“O Anarquismo e a Arte de Governar”, entrevista a Diogo Duarte

04 de agosto 2023 - 21:30

Principal corrente do movimento operário português por mais de três décadas, o anarquismo procurou formar sujeitos transformadores da sociedade. No seu livro, Diogo Duarte explora a visão libertária do mundo e como, há cem anos, os anarquistas se propunham governar a vida (a começar pela deles). Por Jorge Costa.

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Convívio de leitores do diário A Batalha na Póvoa de Varzim, em setembro de 1922.
Convívio de leitores do diário A Batalha na Póvoa de Varzim, em setembro de 1922.

Este livro é fruto de quase nove anos de investigação que deram origem à tua tese de doutoramento. Como chegaste a esta área?

Uma possibilidade de resposta é a existência de certa afinidade com o objeto, como acontece muitas vezes nestas coisas. Mas, acima de tudo, ter-me apercebido que, na historiografia do período da Monarquia Constitucional e da Primeira República, há uma série de enunciados - sobre o anarquismo como sobre o anticlericalismo - pouco desenvolvidos e explorados. Há temas que pairam quase como fantasmas e há uma grande desproporção entre o peso reconhecido ao anarquismo nas classes proletarizadas urbanas naquele período e a quantidade de estudos que lhe são dedicados. Acresce que, ao contrário do que acontece noutros temas, Portugal tem condições muito propícias ao estudo do anarquismo, graças aos investigadores que se lhe dedicaram previamente e que organizaram grandes arquivos que ainda estão muito por explorar. Deve fazer-se referência a João Freire, que recolheu imensos espólios de militantes e publicou talvez a única obra significativa e de síntese sobre a história do anarquismo em Portugal.

Diogo Duarte é mestre em Antropologia e doutorado em História Contemporânea. Investiga sobre violência anticlerical na Primeira República e sobre a história do anarquismo em Portugal no Instituto de História Contemporânea (FCSH/UNL).

 

Referes a dimensão prefigurativa do discurso anarquista - a ideia de realizar na prática revolucionária coletiva e no comportamento individual o que é imaginado como a nova sociedade ou “o homem novo”. Mas notas também que há fortes continuidades entre a cultura anarquista e as linhas de modernização avançadas pela monarquia liberal e depois também pela Primeira República. Quais são as roturas abertas pela dimensão prefigurativa do discurso anarquista e em que pontos coincidiam os anarquistas com a modernização conservadora e liberal daquele período?

Quando sublinho essa modernidade do anarquismo, antes de mais relaciono-a com o seu tempo, ela não existe independentemente das suas condições estruturais e conjunturais, é fruto de um diálogo com um conjunto de saberes - fossem eles governativos (a tal “arte de governar”), fossem eles científicos; na verdade, todos se cruzavam de alguma maneira. Apesar dessas continuidades, o anarquismo propõe (aliás até hoje) uma grande rotura: a defesa simultânea de um máximo de igualdade social e um máximo de liberdade individual, o que o distingue da maior parte das correntes que, à esquerda e à direita, pendem para um dos lados, de alguma forma.

Além de ser uma expressão antiautoritária, essa modernização incluía a irrupção das massas perante a política institucionalizada. Contudo, na procura de organizar as relações sociais e o comportamento individual e no diálogo com os atores da sua época, surgem certas ambiguidades e contradições.

Da greve estudantil de 1907, em Coimbra, na foto, emergiram alguns dos mais importantes quadros intelectuais do anarquismo português, como João Campos Lima e Pinto Quartim.

 

Um dos registos mais surpreendentes do livro é o peso de um certo discurso sobre a “degeneração social”, que contrasta com o enunciado da liberdade individual a par da igualdade social. O diagnóstico de degenerado é aplicado a certas formas de arte (do futurismo até ao fado), a espaços e acontecimentos populares (as tabernas, o carnaval) ou ainda a questões de orientação sexual ou mesmo de deficiência física e mental (difunde-se a eugenia, ainda que sem coerção). Como interpretar esta dimensão algo puritana e que contradições gerou no campo anarquista?

Começo por sublinhar que os discursos a que nós acedemos são sobretudo os de uma certa elite do anarquismo, com acesso à escrita. Todavia, este estava sobretudo ligado às classes populares, num país com taxas de analfabetismo enormes. Por outras fontes, é fácil perceber que a crítica do Carnaval ou das tabernas não era transversal à vivência quotidiana dos militantes operários. Não por acaso, na foto da capa do meu livro - um encontro em 1922 - está um militante que segura uma guitarra portuguesa. Eu achei piada à foto por isso, porque mostra que o fado estava lá, apesar de todas as críticas da intelectualidade anarquista que apareciam nos jornais.

