos que falaram com a +972 e o Local Call, porém, disseram que foram examinados por um médico apenas aquando da sua chegada às instalações e que não receberam qualquer tratamento médico subsequente, apesar dos seus repetidos pedidos.

 

Texto publicado originalmente no +972 a 5 de janeiro. Traduzido por Nuno Oliveira para o Esquerda.net.