A questão da eugenia e da degeneração é problemática. Na verdade, não foi muito abordada e era, de formas diversas, posição transversal a todos os campos políticos da altura. Entre os anarquistas - preocupados com a orientação de comportamentos individuais através da educação, do cuidado com o corpo, nomeadamente no combate ao alcoolismo -, a eugenia teve uma expressão diferente, embora também ligada ao evolucionismo.

Depois do nazismo, tornou-se um tabu, até em termos académicos, estudar estas expressões noutras correntes políticas. Retrospetivamente, ficam à vista as contradições com as ideias anarquistas. Eles fugiam à crítica dizendo que as pessoas com determinada doença ou debilidade - as tais “degeneradas” - não deviam reproduzir-se, mas sem nunca defenderem a esterilização forçada. Ao contrário, Carlos Rates, o primeiro líder do PCP, publica então n’A Batalha um programa em que defende o impedimento coercivo da reprodução de pessoas com determinadas doenças.

Tudo isto se insere numa corrente muito presente no progressismo da época, o evolucionismo, que se contrapunha às teses católicas sobre a origem do mundo. Está presente no anarquismo por via do Piotr Kropotkine, que foi também biólogo e quis rebater as teses social-darwinistas. Esta preocupação com “a qualidade da espécie” (e não só com a quantidade) vem destas discussões da modernidade. Os anarquistas adaptaram esses discursos à sua leitura antiautoritária do mundo, mas estavam em diálogo com eles.

 

Falaste da importância do tema da educação na política da corrente anarquista e do papel central que lhe é atribuído na transformação social, o de uma espécie de pré-condição para a revolução, que dependeria da alfabetização, mas também da aprendizagem da liberdade e do juízo crítico através da escola. Quais eram os traços principais da pedagogia anarquista da Escola Moderna concebida por Francisco Ferrer?

Para lá da relação explícita com o anarquismo, a Escola Moderna insere-se na linhagem da Educação Nova, a pedagogia centrada no aluno e fundada na razão, sem recurso a métodos coercivos: não havia castigos, não havia avaliação, não havia necessariamente classes. Tentava-se responsabilizar o aluno sem impor, por exemplo, o toque de uma campainha, sem forçar a presença. Pretendia-se incutir também um conjunto de ferramentas para o pensamento crítico como parte desta arte de governar, de tentar conduzir, neste caso, o sujeito aluno.

Em Portugal, o grande exemplo de pedagogia libertária (mesmo se não seguia exclusivamente a linha de Ferrer) foi a Escola Oficina nº 1, na Graça, que Ferrer chegou a visitar, salvo erro. Foi criada por maçons, alguns deles próximos do republicanismo, cujo conselho escolar, que definiu os programas pedagógicos, foi, durante um período significativo, composta por pedagogos anarquistas.

Sobre a Escola Oficina Nº 1, mais do que ler o meu livro, será interessante ler a tese de António Candeias. Ele estudou a fundo o seu processo pedagógico, inclusive os conflitos que eclodiram quando se evitou promover o mesmo que a escola oficial, um sujeito disciplinado e apto ao contexto fabril e de trabalho. Isto gerou conflitos. Uma das pessoas da direção, que empregava ex-alunos da Escola na sua empresa, dizia numa das reuniões com o conselho pedagógico anarquista: “eles são fantásticos, muito inteligentes, fazem tudo o que fazem, mas são um bocadinho difíceis de dominar porque não cumprem os horários da mesma maneira, etc”.

Sala da Escola Oficina nº 1, em 1907.

 

Como vês o contraste paradoxal entre esse esforço de inovação pedagógica, feito a partir do movimento operário num período de escassa oferta escolar, e a situação atual, em que o acesso universal convive com práticas como a reintrodução de exames desde os primeiros escalões de ensino?

O estudo de projetos como o da Escola Oficina permitem pelo menos repensar a forma banal e quase dogmática como avançam algumas práticas na educação massificada. A democratização do ensino implicou um conjunto de cedências que teve consequências na sua qualidade. Ao mesmo tempo, chegou a muito mais gente e isso possibilitou ascensão social.

Este problema de homogeneizar um sistema de ensino de massas foi sentido pela Escola Moderna, que nunca propôs um programa que se aplicasse a todas as escolas. Havia autonomia de cada escola racional, do meio operário ou anarquista, para aplicar o seu próprio programa. Nas teses do IV congresso nacional da CGT, em 1925, tenta-se propor um modelo baseado na Escola Oficina nº 1, mas os responsáveis desta rejeitaram sempre sistematizar as suas ideias para as cederem a quem quisesse aplicá-las, porque achavam que os modelos deviam ser construídos de acordo com as necessidades do contexto da sua criação. O contrário seria negar a condução das aulas pelos alunos. Havia diretrizes comuns a todas as escolas - os princípios abstratos do antiautoritarismo -, mas os programas podiam ser distintos e sem uma fórmula pedagógica universal. Isso também contrasta com o presente.

É lamentável vermos a atual degradação do ensino público, que aliás impede que se possa progredir e experimentar novas formas de pedagogia e de avaliação. Estamos a andar para trás. Na minha família, sou a primeira pessoa a ter formação superior. Os meus avós eram analfabetos, camponeses ou operários. Duas gerações depois, consegui fazer um doutoramento. Obviamente, isso é uma consequência da escola pública.

Operárias têxteis protestam junto ao parlamento em 1911.

 

Na viragem do século, muitos anarquistas defendiam ainda que o trabalho das mulheres era um mal, pois era concorrência que baixava o salário. Quando - e com que conflitos - é que os sindicalistas homens deixaram de rejeitar a auto-organização das mulheres e passaram a reconhecer a sua posição no mundo do trabalho?

A emancipação da mulher está presente no anarquismo desde cedo, mas está presa a valores tradicionais e a formas de entender o género bastante normativos, que atribuía funções sociais separadas à mulher e ao homem. Isto derivava, em parte, das condições sociológicas do meio operário. Era transversal, mas afetava e muito a disposição dos anarquistas. Contudo, houve manifestações de pessoas que defendiam o direito da mulher a trabalhar, a escolher o seu rumo e a defender que a emancipação da mulher se faria pela independência económica. Mas seria uma certa vanguarda anarquista a ter esta visão mais emancipatória, sem o "mas" à frente e uma série de condicionantes. Esse caminho de afirmação foi longo; poder-se-ia dizer que foi uma consequência perversa de um movimento inicial do capital, que efetivamente quis introduzir as mulheres na força de trabalho para baixar os salários e travar a ascensão do movimento sindical. Elas seriam supostamente menos combativas. Mas não foi totalmente assim, pois sempre houve profissões dominadas pelas mulheres.

Ao longo de quase quinze anos, as direções confederais da UON e da CGT não incluíram uma única mulher. Houve vozes muito ativas, e mesmo um quinzenário anarquista, publicado em Vidago em 1914, “O Agitador”, que teve como diretora Júlia Cruz, professora primária. No geral, as anarquistas portuguesas que se conhece não são operárias, são mulheres com formação superior, especialmente em Lisboa. É certo que no Porto se encontram nomes de operárias, embora quase nada escrito por elas. É fácil supor que, depois do trabalho, não tinham tempo para se dedicar a escrever e iam fazer tarefas que os maridos exigiam. O caminho foi longo.

O movimento feminista republicano via a emancipação feminina presa às mesmas ideias dos anarquistas, a ideia de uma essência feminina, com propensão maternal e cuidadora dos filhos. A sua emancipação far-se-ia assim primeiramente em termos políticos. Ora, os anarquistas não defendiam partidos, não apelavam ao voto e recusavam a emancipação das mulheres pela política. Primeiro, porque havia um contraste de classe: esta emancipação política iria beneficiar primeiro as mulheres burguesas, porque o direito de voto, mesmo para os homens, dependia da escolaridade e dos rendimentos económicos. Havia uma grande cisão de classe, que excluía toda a massa operária do voto. Era evidente que não seria pelo voto que as mulheres operárias se emancipariam.

Surge assim a defesa da emancipação económica e da autonomia das mulheres. Claro que nem toda a gente gostava muito disso. E nos anos 20, por exemplo, aparecem alguns inquéritos no suplemento d’A Batalha, sobre a integração das mulheres na vida sindical e no trabalho, cujos resultados expunham alguns contrastes com o que sucedia, por exemplo, nas assembleias dos sindicatos. O seu papel no movimento sindical é visto sob uma certa segregação de género: seria o de um apoio de retaguarda às lutas, que afinal não era assim tão de retaguarda. Incluía apoio aos prisioneiros e, na greve geral no Porto de 1903, estiveram nos confrontos com a polícia, e isto é um exemplo de algo que aconteceu ao longo de todo o período. Para não falar de greves onde a classe era maioritariamente feminina: a ruptura do movimento sindical com a República dá-se quando, nas greves em Setúbal, são assassinadas duas pessoas, entre elas a operária conserveira Mariana Torres.

“Ó senhor guarda, mas eu não poderia ficar, pagando?” Ilustração de Stuart Carvalhais sobre a crise na habitação, publicado no suplemento semanal d’A Batalha em agosto de 1924.

 

O anarquismo forma consciência política, através da educação ou da tal “governação” que cria sentidos e regras de um poder consentido a partir do movimento social. Preparam-se as condições da futura revolução, mas sem colocar a questão do derrube do Estado burguês, da iniciativa política para a conquista do poder. Essa questão adensa-se após a revolução soviética e pesa na greve insurrecional de 1918, fracassada, e também no final da República, quando se torna iminente a ameaça do fascismo. Há então uma certa mudança do discurso da CGT, mais benigno sobre o governo de José Domingues dos Santos - que de facto introduz uma série de reformas a favor dos trabalhadores. Como vês o diálogo entre a tal “arte anarquista de governar” (através da iniciativa própria do movimento social) e a questão concreta do derrube do poder do capital?

Primeiro um comentário sobre essa relação da CGT com o governo: eles nunca o apoiaram publicamente, apesar de poder haver simpatias. Não conheço nada da CGT que alguma vez tivesse manifestado apoio por um governo, foram sempre antagónicos à forma política estatal. Quanto ao aspeto geral da pergunta, eu procuro rebater uma concepção limitada do político que diz que a alternativa de poder tem que passar pelas formas institucionais do poder. Os anarquistas tinham uma ideia de poder, concebiam-no como algo disseminado em práticas descentralizadas, de democracia direta e tudo mais. Isto não significa que abdicassem de uma alternativa. Com o surgimento do Partido Comunista, que segue uma visão centralista, esses modelos de poder entram em confronto.

A cisão ocorre entre os defensores de uma revolução imediata (os “maximalistas”, que dão origem ao Partido Comunista) e aqueles que defendiam um “contínuo revolucionário” (termo aplicado a posteriori pelo estudioso anarquista Martin Buber): a revolução nunca é alcançada plenamente - criamos estruturas para derrubar o Estado, mas depois há um caminho a fazer continuamente, de adaptação às necessidades contextuais, do momento.

Isto liga-se à questão da pergunta sobre a simpatia com os governos. A CGT tentava criar algumas pontes e muitos achavam que, apesar da repressão e de todos os males que a República tinha imposto aos operários, era preferível um governo democrático a uma ditadura (que ainda não se sabia bem o que poderia vir a ser, apesar de noutros contextos já se perceber a dimensão da violência do fascismo).

Outros anarquistas, mais puristas, criticaram a CGT, acusando-a de reformismo. Pretendiam não depender do Estado, da sua simpatia, tolerância ou abertura, porque na verdade ele lhes tinha imposto a deportação, a repressão, a morte até. Era enorme a distância face aos republicanos mais democráticos, que seriam parte dessa aliança possível. E com os comunistas a zanga foi grande. A tomada do poder de Estado pelo partido não era considerada pelos anarquistas como uma efetiva revolução. A cisão na Primeira Internacional já se dera em grande medida nestes termos: para os anarquistas, a tomada do poder de Estado para incitar uma revolução criaria uma nova classe de dirigentes e de burocratas, que susteria novas desigualdades e que, em pouco tempo, se abateria novamente sobre os operários. E isso aconteceu, de facto, em muitas das experiências que conhecemos.

Mais tarde, perante a iminência da derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial e antevendo a queda do regime salazarista, há anarquistas que chegam a elaborar o esboço de uma Constituição que inclui um aparelho militar, uma polícia, etc. Um modelo totalmente republicano, onde a presença libertária se manifestava pelo municipalismo. Eventualmente estariam sedentos de apanhar o comboio que tinham perdido anos antes.

“O Anarquismo e a Arte de Governar”, de Diogo Duarte, é um livro da Outro Modo, com prefácio de José Neves, distribuído com o Le Monde Diplomatique - edição portuguesa em junho de 2023.
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